A MULTIPARENTALIDADE E O DIREITO SUCESSÓRIO: ANÁLISE À LUZ DO RECONHECIMENTO DA IMPORTÂNCIA DO AFETO NAS RELAÇÕES FAMILIARES


08/01/2018 às 22h25
Por Acs Assistência Jurídica

RESUMO

 

O presente artigo tem como objetivo principal analisar o instituto da multiparentalidade e consequentes direitos sucessórios que a acompanham. Neste caminho procura-se de forma consistente demonstrar que o princípio da afetividade é hoje um dos pilares do Direito de Família, levando a um novo postulado recorrente nas mais variadas decisões jurisprudenciais, não apenas com força principiológica do afeto na questão de filiação, mas enfatizando quanto ao direito objetivo da sucessão na relação socioafetiva familiar. A multiparentalidade, ao lado dos princípios da dignidade da pessoa humana, da afetividade e do melhor interesse da criança, tem ganhado papel de destaque nos estudos científicos e precedentes jurisprudenciais, ampliando o conceito de paternidade/maternidade em relação às questões psicológicas, genéticas e biológicas, e ainda registrais. Para tal, o estudo preocupa-se em apresentar um pequeno histórico sobre o tratamento conferido à família, sua evolução histórica, seu reconhecimento legal e jurisprudencial. Além disso, o reconhecimento da importância do afeto nas relações familiares como um novo caminho a ser seguido no âmbito jurídico para a esfera das sucessões. Para tanto, o trabalho possui natureza bibliográfica, descritiva e exploratória, com um tema bastante incipiente, com entendimentos variados, dentro do Direito de Família. Com relação à técnica de pesquisa, valendo-se de documentação indireta, buscou-se estudar julgados recentes exibidos pelos Tribunais brasileiros.

 

Palavras-chave: multiparentalidade; socioafetividade; sucessões.

 

ABSTRACT

 

This article aims to analyze the institute of multiparentality and consequent inheritance rights that accompany it. It is consistently demonstrated that the principle of affection is now one of the pillars of Family Law and has gained a prominent role in scientific studies and jurisprudential precedents, extending the concept of paternity / maternity in relation to psychological, genetic and biological issues, and still register. In addition, recognition of the importance of affection in family relationships as a new path to be followed in the legal sphere for the field of succession. For this, the work has a bibliographic, descriptive and exploratory nature, with a very incipient theme, with varied understandings, within Family Law. Regarding the research technique, using indirect documentation, it was sought to study recent trials presented by the Brazilian Courts.

 

Key-words: family; multiparentality; socioafetividade.

 

1 INTRODUÇÃO

 

O Direito de Família, sem dúvida alguma, sofreu transformações com o novo Código de Processo Civil, trazendo consigo uma diferenciada visão aos costumes entranhados, com novos preceitos jurídicos diante da evolução da sociedade, de sua formação e novas representações sociais do tradicional conceito de família. A evolução da família até chegarmos ao que temos hoje - e que diariamente vem se redefinindo - pode ser considerada em três fases: a selvagem, a barbárie e a civilização, como referem alguns doutrinadores.

Diante das inovações, além da busca pela melhor definição dos novos modelos de família, da aceitação de outras formas de amor, afeto, carinho e compaixão, surge um novo caminho, uma nova leitura sobre os vínculos familiares: a socioafetividade e, consequentemente, o que essa nova visão no âmbito jurídico traz para a esfera das sucessões. Os laços de consanguinidade já não são mais suficientes para satisfazer a complexidade de relação e comportamento que envolve o significado da grandiosidade da palavra família.

Juridicamente esse novo paradigma vem se consolidando ante as mudanças sociais e familiares, ampliando o entendimento dos magistrados sobre a necessidade de acompanhar essa evolução, inclusive sobre a possibilidade da inclusão de dois ou mais genitores no registro de nascimento de uma pessoa. Trata-se da situação que conhecemos como multiparentalidade, ou ainda, as famílias multiparentais.

Nesse contexto, percebemos a importância de repensar os estudos dos relacionamentos humanos, unindo os aspectos objetivos e subjetivos em vez de separá-los. Através dessa união, o sujeito é visto e respeitado em sua integridade: tanto como sujeito de direito quanto como sujeito de desejo. Ao considerarmos a possibilidade da inclusão de mais de dois genitores no registro, somos levados, também, a repensar e a debater linhas de pensamento divergentes entre doutrinadores, já que essa inclusão trará consequências ao direito sucessório.

A multiparentalidade está relacionada com a possibilidade de a criança ou adolescente ter o direito, ou mesmo de o próprio pai ou mãe afetivo ter este direito, de documentar no registro civil da criança ou do adolescente como já dito, o seu nome. Esse direito é adquirido mediante comprovação com situações fáticas e pontuais de que existe esse vínculo afetivo muito presente e forte, corroborando que, embora não seja pai ou mãe biológico, os indivíduos tenham um convívio duradouro e permanente. O afeto, sem dúvida, é visto com valor jurídico considerável e deste modo merece o devido reconhecimento da sua importância nas relações familiares.

Isto posto, o presente trabalho expõe a seguinte indagação: quais os contornos da multiparentalidade no atual cenário jurídico brasileiro, diante do reconhecimento do direito sucessório no vínculo de filiação, declarada ou não em registro público?

 

2 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA E CONSTITUCIONAL DA FAMÍLIA

           

     O tema a ser abordado é um tanto desafiador diante da limitada literatura jurídica brasileira e sua amplitude a ser alcançada. Em um ritmo acelerado, assim como foram a globalização, a informatização, os conflitos ideológicos cerceados ou mascarados pelos conflitos religiosos, o ciclo da parentalidade também atravessa notável desenvolvimento no qual a família deixa de estar basicamente limitada a questões genéticas e biológicas, passando a encontrar um novo conceito, ou uma nova visão de família, sendo esta a de multiparentalidade. Essa é uma decorrência da socioafetividade, com relevante valor jurídico agregado frente ao reconhecimento da sua importância nas relações familiares.

Sempre lembrando que, sobretudo, devemos respeitar os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana, considerando que essa ampliação de conceito de paternalidade deva alcançar questões afetivas e psicológicas, genéticas e biológicas, e ainda a registral.

Adentrando a questão sucessória, vale destacar que no momento em que se inclui mais um pai, mais uma mãe ou ambos, teremos incluídos ali também os avós e, assim consequentemente, o direito sucessório e o direito de alimentos em todos eles. Assim sendo, o estudo e a análise da Multiparentalidade têm por objetivo analisar sua aplicabilidade e funcionalidade no direito brasileiro, considerando a relação constante e presente em nossa sociedade da pluralidade dos vínculos parentais.

Deste modo, considerando o contexto atual, inclusive com recente julgado do Superior Tribunal Federal (STF), no qual o órgão concretizou a possibilidade da coexistência de vínculos parentais, vislumbra-se a necessidade de análise sobre os aspectos do avanço no Direito de Família, a aplicabilidade e os reflexos do reconhecimento da Multiparentalidade (CALDERÓN, 2016).

Ao alcance deste estudo, verificamos um amplo e interessante campo, abrangendo ao que se possa intitular de “vínculos”. Os debates, as conquistas, as lides nem sempre tão bem-sucedidas, as lacunas jurídicas onde em não tão sucintas vezes ocorrem insatisfações e inclusive a perda de princípios básicos como os da afetividade, da solidariedade familiar, da paternidade responsável, justificando erroneamente a morosidade quando entra na questão a divisão de bens, o direito sucessório diante deste reconhecimento, são elementos que podem ser abordados.

A família vem a ser a pedra fundamental da sociedade, pois ela é a base de sua organização e, por esse motivo, tem uma proteção especial do estado (RODRIGUES, 2004).

Na Pré-história, os ditos grupos familiares eram desprovidos de critérios, ou melhor, ao que atualmente chamamos de correto, pois não havia nenhum tipo de lei que julgasse a alternância de pares, inclusive entre membros do próprio grupo familiar, ao que hoje chamaríamos de incesto. Após essa etapa da promiscuidade, ainda tivemos outras etapas de famílias até chegarmos a organizações familiares com registros documentais mais exatos e cronológicos.

Conforme já descrevemos acima, a evolução da família até chegarmos ao que temos hoje e que diariamente vem se redefinindo, pode ser considerada em três fases: a selvagem, a barbárie e a civilização (PEREIRA, 2003).

Rodrigo da Cunha Pereira explica a evolução da família referindo essas três fases como sendo históricas:

 

No estado selvagem, os homens apropriam-se dos produtos da natureza prontos para serem utilizados. Aparece o arco e a flecha e, consequentemente, a caça. É aí que a linguagem começa a ser articulada. Na barbárie, introduz-se a cerâmica, a domesticação de animais, agricultura e aprende-se a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho humano; na civilização, o homem continua aprendendo a elaborar os produtos da natureza: é o período da indústria e da arte. (2003, p. 12)

 

O entendimento de Wald (1990) era que com o passar das épocas, a visão de família para os romanos começou a mudar, ocorrendo transformações quanto ao reconhecimento do abuso de poder do pater. No Império, a mulher começava a ser mais autônoma e a participar da vida social e política.

Anos além, a família dentro do direito canônico passou a ser marcada pelo cristianismo. Enaltecendo o fortalecimento do poder espiritual, a Igreja começou a interferir de forma decisiva nos desígnios familiares, estabelecendo impedimentos como o consenso dos nubentes e as relações sexuais voluntárias. Pode ser entendido, conforme Gama (2001) que a família adquiria uma visão do direito canônico que seria mais a visão em que o homem deixa a sua família originária e vem a se unir com a mulher para poder formar uma nova família com o mero objetivo de se procriarem.

Silvio Venosa diz que o direito germânico vem a ser o sistema utilizado pelo direito brasileiro, afirmando que

 

é a este sistema que pertence o direito brasileiro, bem como se filiam todos os direitos que tomam por base o direito romano. Nesses países, as normas surgem vinculadas a preocupação de justiça e moral. Há predominância da lei como fonte do direito. As obras de doutrina, e isto é uma Constância entre nós, preocupam-se em ser dogmáticas e interpretar os textos legislativos, relegando a jurisprudência e a prática do direito a plano secundário (2007, p. 70- 71).

 

Devemos historicamente considerar o que temos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 25:

 

1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.

2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social.

 

Frente ao desenvolvimento social ocorrido ao longo dos tempos, coube à família amoldar-se, inevitavelmente, às características de cada época, passando por intensas adaptações. Nesta esteira, colhem-se as precisas lições de Almeida e Rodrigues Júnior:

[...] assim, exatamente por acompanhar o desenvolvimento social, a família vai se adequando a ele conforme necessário. Em cada momento histórico, novas necessidades, novos interesses e, consequentemente, uma peculiar estruturação familiar (2012, p. 1).

 

Ao vínculo socioafetivo e biológico em igual grau de hierarquia jurídica ocorreu o reconhecimento da presença no cenário brasileiro de ambas as paternidades, socioafetiva e biológica, em condições de igualdade jurídica. Ou seja, ambas as modalidades de vínculo parental foram reconhecidas com o mesmo status, sem qualquer hierarquia apriorística (em abstrato). Havia dissenso sobre isso, pois até então imperava a posição do Superior Tribunal de Justiça que indicava uma prevalência do vínculo biológico sobre o socioafetivo nos casos de pedido judicial de reconhecimento de paternidade apresentados pelos filhos.

Diante da transformação, devemos analisar o parentesco socioafetivo e a presença da multiparentalidade atualmente nas famílias. Considerando as relevantes mudanças no aspecto jurídico, notamos que o Direito Constitucional afastou-se de um caráter neutro e indiferente socialmente, deixando de cuidar apenas da organização política do Estado, para engendrar-se nas necessidades humanas reais e concretas, ao cuidar de direitos individuais e sociais, como exemplifica-se nos artigos 226 e 227, nos quais se disciplina a organização da família, sendo essa reconhecida até mesmo como nova teoria constitucional.

Atualmente, dentro de nosso sistema normativo de direitos, com maior especificidade ligada aos direitos sucessórios diante do reconhecimento de filiação socioafetiva, temos julgados nos mais diversos Tribunais de nosso país referentes ao instituto do Direito das Sucessões. No entanto, encontra-se a passos de lentidão quanto à efetivação destes direitos na presença da formação do estado filiativo na socioafetividade e sua consequente colocação dos reconhecidos na linha sucessória.

Relatos feitos sobre a evolução histórica dos conceitos de família, o afeto e a consideração familiar, desenvolveremos nos próximos subtítulos sobre o parentesco socioafetivo e a presença da multiparentalidade, existentes atualmente nas famílias. A igualdade constitucional diante das diferentes origens parentais entre irmãos, o planejamento familiar e a necessária ausência de impedimentos legais no reconhecimento frente aos direitos e deveres aos filhos na multiparentalidade e o direito sucessório advindo desta serão mencionado.

 

3 O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA NA ESFERA JURÍDICA                 

           

O reconhecimento da paternidade socioafetiva começa no momento em que se forma o vínculo de afeto entre pai e filho. O desenvolvimento de forma sadia na filiação socioafetiva envolve a construção de um amor filial de qualidade, com elementos formadores no convívio, representada em sua construção mental, moral, social e cultural, assumindo as responsabilidades inerentes a esta criação, mesmo não existindo o vínculo genético.

          A filiação socioafetiva encontra sólido apoio nas normas constitucionais sobre direito de família. Ela passa a ter a assento infraconstitucional no art. 1.593 do Código Civil, que menciona “a possibilidade de embasar-se o parentesco na consanguinidade ou em ‘outra origem’, locução que engloba a origem afetiva” (FACHIN, 2003, p. 17).

A paternidade socioafetiva nasceu no ordenamento jurídico com a finalidade de proteger o interesse da criança e do adolescente, conforme preceitua o princípio do melhor interesse da criança.

Constantes são as críticas frente à aparente discriminação estabelecida pelo Código em relação a uma suposta linha de categorias de parentesco. Para tanto, os filhos que são adotados não guardam origem biológica, mas possuem os mesmos direitos que os demais. De igual forma, aqueles que foram reconhecidos como parentes em virtude do longo convívio, ou seja, pela socioafetividade, estão em posição de gerar afeto indiscutível e também possuem a mesma proteção legal.

           Como já relatado anteriormente, os laços de consanguinidade já não são mais suficientes para satisfazer a complexidade de relação e comportamento, pois nos deparamos com uma realidade social em que famílias são formadas por laços de amor. Dessa forma, as transformações mais recentes por que passou a família fizeram com que ela deixasse de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, levando considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade.  

A jurisprudência entende que a existência de relação socioafetiva com o pai registral não impede o reconhecimento dos vínculos biológicos quando a investigação de paternidade é demandada por iniciativa do próprio filho, uma vez que a pretensão deduzida fundamenta-se no direito personalíssimo, indisponível e imprescritível de conhecimento do estado biológico de filiação, consubstanciado no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Segue ementa:

 

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IMPEDIMENTO PARA O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. NÃO OCORRÊNCIA. AÇÃO PROPOSTA PELO FILHO. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. Não se constata violação ao art. 535 do CPC quando a col. Corte de origem dirime, fundamentadamente, todas as questões que lhe foram submetidas. Havendo manifestação expressa acerca dos temas necessários à integral solução da lide, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte, fica afastada qualquer omissão, contradição ou obscuridade. 2. A existência de relação socioafetiva com o pai registral não impede o reconhecimento dos vínculos biológicos quando a investigação de paternidade é demandada por iniciativa do próprio filho, uma vez que a pretensão deduzida fundamenta-se no direito personalíssimo, indisponível e imprescritível de conhecimento do estado biológico de filiação, consubstanciado no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). Precedentes. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ - AgRg no AREsp: 678600 SP 2015/0053479-2, Relator: Ministro RAUL ARAÚJO, Data de Julgamento: 26/05/2015, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 24/06/2015).

 

          Segundo entendimento de Paulo Lôbo (2013), toda paternidade é necessariamente socioafetiva, pois independente de os vínculos serem ou não biológicos, o afeto deve ser presença marcante na composição da família. Não basta apenas o sangue se não há zelo e cuidado entre os indivíduos. Ele ainda faz menção anterior onde o Estado de filiação revelava-se pela convivência familiar, pelo efetivo cumprimento pelos pais dos deveres de guarda, educação e sustento do filho, pelo relacionamento afetivo.

            Como pudemos ver, o reconhecimento da paternidade (maternidade) socioafetiva na esfera jurídica sem dúvida deu impulso a mais um passo à frente com esta decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), abrindo caminho para decisões análogas. José Fernando Simão destaca os reflexos da decisão do STF quanto ao reconhecimento da multiparentalidade, além de alertar a respeito do risco de se abrir a porta para demandas sem importância, que visem puramente o patrimônio contra os pais biológicos. Essa possibilidade deverá merecer atenção especial por parte dos operadores do direito (CALDERÓN, 2016).

            A adesão pela pluriparentalidade permite a coexistência simultânea dos critérios de filiação, extirpando disputas que, muitas vezes, não condizem com a realidade jurídica estampada diariamente no convívio familiar da criança e do adolescente. Sobre esse enfoque, Almeida e Rodrigues Júnior (2012, p. 357) prelecionam que:

[...] permitindo-se a coexistência de relações filiais, seria possível garantir ao filho, além da relação eudemonista, não oferecida pelo (a) genitor (a), os exequíveis direitos oriundos da filiação biológica – como o de alimentos e os sucessórios. [...] De um lado, mantém intacta a responsabilidade dos genitores que, no exercício de sua autonomia – é de presumir-se – fizeram nascer o filho. De outro, resguarda, de maneira ampla, este último, material e moralmente.

 

 

          No que cabe aos direitos sucessórios, estes são reconhecidos segundo a ordem de vocação hereditária prevista nos artigos 1.829 a 1.847 do Código Civil. Haveria o estabelecimento de tantas linhas sucessórias quantos fossem os genitores. Assim, o menor seria herdeiro em concorrência com os irmãos tanto em relação ao pai/mãe afetivo como em relação ao biológico e, caso o menor falecesse antes de seus genitores, estes seriam seus herdeiros, mantendo todas as regras já previstas no direito das sucessões.

          Para Tartuce (2015), a parentalidade socioafetiva vem sendo reconhecida como nova forma de parentesco civil, ao lado da adoção e daquela havida da técnica de reprodução heteróloga assistida. Assim, ela está fundada na posse de estado de filho, que vem a ser a situação fática e social de serem as pessoas envolvidas reconhecidas como unidas pelo vínculo de filiação.

“A nova família busca a afinidade psicoafetiva, apoio, calor e compatibilidade sexual, harmonia e afetividade” (NARDI et. al., 2017, p. 39). Assim, surge a união estável: uma desafiadora forma de união familiar, baseada na convivência alternativa e informal, concentrada em aspectos mais flexíveis.

Importante relembrar a compreensão e o alcance emprestados por Pereira (1959), citado por Nardi et. al. (2017, p.39):

 

agora, dizei-me: que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é fruto do seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o Juiz, com a sua lei, ou o padre, com seu sacramento? Que importa isso? O acidente convencional não tem força para apagar o fato natural. E por causa dessa impotência é que o legislador teve de transigir com ele, de considerá-lo, e de prover as consequências que dele resultam. Ao lado da família legítima, temos de prestar atenção à ilegítima, que também se diz natural, como se toda a família o não fora.

 

 

Do mesmo modo, o novo enfoque da estrutura da família no Direito Civil Brasileiro, a partir da Constituição de 1988, foi identificado por Leite (1997), para quem as antigas noções de hierarquia e respeito, de comando e obediência, volatizam-se diante da noção singela, mas profunda, de amor. Amor e obrigação, necessariamente, excluem-se. Onde há amor não há hierarquia, nem ordens, nem obrigações. Nessa perspectiva, as ideias de regulamentos, estatutos, códigos e leis não são só recusadas, como também integralmente desconsideradas.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, mais precisamente o artigo 226, em seu § 7º, fala que

 

fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

 

A família – e não faz pouco tempo – não mais se define pela triangulação clássica: pai, mãe e filho. O critério biológico deve ceder espaço à noção de filiação por afeto, de paternidade social ou sociológica. Biológica ou não; oriunda do casamento ou não; monogâmica ou poligâmica; monoparental ou poliparental, pouco importa. Tampouco faz diferença o lugar que se ocupa dentro da entidade familiar. O que é realmente relevante é o fato de pertencer a um grupo onde há acolhimento, onde há a possibilidade de compartilhar sentimentos, esperanças e valores. Um grupo que, em prol da dignidade humana, faça com que os seus membros cheguem, a cada dia, mais perto de seu projeto de felicidade pessoal.

Existe atualmente o entendimento da jurisprudência e da doutrina que a paternidade socioafetiva prevalece sobre as outras devido à sua construção progressiva do vínculo de afeto, de amor e cumplicidade, refletindo na importância do afeto nas relações familiares. O STF entendeu que a desconstituição deste vínculo poderia acarretar graves consequências danosas à pessoa.

No âmbito jurídico, a abordagem acerca da questão que se segue tem se tornado bastante relevante. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, a Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial (REsp) n. 878941, concedeu em uma disputa judicial entre o pai biológico e o pai afetivo o direito de permanecer no registro de nascimento de uma criança o nome do pai de criação.

No caso citado, o pai de criação registrou a criança em seu nome sem saber que não era o pai. Posteriormente, o pai biológico, ao descobrir a paternidade, entrou com uma ação pedindo a anulação do registro civil e a declaração de paternidade. Diante disso, o pai afetivo quis manter a relação de figura paterna da criança, e foi o que ficou decidido, por unanimidade, pela Terceira Turma do STJ, em que se manteve a decisão da sentença que julgou a ilegitimidade do pai biológico para entrar com a ação.

O professor e doutrinador Sussumu, seguindo doutrinadores como Tartuce e Diniz, entende que a multiparentalidade significa a legitimação da paternidade/maternidade do padrasto ou madrasta que ama, criam e cuidam de seu enteado(a) como se seu filho fosse, enquanto que ao mesmo tempo o enteado(a) o ama e o(a) tem como pai/mãe, sem que para isso, se desconsidere o pai ou mãe biológicos. A proposta é a inclusão, no registro de nascimento, do pai ou mãe socioafetivos, permanecendo o nome de ambos os pais biológicos.

De acordo com a legislação, a sucessão legítima deve ser reconhecida numa ordem pré-estabelecida, considerando-se os seguintes sucessores: os descendentes; os ascendentes; o cônjuge sobrevivente (colocar a questão do companheiro); os colaterais.

Em meados de 2016 foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) um caso tratando de um pai já falecido. Nos autos consta que o filho não biológico aparecia em colunas sociais com o pai, era dependente deste na declaração de imposto de renda, era visto pela sociedade como filho legítimo e até utilizava o sobrenome do pai, razão pela qual o julgamento concluiu por reconhecer a filiação socioafetiva post mortem, confirmando entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ). Com base nessa decisão, o filho socioafetivo habilitou-se no inventário e garantiu o direito à herança deixada pelo pai, que não teve outros filhos.

            Os impactos no âmbito alimentar podem ir além do pai biológico, eis que existem, agora, novos avós, ou seja, permitir-se-iam novas relações avoengas. Sem prejuízo disso, não obstante a questão ainda pareça sedimentada no âmbito do direito sucessório, se isso vier a concretizar-se, até mesmo partilhas feitas sem as considerações do precedente poderão vir a ser desfeitas no lapso de revisão. Tudo isso sem prejuízo das próprias consequências da teoria do desamor (abandono afetivo que já tem rendido indenizações de milhares de reais). Certamente o número de demandas em torno do tema vai ser alavancado a partir do precedente, levando a uma necessidade de rápidas reflexões acerca da matéria (CALDERÓN, 2016).

 

4 A MULTIPARENTALIDADE E SEUS EFEITOS NO DIREITO SUCESSÓRIO           

 

            A multiparentalidade abrange a possibilidade jurídica do reconhecimento simultâneo da paternidade biológica e socioafetiva. As mudanças são de fácil percepção, uma vez que atualmente temos vários tipos de famílias formadas: famílias com apenas um genitor, formadas por pessoas de mesmo sexo, com casamentos constituídos ou não, famílias relacionadas por laços sanguíneos, por jurídicos e, ainda com grande notoriedade, por laços de afeto.

            Para melhor entendimento da multiparentalidade devemos abrir o leque para três tipos de paternidade: a jurídica, a biológica e a socioafetiva, com análise situacional no âmbito jurídico em nosso país.

            Na paternidade jurídica presumia-se pai o marido da mãe e, consequentemente, aquele que constava no registro de nascimento. Havia “interesses alheios à filiação” (DINIZ, 2007, p. 4), pois o maior bem envolvido era o matrimônio como instituto de família protegido.

            Na paternidade biológica, como o próprio nome já diz, considera-se como base a consanguinidade, a genética entre pais e filhos. Considerando a Lei 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, temos em seu Art. 27:

 

O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.

           

            Flávio Tartuce (2015) já previa que outras decisões jurisprudenciais deveriam surgir nos próximos anos, sendo a multiparentalidade um caminho sem volta do Direito de Família Contemporâneo, consolidando-se as novas teorias e os princípios constitucionais nesse campo do pensamento jurídico.

Visto isso, o conceito de família é importante para se aferir os efeitos sucessórios, alimentares, de autoridade e as implicações fiscais e previdenciárias. “No critério sucessório, estão compreendidos na família aqueles que são chamados por lei a herdar uns dos outros” (DINIZ, 2007, p. 11).

            A ausência de dispositivos proibitivos legais também embasa o reconhecimento de direitos e deveres ao filho que possui múltiplos pais ou mães, bem como o posicionamento jurisprudencial dos tribunais brasileiros ainda relutantes à aceitação e decisões favoráveis, principalmente no que tange ao direito sucessório quanto à relação de afetividade, que é foco deste artigo.

            Numa perspectiva técnico-jurídica, filiação para Farias e Rosenvald é

 

a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que estão no primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que a geraram ou que a acolheram e criaram, com base no afeto e na solidariedade, almejando o desenvolvimento da personalidade e a realização pessoal. (2012, p. 619)

 

 

Os pressupostos para um processo relativo ao Direito de Sucessão, em primeiro lugar, evidentemente, é a morte do autor da herança, ou de cujus, e a vocação hereditária dos que pleiteiam a sucessão.

Para o Direito de Sucessão devem conhecer-se os bens disponíveis em herança, ou seja, o conjunto de bens, direitos e obrigações que o de cujus deixou, devendo ela ser considerada indivisível até que o juiz estabeleça a sentença de partilha.

Entende-se que o processo possa ter continuidade desde que os herdeiros sejam conhecidos. No caso de não surgirem herdeiros, o Direito de Sucessão deve atender outros termos da legislação.

No Direito de Sucessão, os herdeiros podem ser considerados legítimos, ou seja, indicados pela hereditariedade, ou testamentários - quando indicados em testamento.

O direito das sucessões possui como pano de fundo o princípio da dignidade da pessoa humana. Logo, a herança deve ser passada aos sucessores de forma a valorizar o ser humano, possibilitando uma existência digna e mais justa.

Dessa maneira, as regras de sucessão deverão ser aplicadas na parentalidade socioafetiva, igualando-se os parentes biológicos e os socioafetivos.

A multiparentalidade é a coexistência jurídica do vínculo biológico com o afetivo. A questão da sucessão na multiparentalidade é um tema que tem hodiernamente merecido elevado grau de atenção, principalmente no que se refere aos ascendentes, pois não foi objeto de consideração pelo legislador. O artigo 1.829 do Código Civil estabelece:

 

A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

 

Segundo Cezar Peluso (2015, p. 2.093), “a sucessão legítima é aquela na qual os herdeiros são designados diretamente pela lei, sem concurso da manifestação de vontade do autor da herança.” Contrapõe-se à sucessão testamentária, na qual são designados pelo autor da herança, em testamento ou codicilo.

Já para Madaleno e Babosa (2015), não obstante a codificação em vigor não reconheça a filiação socioafetiva, inquestionavelmente a jurisprudência dos pretórios brasileiros vem paulatina e reiteradamente prestigiando a prevalência da chamada posse do estado de filho, representando em essência o substrato fático da verdadeira e única filiação, sustentada no amor e no desejo de ser pai ou ser mãe, em suma, de estabelecer espontaneamente os vínculos da cristalina relação filial. Trouxeram, ainda, à colação a seguinte jurisprudência:

 

Maternidade socioafetiva. Preservação da maternidade biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde os dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes. A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e na solidariedade. Recurso provido (TJSP. Apelação Cível n. 0006422-26.2011.8.26.0286. Primeira Câmara de Direito Privado. Relator: Juiz Alcides Leopoldo e Silva Júnior. Julgado em 14.08.2012). (MADALENO e BARBOSA, 2015, p. 525-526)

 

Portanto, considerando que a Constituição Federal ampliou o conceito de família e que extirpou de nosso ordenamento jurídico a classificação da prole em legítima, ilegitimada e ilegítima, e que uma vez reconhecido o estado da posse de filho, este tem imediatos direitos e deveres em termos de Direito de Família, assim como das Sucessões.

Nesse sentido, a lição de Nelson Shikicima (2014) nos ensina que, reconhecida a filiação multiparental, ou seja, duas mães e um pai ou dois pais e uma mãe, como já citado acima e conforme decisões em diversos Tribunais dos Estados no Brasil, bem como o Superior Tribunal de Justiça, trará efeitos quanto aos direitos e deveres, principalmente nos aspecto do direito de família e sucessões, tais como guarda, visitas, alimentos, filiação, sobrenome e herança.

Em recente e importantíssima decisão do STF, na qual era discutida a questão da prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, houve o melhor entendimento sobre a possibilidade de coexistência de ambas as paternidades, sem que prevalecesse uma sobre a outra e, deste modo, acolhendo a equiparação dentre as modalidades de vínculos (CALDERÓN, 2016).

A tese aprovada tem o seguinte teor: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios".

Considerando esses reflexos da decisão do STF, teremos a considerar a tese estabelecida na repercussão geral 622, na qual terão destaque três aspectos principais: o reconhecimento jurídico da afetividade, o vínculo socioafetivo e biológico em igual grau de hierarquia jurídica e a tão referenciada possibilidade jurídica da multiparentalidade (CALDERÓN, 2016).

O reconhecimento jurídico da afetividade foi citada expressamente como princípio na manifestação do Ministro Celso de Mello, na esteira do que defende ampla doutrina do direito de família. Não houve objeção alguma ao reconhecimento da socioafetividade pelos ministros, o que indica a sua tranquila assimilação naquele tribunal.

O reconhecimento desses vínculos trouxe para esta esfera a possibilidade jurídica da multiparentalidade. Essa aceitação da possibilidade de concomitância de dois pais foi objeto de intenso debate na sessão plenária que cuidou do tema, face a uma divergência do Min. Marco Aurélio, mas restou aprovada por ampla maioria. Com isso, inequívoco que a tese aprovada acolhe a possibilidade jurídica da multiparentalidade. Um dos maiores avanços alcançados com a tese aprovada pelo STF certamente foi o acolhimento expresso da possibilidade jurídica de pluriparentalidade.

O caso concreto julgado pelo STF no âmbito do RE 898.060 não é o primeiro nessa matéria, mas de forma a dar o norte, fixar paradigmas, pelo STF ao sistema jurídico:

 

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. Conflito entre paternidades socioafetiva e biológica. Paradigma do casamento. Superação pela Constituição de 1988. Eixo central do direito de família: deslocamento para o plano constitucional. Sobreprincípio da dignidade humana (ART. 1º, III, DA CRFB). Superação de óbices legais ao pleno desenvolvimento das famílias. Direito à busca da felicidade. Princípio constitucional implícito. Indivíduo como centro do ordenamento jurídico-político. Impossibilidade de redução das realidades familiares a modelos pré-concebidos. Atipicidade constitucional do conceito de entidades familiares. União estável (ART. 226, § 3º, CRFB) e família monoparental (ART. 226, § 4º, CRFB). Vedação à discriminação e hierarquização entre espécies de filiação (ART. 227, § 6º, CRFB). Parentalidade presuntiva, biológica ou afetiva. Necessidade de tutela jurídica ampla. Multiplicidade de vínculos parentais. Reconhecimento concomitante. Possibilidade. Pluriparentalidade. Princípio da paternidade responsável. (ART. 226, § 7º, CRFB). Recurso a que se nega provimento. Fixação de tese para aplicação a casos semelhantes. (RECURSO EXTRAORDINÁRIO 898.060 SÃO PAULO RELATOR: MIN. LUIZ FUX RECTE. (S):A. N. ADV.(A/S): RODRIGO FERNANDES PEREIRA RECDO. (A/S): F. G.).

 

 

            A manifestação do STF traz numerosas e profundas consequências, não apenas para o Direito de Família, mas também para muitos outros campos jurídicos, como o Direito Previdenciário e o Direito das Sucessões.

Devemos lembrar que a pessoa criada e registrada por pai socioafetivo não precisa, portanto, negar sua paternidade biológica, e muito menos abdicar de direitos inerentes ao seu novo status familiae, numa via inversa, tais como os direitos hereditários. Decisões relacionadas temos diversas, mas aqui cito um caso em especial no qual houve o entendimento unânime da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao dar provimento ao recurso de um homem, hoje com quase 70 anos, que tentava na Justiça receber a herança do pai biológico mesmo já tendo recebido patrimônio do pai socioafetivo. O recurso questionava acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 

 

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. IGUALDADE ENTRE FILHOS. ART. 227, § 6º, DA CF/1988. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VÍNCULO BIOLÓGICO. COEXISTÊNCIA. DESCOBERTA POSTERIOR. EXAME DE DNA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. GARANTIA. REPERCUSSÃO GERAL. STF. 1. No que se refere ao Direito de Família, a Carta Constitucional de 1988 inovou ao permitir a igualdade de filiação, afastando a odiosa distinção até então existente entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos (art. 227, § 6º, da Constituição Federal). 2. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos. 3. A existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis. 4. O reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros. 5. Diversas responsabilidades, de ordem moral ou patrimonial, são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação. 6. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1618230 RS 2016/0204124-4, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 28/03/2017, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 10/05/2017).

 

No caminho inverso ao reconhecimento do vínculo afetivo nas relações de paternidade/maternidade, são grandes as esperas pela legitimação dos direitos sucessórios que, muitas vezes injustificadamente, são indeferidos os seus pedidos, ou ainda arrastados pelo abarrotamento de processos judiciais. Podemos ver que mesmo em reconhecimento afetivo pela família e público pela sociedade, existem lacunas que, por detalhes, não chegam ao alcance do politicamente correto. Abaixo exemplo de recurso desprovido em 2012:

 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA E RETIFICAÇÃO DE PARTILHA. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE PÓSTUMA POR VÍNCULO AFETIVO. POSSE DO ESTADO DE FILHO. SITUAÇÃO DE FATO. ELEMENTOS CARACTERIZADORES. NOMINATIO, TRATACTUS E REPUTATIO. FILHO DE CRIAÇÃO. AUXÍLIO MATERIAL. AUSÊNCIA DO TRATAMENTO AFETIVO DISPENSADO AOS FILHOS BIOLÓGICOS. FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NÃO DEMONSTRADA. SENTENÇA IRREPROCHÁVEL. RECURSO DESPROVIDO. A filiação socioafetiva, fundada na posse do estado de filho e consolidada no afeto e na convivência familiar, pressupõe a existência de três elementos caracterizadores: o nomem - utilização do sobrenome paterno; o tratactus - pessoa deve ser tratada e educada como filho; e a reputatio - o reconhecimento pela sociedade e pela família da condição de filho. A ausência de um desses elementos conduz à improcedência do pedido de reconhecimento da paternidade póstuma por vínculo afetivo. (TJ-SC - AC: 20120588721 SC 2012.058872-1 (Acórdão), Relator: Fernando Carioni, Data de Julgamento: 10/09/2012, Terceira Câmara de Direito Civil Julgado).

 

Considerando-se a Repercussão Geral 622, grande probabilidade que este recurso tivesse alcançado provimento. Antes, ocorria que para o reconhecimento da posse de estado de filho, costumava-se elencar três aspectos constitutivos: tractatus – quando o filho é tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; nominatio – quando o filho usa o nome da família e assim se apresenta; e reputatio – é conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais. Porém, atualmente não há necessidade da presença conjunta desses três elementos, nome, tratamento e fama, para a caracterização do estado de filiação, sendo certo valer um critério de equidade: in dúbio, pro filiatio, ou seja, se considera a filiação.

            Concretizando essa ideia, a multiparentalidade - assim como a paternidade socioafetiva -, vem sendo tema bastante recorrente aos tribunais do nosso país. Apesar de ainda não existir um entendimento pacífico a respeito do assunto, vem-se notando um tendencioso no Judiciário de compreender a figura do afeto como mais importante do que a própria relação de sangue entre ascendentes e descendentes.

            Considerando todas essas exposições acima e trazendo ao conhecimento os reais contornos da multiparentalidade no atual cenário jurídico brasileiro, não há caminho a seguir sem que isso leve a rumos diferentes aos antes aceitos juridicamente. Sem dúvida seja esse realmente um longo percurso a ser trilhado com decisões disformes, mas com certeza pautadas no saber jurídico dos nossos magistrados.

 

5 CONCLUSÃO

 

O presente trabalho propôs trazer ao conhecimento a evolução na relação de parentesco socioafetivo e a presença da multiparentalidade, presentes atualmente nas famílias. Além disso, sua análise frente ao posicionamento em âmbito jurídico nacional, firmando uma tendência jurisprudencial e doutrinária no sentido de que as duas formas de parentalidade devam sem aplicadas de maneira complementar, visto que não existe hierarquia entres as duas formas de parentesco.

            No que diz respeito aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da afetividade e do melhor interesse da criança e do adolescente, constituem preceitos de observação obrigatória na análise de cada caso concreto nas relações pluriparentais.

            Destarte, a multiparentalidade é uma realidade presente em muitas famílias brasileiras, considerando outro princípio referido no artigo, qual seja o da igualdade de todos os filhos, independente de qualquer origem, com relevante valor jurídico agregado frente ao reconhecimento da sua importância nas relações familiares, levando sua aplicabilidade e funcionalidade no direito brasileiro.

            Dito isso, é impossível não perceber uma relação indissolúvel entre a socioafetividade e a atual conjuntura familiar, sobretudo com o considerável crescimento nesses tipos de filiações no começo do século XXI, oriundos em grande parte de novos grupos familiares, novos casamentos, novas uniões, trazendo consigo filhos que passariam a ser criados com vínculos de amor e afinidade.

            É de conhecimento geral que, em muitos casos, o laço consanguíneo ou registral não assegura a relação direta, afetiva e/ou contínua entre pais/mães e filhos, deixando o espaço ao que se busca no reconhecimento jurídico em favor de que a socioafetividade seja definitivamente inserida na legislação brasileira, deixando de ser algo subjetivo ou dedutivo e passando a vigorar como concreto e de acordo com o que a sociedade indiretamente já aceitou.

           

6 METODOLOGIA

 

 

O presente artigo tem como objeto de busca as soluções jurídicas diante das transformações que o novo Código de Processo Civil tem trazido ao Direito de Família, no que concerne a uma diferenciada visão dos costumes entranhados, com novos preceitos jurídicos diante da evolução da sociedade, de sua formação e novas representações sociais do tradicional conceito de família.

A pesquisa bibliográfica foi embasada em estudos, artigos, doutrinas, decisões jurisprudenciais recentes, sendo uma forma para contribuir com o conhecimento acerca da questão da multiparentalidade e dos direitos sucessórios provenientes.

Trata-se de uma pesquisa principalmente bibliográfica. Esse tipo de pesquisa constitui-se em “[...] todos os estudos que tentam quantificar processos de comunicação escrita [...].” (PRITCHARD, 1969, p. 349). Já do ponto de vista dos objetivos, será exploratória, ou seja, busca proporcionar maior familiaridade com um problema; envolve levantamento bibliográfico, estudos de caso a respeito de decisões na esfera jurídica nacional.

 

 

 

 

 

 


 

 

 


    Referências

    REFERÊNCIAS

     

     

    ALMEIDA, R. B. de; RODRIGUES JÚNIOR, W. E. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

     

    BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

     

    ________ Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n°8.069, de 13 de julho de

    1990. Atualizado até a lei 12.010 de 2009.

     

    _________ Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental no agravo em recurso especial. Relator: Ministro Raul Araújo. 26 de maio de 2015. Disponível em: <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/201862617/agravo-regimental-no-agravo-em-recurso-especial-agrg-no-aresp-678600-sp-2015-0053479-2?ref=juris-tabs>. Acesso em: 10 jun. 2017. 

     

    CALDERÓN, Ricardo. Reflexos da decisão do STF de acolher socioafetividade e multiparentalidade. Consultor Jurídico, São Paulo, 2016. Disponível em: http:// http://www.conjur.com.br/2016-set-25/processo-familiar-reflexos-decisao-stf-acolher-socioafetividade-multiparentalidade>. Acesso em: 16 maio 2017.   

     

    DECLARAÇÃO Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm >.   Acesso em: 08 jul. 2017

     

    DILL, Michele. Evolução histórica e legislativa da família e da filiação. Âmbito Jurídico, Rio Grande. Disponível em: < http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?nlink=revista_artigos_leituraeartigo id=9019>.  Acesso em: 20 set 2017.

     

    DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

     

    FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

     

    FARIAS, C. C. de; ROSENVALD, N. Curso de Direito Civil: Famílias. 4. ed. Salvador: Juspodivm, 2012.

     

    GAMA, Guilherme C. N. Direito de família brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001.

     

    LEITE, Eduardo de O. Famílias monoparentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

     

    LÔBO, Paulo. Direito Civil: obrigações. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

     

    MADALENO, R.; BARBOSA, E. Responsabilidade civil no direito de família. São Paulo: Atlas, 2015.

    MULTIPARENTALIDADE. Videoaula com prof. Nelson Sussumu. São Paulo: LEGALE, 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=L4h2INZTdc4>. Acesso em: 18 maio 2017.

     

    NARDI, Norberto L. et al (Org.). Direito acontecendo na união estável. V. IX. São Paulo: LedriPrint, 2017.

     

    PEREIRA, Virgilio Sá. Direito de Família. In: NARDI, Norberto L. et al (Org.). Direito acontecendo na união estável. V. IX. São Paulo: LedriPrint, 2017. p. 39.

     

    PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de Família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

     

    PRITCHARD, Alan. Statistical bibliography or bibliometrics? Journal of documentation. (London) 25(4):348, 349, Dec. 1969.

     

    RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. Vol.  6. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

     

    SHIKICIMA, Nelson S. Lições de Direito da Família. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

     

    SCHREIBER, Anderson. STF, Repercussão Geral 622: a Multiparentalidade e seus Efeitos. GENjurídico, São Paulo, 30 out. 2017. Disponível em: http:// genjuridico.com.br/2017/10/30/stf-repercussao-geral-622-multiparentalidade-e-seus-efeitos/>. Acesso em: 15 maio 2017.

     

    TARDELLI, Carla M.; SILVA, Leandro S. O que tem mais valor, afeto ou sangue. JusBrasil. Disponível em: <https://moradeiesouto.jusbrasil.com.br/artigos/111683979/o-que-tem-mais-valor-afeto-ou-sangue>. Acesso em: 14 jun. 2017.

     

    TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito de família. V. 5. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.

     

    VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

     

    WALD, Arnoldo. Direito de Família. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.


    Acs Assistência Jurídica

    Bacharel em Direito - Vera Cruz, RS


    Comentários