Contratos em espécie - do Contrato de Fiança


06/10/2019 às 11h50
Por Franklyn Gallani

O Código Civil de 2002 disciplina a fiança em três seções, do art. 818 ao 839.

Conforme conceitua Fabio Ulhoa Coelho, o contrato de fiança é definido como aquele em que uma das partes (fiador) assume a obrigação perante outra (credor ou beneficiário) de entregar a prestação devida por terceiro (devedor ou afiançado), caso este não o faça.

É o que se infere da caracterização dada pelo artigo 818 do Código Civil:

Art. 818. Pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra.

Trata-se, portanto, de espécie de contrato de garantia, acessório a um outro contrato (denominado contrato principal) e objetiva limitar o risco de inadimplemento de uma determinada obrigação.

Caio Mario da Silva Pereira classifica o contrato de fiança da seguinte forma: a) unilateral – porque gera obrigação somente para o fiador; b) gratuito – porque cria vantagem para uma só das partes, nenhum benefício auferindo o fiador; c) intuito personae – porque ajustado em função da confiança de que desfruta o fiador; e d) acessório – como todo contrato de garantia, porque pressupõe sempre a existência de uma obrigação principal.

Por ser acessório, segue a sorte do principal, sem, porém, daí advir identidade entre um e outro. O fiador não participa da relação contratual principal, assim como o devedor não figura no contrato de fiança, podendo esta, inclusive, constituir-se independentemente da concordância do devedor, como se depreende do enunciado do artigo 820 do CC:

Art. 820. Pode-se estipular a fiança, ainda que sem consentimento do devedor ou contra a sua vontade.

Complementando a classificação dada por Caio Mario, necessário ressaltar-se que a fiança é contrato formal, sendo a forma escrita indispensável para sua constituição (vide CC., artigo 819, primeira parte), e condição de validade do negócio jurídico.

De acordo com Caio Mario, a forma escrita é uma das três classes de requisitos exigidos para a validade da fiança. Elas são: a) subjetivos – em regra, basta a capacidade genérica do agente – quem não a tem para contratar, não pode afiançar. Em caso de vigência de sociedade conjugal, também não é lícito ao cônjuge afiançar sem a respectiva outorga uxória. Há ainda outras condições e ordem legal, e envolvem certas pessoas em razão de ofício ou função (agentes fiscais, tesoureiros, leiloeiros, tutores e curadores pelos pupilos e curatelados); b) objetivos – a fiança pode ser dada a toda espécie de obrigação, legal ou convencional, e de qualquer natureza, de dar, de fazer ou de não fazer. Como contrato acessório, sua eficácia depende da validade da obrigação principal: se esta for nula, nua será a fiança. Conforme Carlos Roberto Gonçalves, nula a obrigação principal, a fiança desaparece, exceto se a nulidade resulta apenas de incapacidade pessoal do devedor (CC., art. 824). Tal exceção não abrange, contudo, o caso de mútuo feito a menor (CC., 824, parágrafo único); e c) formais – como já mencionado, sendo a fiança um contrato unilateral e gratuito, não deve suscitar dúvidas, quer quanto à efetividade de sua prestação, quer quanto à sua extensão. Por isso ser indispensável a forma escrita.

Por se tratar de contrato benéfico (o fiador se vincula por liberalidade, sem auferir qualquer vantagem), não comporta interpretação extensiva objetiva (como no caso de ser dada a uma parte da dívida e pretender-se abranger a outra parte), nem interpretação extensiva subjetiva (como na hipótese de a dívida ser novada e o credor postular a subsistência da fiança pelo descumprimento do novo devedor), nem interpretação de extensão temporal ( pretendendo-se que o fiador se responsabilize por obrigação posterior ao termo pelo qual se vinculou (CC., art. 819).

Ainda segundo Carlos Roberto Gonçalves, não se pode, assim, por analogia, ampliar as obrigações do fiador, quer no tocante à sua extensão, quer no concernente à sua duração.

Neste sentido, o E. STJ editou a súmula 214: “O fiador não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu.”

Aqui há que se fazer um parêntese. No tocante à fiança dada em garantia de adimplemento de contrato de locação de imóvel, o entendimento sufragado pela súmula 214 foi revisto pelo próprio STJ, que passou a decidir no sentido de que, havendo cláusula expressa de que o fiador fica vinculado ao contrato até a entrega das chaves, ele não se exonera do compromisso, quando da prorrogação da avença, mesmo que não anua expressamente:

“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DESPEJO POR FALTA DE PAGAMENTO CUMULADA COM COBRANÇA DE ALUGUÉIS E ACESSÓRIOS. ADITAMENTOS CONTRATUAIS PREVENDO A PRORROGAÇÃO CONTRATUAL E MAJORAÇÃO DO ENCARGO. AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO CONTRATUAL QUE AFASTE A RESPONSABILIDADE DOS FIADORES ATÉ A EFETIVA ENTREGA DAS CHAVES. PRORROGAÇÃO DA GARANTIA. ART. 39 DA LEI 8.245/91. 1. Ação ajuizada em 13/03/2015. Recurso especial concluso ao gabinete em 25/08/2016. Julgamento: CPC/73. 2. O propósito recursal é definir se os recorrentes, fiadores de contrato de locação, devem ser solidariamente responsáveis pelos débitos locativos, ainda que não tenham anuído com o aditivo contratual que previa a prorrogação do contrato, bem como a majoração do valor do aluguel. 3. O art. 39 da Lei 8.245/91 dispõe que, salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado. 4. Da redação do mencionado dispositivo legal depreende-se que não há necessidade de expressa anuência dos fiadores quanto à prorrogação do contrato quando não há qualquer disposição contratual que os desobrigue até a efetiva entrega das chaves. 5. Ademais, a própria lei, ao resguardar a faculdade do fiador de exonerar-se da obrigação mediante a notificação resilitória, reconhece que a atitude de não mais responder pelos débitos locatícios deve partir do próprio fiador, nos termos do art. 835 do CC/02. 6. Na hipótese sob julgamento, em não havendo cláusula contratual em sentido contrário ao disposto no art. 39 da Lei de Inquilinato – isto é, que alije os fiadores da responsabilidade até a entrega das chaves – e, tampouco, a exoneração da fiança por parte dos garantes, deve prevalecer o disposto na lei especial quanto à subsistência da garantia prestada. 7. Recurso especial conhecido e não provido.” (STJ – REsp: 1607422 SP 2016/0154232-6, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 17/10/2017, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/11/2017).

Tem-se por fundamento da decisão transcrita o artigo 39 da Lei 8.245/91 – Lei do Inquilinato, que reza que, salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel, ainda que prorrogada a locação por prazo indeterminado, por força desta lei.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE CONTRATO LOCATÍCIO. SÚMULA 214 STJ MODIFICADA. FIADOR. RESPONSABILIDADE PELO DÉBITO ATÉ A ENTREGA DAS CHAVES. AGRAVO PROVIDO. 1. O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA AO REVER O ENUNCIADO DA SÚMULA 214, FIRMOU O ENTENDIMENTO DE QUE HAVENDO CLÁUSULA EXPRESSA DE QUE O FIADOR FICA VINCULADO AO CONTRATO ATÉ A ENTREGA DAS CHAVES, DESSE COMPROMISSO NÃO SE EXONERA QUANDO DA PRORROGAÇÃO DA AVENÇA. (PRECEDENTES). 2. ESSE EG. TRIBUNAL DE JUSTIÇA JÁ TEVE OPORTUNIDADE DE SE PRONUNCIAR FAVORAVELMENTE A ESSA NOVA ORIENTAÇÃO, RESPONDENDO, POIS A FIADORA PELO DÉBITO COBRADO ATÉ A DEVOLUÇÃO DAS CHAVES DO IMÓVEL LOCADO. 3. AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO.

(TJ-DF - AI: 57888220078070000 DF 0005788-82.2007.807.0000, Relator: NILSONI DE FREITAS, Data de Julgamento: 20/06/2007, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: 04/09/2007, DJU Pág. 121 Seção: 3)

Quanto às espécies de fiança, Fabio Ulhoa Coelho as classifica em:

a) Simples ou solidária. No primeiro caso, o fiador tem obrigação subsidiária, de modo que o credor deve, antes, buscar a satisfação de seu crédito voltando-se para o patrimônio do devedor. No segundo caso, o fiador assume a condição de principal pagador e fica solidariamente responsável pela obrigação do devedor.

Na fiança simples, o fiador só responde pela parte da obrigação que o afiançado não tiver condições patrimoniais de adimplir. É o denominado benefício de ordem (CC., art. 827). Contudo, não aproveita este benefício ao fiador que o renunciar expressamente (CC., art. 828, I).

b) Singular ou conjunta. A fiança pode ser prestada por uma ou mais pessoas. Na fiança conjunta, a lei as vincula pela solidariedade. Assim, inexistindo cláusula expressa atributiva do benefício da divisão, todos os fiadores são solidários (CC., art. 829).

c) Limitada ou ilimitada. A abrangência da garantia pode ser maior ou menor em função dos limites acertados entre as partes. Em caso de garantia ilimitada, o credor terá direito a cobrar do fiador todos os acessórios da dívida principal (CC., art. 822). No entanto, seja a garantia limitada, seja ilimitada, nunca o fiador poderá ser cobrado por obrigação superior à do afiançado.

d) Voluntária ou necessária. Se as partes do contrato principal estabelecerem que a obrigação do devedor será garantida por fiador de sua indicação, a fiança é um contrato necessário. Nesse caso, o credor não pode recusar-se a contratar se o indicado atender a três requisitos: ter idoneidade, ser domiciliado no município em que tenha que prestar a fiança e possuir bens suficientes para cumprir a obrigação.

Quando o contrato de fiança é anterior ou simultâneo ao contrato principal, classifica-se como voluntário. Neste, visa de regra, o fiador é escolhido de comum acordo, sendo aprovado pelo credor após análise de sua condição patrimonial e econômica.

Carlos Roberto Gonçalves ainda classifica a fiança em convencional, legal e judicial. A primeira resulta de acordo de vontades, que deve necessariamente ser escrito. A segunda é imposta pela lei (CC, arts. 1.400, 1.745, parágrafo único etc.). E a terceira, determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes (CPC, arts. 475-O, 925, 940 etc.).

Por fim, extingue-se a fiança pelas causas terminativas próprias às obrigações em geral. Por ser contrato acessório, extingue-se em sobrevindo qualquer causa de extinção do débito principal por ela assegurado, salvo as hipóteses do artigo 824 do CC.

Além das causas que extinguem os contratos em geral, a fiança extingue-se também por atos praticados pelo credor, especificados no artigo 838 do Código Civil.

 

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Referências

BRASIL. Código Civil. (2002). Brasília: Congresso Nacional, 2002.

BRASIL. Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991. Lei do inquilinato.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 214.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº: 882973 RJ 2016/0065791-9, Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseveriano. Pesquisa de Jurisprudência, Decisão Monocrática, 21 de jun. de 2017, Brasília- DF. Disponível em: http://www.stj.jus.br/SCON/decisoes/doc.jsp?

BRASIL. Tribunal de Justiça do DF. Agravo de Instrumento nº 57888220078070000 DF 0005788-82.2007.807.0000, Relator: NILSONI DE FREITAS, Data de Julgamento: 20/06/2007, 1ª Turma Cível, Data de Publicação: 04/09/2007, DJU Pág. 121 Seção: 3. Disponível em:

https://tj-df.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6753494/agravo-de-instrumento-ai-57888220078070000-df-0005788-8220078070000?ref=juris-tabs

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, vol. 3 : Contratos; 5ª ed. — São Paulo : Saraiva, 2012.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Vol. 3 : Contratos; Atual. Caitlin Mulholland. – 21ª ed. – Rio de Janeiro : Forense, 2017.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume 3 : Contratos e Atos Unilaterais; 9. ed. - São Paulo : Saraiva, 2012.


Franklyn Gallani

Advogado - São Paulo, SP


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