O DIREITO FUNDAMENTAL AO LIVRE PLANEJAMENTO FAMILIAR, A AUTONOMIA PRIVADA, A ÉTICA E A BIOÉTICA DIANTE DA INTERVENÇÃO ESTATAL
Marcos José Vieira Dos Santos[1]
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.. 3
2 DIREITO FUNDAMENTAL AO LIVRE PLANEJAMENTO FAMILIAR.. 4
3 AUTONOMIA PRIVADA, ÉTICA E BIOÉTICA.. 8
4 INTERVENÇÃO ESTATAL NO PLANEJAMENTO FAMILIAR.. 12
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 17
6 REFERÊNCIAS. 20
RESUMO
Trata o presente artigo da análise da autonomia privada no exercício da liberdade decisória do livre planejamento familiar, no âmbito de autodeterminação dos indivíduos na realização do seu projeto familiar de parentalidade. Necessário o avanço do reconhecimento do valor jurídico do afeto, na preservação do instituto jurídico família como ambiente de livre decisão diante de do desenvolvimento familiar. Desta forma, perante a pluralidade de conjunturas familiares necessária a busca eficaz da resolução dos conflitos entre os sujeitos de direitos e o Estado, porém são relações jurídicas que encontram alicerce nos princípios do texto constitucional e que não possuem um entendimento homogêneo. O constante alinhamento do ordenamento jurídico estatal diante do avanço da sociedade e da ciência impõe uma precisa reestruturação normativa e ampliação da definição da liberdade de planejamento familiar. A problemática concentra-se na referida interferência estatal demasiada no direito de família, e o não cumprimento dos direitos fundamentais constitucionais no que tange o planejamento familiar. A metodologia utilizada foi a hipotético-dedutiva, pois a partir de dados gerais, inferiram-se conclusões a respeito do fato específico. Portanto, parte-se de uma situação geral para uma específica, na interpretação e análise dos fenômenos, atribuindo-os significados, que não podem ser analisados quantitativamente. Estruturou-se, assim, o método, o procedimento monográfico e as técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.
Palavras-chave: Livre Planejamento Familiar. Autonomia Privada. Autonomia da Vontade. Direito Público. Direito Privado.
ABSTRACT
This article deals with the analysis of private autonomy in the exercise of the freedom of decision of free family planning, in the scope of self-determination of individuals in the realization of their family project of parenthood. It is necessary to advance the recognition of the legal value of affection, in the preservation of the legal institute family as an environment of free decision in the face of family development. Thus, in the face of the plurality of family conjunctures, it is necessary to effectively seek the resolution of conflicts between the subjects of rights and the State, but these are legal relationships that are based on the principles of the constitutional text and that do not have a homogeneous understanding. The constant alignment of the State legal system with the advances in society and science requires a precise normative restructuring and expansion of the definition of freedom of family planning. The problem focuses on the aforementioned excessive state interference in family law, and the non-compliance with constitutional fundamental rights regarding family planning. The methodology used was hypothetical-deductive, because from general data, conclusions are inferred regarding the specific fact. Therefore, it starts from a general situation to a specific one, in the interpretation and analysis of the phenomena, giving them meanings that cannot be analyzed quantitatively. Thus, the method, the monographic procedure and the techniques of bibliographic and documental research were structured.
Keywords: Free Family Planning. Private Autonomy. Autonomy of the Will. Public right. Private right.
1 INTRODUÇÃO
A família contemporânea preza pela personalização, liberdade e pelo bem-estar dos membros da família, espaço que deve ser marcado por afeto, respeito e diálogo. No entanto, entende-se que os dispositivos legais vigentes representam uma excessiva ingerência do Estado na esfera familiar.
A justificativa de estudar o presente tema está fundada na importância social de se abordar o direito fundamental do livre planejamento familiar e possui extrema relevância, pois é necessário o alinhamento dos conceitos de ética e bioética no atendimento à sensibilidade do Direito de Família, sendo neste contexto preciso estabelecer o limite da intervenção estatal na Família. Realiza-se uma análise do ordenamento jurídico vigente, e também da doutrina a qual aborda o tema sob um viés constitucional diante da dicotomia do Direito Público e do Direito Privado.
A estrutura deste estudo está dividida em três capítulos, sendo que o primeiro capítulo traz a fundamentação sobre o sistema jurídico do direito fundamental ao planejamento familiar, o segundo capítulo trata da conceituação de autonomia privada, de ética e da bioética e no terceiro capítulo intervenção estatal e o conceito do Direito de Família Mínimo.
Desta forma, analisa-se o direito fundamental constitucional do livre planejamento familiar, no qual se conceitua autonomia da vontade, autonomia privada, ética e bioética, e no desenvolvimento da fundamentação teórica em que se delimita os preceitos de Direito de Família Mínimo e da intervenção estatal.
2 DIREITO FUNDAMENTAL AO LIVRE PLANEJAMENTO FAMILIAR
A instituição do Estado Democrático de Direito pressupõe um sistema juridicamente organizado, no qual devem a sociedade e o Estado estarem subordinados à legislação vigente, o que vai ao encontro de uma realidade com o objetivo de se estabelecer proteção aos direitos humanos fundamentais aos seus indivíduos.
Robert Alexy escreve a respeito da concepção axiológica dos direitos fundamentais, os quais correspondem a um sistema de valores e princípios de alcance universal que embasam o ordenamento jurídico, de acordo:
A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais entende que tais direitos correspondem a um sistema de valores e princípios de alcance universal que formam o ordenamento jurídico e complementam a visão subjetiva e individual proposta por Jellinek, segundo a qual o indivíduo possui, perante o Estado, os seguintes ‘status’: ‘subiecciones’, em que o indivíduo é “súdito” do poder estatal; ‘negativus’, em que é reconhecida a liberdade do homem; ‘activus’, correspondente aos direitos políticos; e ‘positivus’, que confere ao indivíduo a garantia de reclamar prestações positivas do Estado.[2]
A Constituição da República Federativa do Brasil prescreve em seu art. 5º os direitos e garantias individuais e coletivos pelo estabelecimento dos direitos civis e garantias processuais e, ao enunciar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, vem estabelecer um dever jurídico que, na esfera da ética, nos deve doutrinar a respeito de nosso próximo como base do princípio da isonomia. O conceito de família fundamentado na afetividade está esculpido na Constituição Federal, a qual protege a igualdade, a integridade psicofísica e a liberdade de seus membros.
Maria Helena Diniz menciona a importante mudança estabelecida pela Carta Magna de 1988, pela Lei 9278 de 1996, e também, posteriormente, pelo Código Civil de 2002, os quais reconhecem como a família pode ser formada, conforme:
Inova, assim, a Constituição de 1988 ao retirar a expressão da antiga Carta (art. 175) de que só seria núcleo familiar o constituído pelo casamento. Assim sendo, a Carta Magna de 1988 e a Lei n. 9278/96, art. 1º, e o Código Civil, arts. 1511, 1513, e 1723, vieram a reconhecer como família a decorrente de matrimônio (art. 226, §§ 1º e 2º, da CF/88) e como entidade familiar não só a oriunda de união estável como também a comunidade monoparental (CF/88, art. 226, §§ 3º e 4º) formada por qualquer dos pais e a tenha originado (JB, 166:277 2 324). A família monoparental ou unilateral desvincula-se da ideia de um casal relacionado com seus filhos, pois estes vivem apenas com um de seus genitores, em razão de viuvez, separação judicial, divórcio. Adoção unilateral, não reconhecimento de sua filiação pelo outro genitor, “ produção independente” etc. Portanto, a família natural é a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendestes (ECA, art. 25).[3]
Maria Celina Bodin de Moraes e Ana Carolina Brochado Teixeira apontam a respeito da evolução da família contemporânea, em suas configurações admitidas pelo ordenamento jurídico, que:
A relação familiar não é mais unitária, admitindo-se, juridicamente, configurações diferenciadas de família. A Constituição reconheceu no art. 226, além da família fundada no casamento, a união estável entre homem e mulher e a família monoparental. Estas são evidências de que, privilegia-se a espontaneidade do afeto sobre estruturas formais, podendo-se perceber a opção do constituinte em favor da igualdade, da solidariedade, da integridade psicofísica e da liberdade também nas chamadas comunidades intermediárias. (...) Desta forma, ocorre uma mudança do modelo de família instituição para o de família instrumento, e com isso objetivando propiciar circunstâncias adequadas ao desenvolvimento da personalidade de seus membros e preza pela autonomia individual.”[4]
A evolução da família como instrumento de cumprimento dos direitos fundamentais, significa o respeito do princípio da dignidade humana do ordenamento jurídico pátrio, no qual também o princípio do planejamento familiar e o princípio da paternidade responsável repousam no alicerce normativo da garantia do mínimo existencial familiar. Portanto, direitos primordiais existenciais assegurados pela Carta Magna de 1988 que faz “da família a base da sociedade, e tem especial proteção estatal”, conforme o seu art. 226, caput. A respeito do princípio da dignidade humana e da paternidade responsável a Constituição Federal em seu art. 226, § 7º, estabelece os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, e ressalta que o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, e estabelecendo a vedação de qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
O direito fundamental ao planejamento familiar, portanto, encontra-se esculpido na norma maior, e, por conseguinte, também regulamentado no Código Civil o qual prescreve no §2º do Art. 1.565 que o planejamento familiar tem no Estado a função deste de propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, com a mesma vedação trazida pela Constituição Federal de qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.
Desta forma, as decisões que dizem respeito à estruturação da família cabem à célula familiar, ambiente que se tem a afetividade estabelecida, sendo o afeto a base das relações familiares contemporâneas, e entende-se que não cabe ao Estado interferir nas decisões do desenvolvimento familiar responsável pelo que se extrai do arcabouço do sistema jurídico. Acerca da legislação, ela é bastante determinante no Art. 1º da Lei 9.263 de 1996, a qual ressalta que o planejamento familiar como um direito de todo cidadão.
Sendo que o referido direito regulado consubstancia o direito fundamental de planejar de forma livre o nascimento dos filhos na entidade familiar constituída. Específica ainda o art. 2º dessa mesma lei que o planejamento familiar é um conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
A Lei 13.146 de 2015, também denominada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, traz uma consonância com o sistema jurídico de capacidade civil dentro de nosso ordenamento, no qual a pessoa com deficiência possa decidir sobre o seu planejamento familiar, de forma literal, e assim solidificar o posicionamento objetivo do legislador, no qual o Estado não venha a intervir nas decisões de cunho familiar no que tange o seu desenvolvimento, conforme o art. 6º, Inc. III é de pleno direito decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar.
Portanto, a legislação permite claramente que a pessoa com deficiência tome a decisão sobre o número de filhos que quer ter e de ter acesso a informações adequadas de reprodução e planejamento familiar. Desta forma, mesmo a pessoa que não possua discernimento completo possa de acordo com a referida lei exercer os seus direitos sexuais e reprodutivos, pois se trata de direito fundamental, incluído e estabelecido de pleno direito pela lei, ocorre a aplicabilidade dos direitos existenciais de constituir família e de reprodução, em que a norma legal especificada possui em seu conteúdo questões de matéria de ordem pública, lei de Estado.
Assim, o estatuto da pessoa com deficiência trouxe o respeito ao princípio da autonomia da vontade das pessoas, dos membros da entidade familiar, no qual há reconhecimento da possibilidade de agirem de forma livre, de acordo com seus planos estabelecidos legalmente para o desenvolvimento familiar.
Esse arcabouço jurídico, alinhado às teorias de autonomias, em que há plena independência e a capacidade de agir, de acordo com a decisão a ser tomada, significa a garantia da privacidade, da proteção dos entes familiares e do livre planejamento familiar.
A respeito da democratização na família Suzana Gonçalves Lima e Silva e Rosângela Aparecida Silva, mencionam que “a democratização da estrutura familiar sugere que a família contemporânea deve ter como alicerce a igualdade, o respeito e a tomada de decisões por meio do diálogo”.[5]
Maria Helena Diniz escreve que se deve avistar na família a convivência, pautada na afetividade, e sua composição não apenas do casamento, mas no companheirismo, nas espécies de adoção e de monoparentalidade, de acordo:
Deve-se, portanto, vislumbrar na família uma possibilidade de convivência, marcada pelo afeto e pelo amor, fundada não apenas no casamento, mas também no companheirismo, na adoção e na moparentabilidade. É dela o núcleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. É o instrumento para a realização integral do ser humano.[6]
A liberdade decisória pautada na autonomia da vontade, no âmbito familiar da família contemporânea, trata-se de um direito fundamental que sustenta a garantia da isonomia dentre os membros familiares. Portanto, a autonomia privada, consagra-se como um direito inequívoco e indiscutivelmente deve ser um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
Laura Xavier de Moraes escreve sobre os benefícios trazidos pelas tecnologias na área de reprodução humana, e que geram dilemas bioéticos ainda que que tragam vantagens no aspecto da saúde pública e individual. Aponta ainda que o planejamento familiar diante da interferência estatal deve ser relacionado ao direito de liberdade e reprodutivo do indivíduo, para que fundamente a discussão sobre tais dilemas com a finalidade de evitar retrocessos sociais, de acordo:
A tecnologia reprodutiva atual pode curar doenças genéticas por meio da manipulação de genes e seleção de gametas ‘in vitro’, trazendo benefícios a indivíduos que ainda serão gerados. Entretanto, como os avanços tecnológicos andam mais rapidamente do que as discussões bioéticas surgem dilemas práticos e teóricos. Mesmo que as técnicas de manipulação de pré-embriões apresentem vantagens para a saúde pública e individual, não se deve menosprezar os limites históricos e ideológicos que nos impedem de socializar esses benefícios.
(...)
Os dilemas bioéticos que emergem do planejamento familiar estão relacionados ao direito à liberdade e autonomia sexual/reprodutiva (principalmente das mulheres), à interferência de governos no planejamento familiar e reprodutivo, às barreiras socioculturais e religiosas ao planejamento familiar, e aos avanços tecnológicos que possibilitam a manipulação de pré-embriões. A discussão sobre esses dilemas precisa ser intensificada a fim de impedir retrocessos no campo da saúde e dos direitos reprodutivos.[7]
Os avanços tecnológicos estabelecem as discussões bioéticas, ocorrendo dilemas práticos e teóricos no âmbito da saúde pública e individual, porém não se deve menosprezar os limites jurídicos e os fatores ideológicos que nos impedem de contar civilizadamente com esses benefícios.
3 AUTONOMIA PRIVADA, ÉTICA E BIOÉTICA
A autonomia privada encontra seu embasamento no ordenamento jurídico, trata-se de um poder regulado pela lei que, assim, estabelece parâmetros no âmbito do direito privado para a garantia de que a vontade da pessoa seja respeitada.
Wilson Steinmetz escreve sobre o alcance da autonomia privada no ordenamento jurídico, conforme:
A autonomia privada consiste no poder geral de autodeterminação e autovinculação das pessoas tutelado no direito geral de liberdade, no princípio da livre iniciativa, no direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, no direito de propriedade, no direito de herança e no direito de proteção da família, do casamento, da união estável (arts. 1º, IV; 5º, caput, XIII, XXII e XXX; 7º, XXVI; 170, caput; 226, caput, §§1º ao 4º, CF).[8]
A autonomia privada sobressalta no âmbito familiar quando se está diante de uma situação de vulnerabilidade, na qual há a necessidade de tomadas de decisões que são sensíveis à família, e que podem tais escolhas ultrapassar os ditames estatais de legalidade na figura do seu ordenamento jurídico.
A referida autonomia pode exacerbar a sua esfera permissiva, pois em certas situações enfrenta aquilo que não é permitido pelo Estado, no que tange a legislação não ter a devida regulamentação. As famílias recorrem ao Judiciário na busca de soluções diante das suas necessidades que urgem dentro do ambiente familiar, que é o mais sensível, e deve ser o mais preservado, de acordo com os ditames constitucionais de proteção a família.
Assim, a autonomia privada deve transitar sobre os ladrilhos da ética, em não sendo atendida a conduta pela legislação vigente à judicialização deve ser o caminho, para que sejam equacionados os argumentos e os desafios de comportamento humano na busca de do seu livre planejamento familiar sejam superados de forma civilizatória.
Narciso Leandro Xavier Baez e Germano Alves de Lima estabelecem os limites da autonomia privada diante das situações da vida civil, conforme:
Em algumas situações, são aplicados por mera subsunção do fato à hipótese prevista em lei, como é o caso das regras referentes à capacidade civil prevista nos artigos 3º e 4º do Código Civil; em outras, contudo, são tênues e precisam ser ponderados com outros valores existentes no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre com os limites decorrentes da proteção à dignidade humana, da proteção aos direitos da personalidade e da proteção aos direitos fundamentais. Porém, em todas as hipóteses, o exercício da autonomia privada será limitado com vistas à justiça contratual e social.[9]
Desta forma, a fronteira da autonomia privada passa por uma análise de valores jurídicos pré-existentes no ordenamento jurídico, sem que se avance sobre os limites contratuais e sociais.
O conceito de ética como ciência, e sua relação com a moral o seu objeto no espelhamento do comportamento humano, conforme José Renato Nalini:
Ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. É uma ciência, pois tem objeto próprio, leis próprias e método próprio, na singela identificação do caráter científico de um determinado ramo do conhecimento. O objeto da ética é a moral. A moral é um dos aspectos do comportamento humano. A expressão moral deriva da palavra romana ‘mores’, como o sentido de costumes, conjunto de normas adquiridas pelo hábito reiterado de sua prática.[10]
Entende-se, portanto, que a ética e a moral inter-relacionam-se, e assim, congregam com a sociedade comportamental humana padrões, através das leis e métodos no ramo específico do conhecimento em que se propõe estabelecer uma análise sócio-jurídico-científica.
Adela Cortina apresenta o conceito de ética que monta uma relação com o modo de ser ou caráter do indivíduo, o qual prescreve:
A origem etimológica de Ética é o vocábulo grego ‘ethos’, a significar "morada", "lugar onde se habita". Mas também quer dizer "modo de ser" ou "caráter". Esse "modo de ser" é a aquisição de características resultantes da nossa forma de vida. A reiteração de certos hábitos nos faz virtuosos ou viciados. Dessa forma, o ‘ethos’ é o caráter impresso na alma por hábito.[11]
A ética tradicional possui o desafio de rever seus valores para enfrentar as mudanças da sociedade, e em decorrência disso a alteração do ordenamento jurídico é extremamente para amoldar o direito ao comportamento evolutivo social, que se relaciona com o comportamento político, contexto social e moral da sociedade.
Giana Lisa Zanardo Sartori escreve sobre as transformações tecnocientíficas que contribuem para os anseios da sociedade através de suas novas práticas, fomentando o despertar da consciência ética, conforme:
Desta forma, a Biologia e a Medicina - áreas do conhecimento que trabalham diretamente com a vida e seus contornos - exigiram reflexões de caráter ético - dando origem à Bioética, que abrange uma série de situações que a Ética Tradicional não consegue abarcar - regras deontológicas, que hoje são insuficientes para os problemas decorrentes das conquistas biomédicas. É preciso integrar a cultura humanística à tecnocientífica das ciências e essa conjugação visa refletir sobre as intervenções do homem sobre si, sobre os demais seres vivos, além de apontar normas e valores que orientem o agir humano e a interferência da tecnologia sobre a vida e a biosfera. O conhecimento bioético pretende resgatar noções morais de caráter individual e social, para que se consiga proporcionar amparo à Sociedade, preservando a vida e a dignidade das pessoas e o destino da humanidade.[12]
Karl Otto Apel menciona sobre as consequências tecnológicas da ciência que produziram uma situação em que as normas morais clássicas não alcançam mais a necessidade de posicionamento diante das situações contemporâneas, conforme:
A tentativa de viver em um mundo alheio à ética e seus valores, hoje, é foco de vários problemas, não só na área do progresso científico como também na política, na economia, na cultura em geral. A rapidez e a infinidade de avanços científicos e tecnológicos influenciaram a postura da Ética Tradicional que se deparou com o desafio de rever valores, para posicionar-se diante das mudanças. O ponto de partida deve ser a moral e sua relação com a conduta humana, além dos princípios e normas que dela derivam.[13]
William Saad Hossne e Macro Segre descrevem que a ética como reflexão e um juízo crítico sobre valores, e que podem ser exercidos pressupondo uma condição essencial que é a liberdade, de acordo. A ética é precipuamente uma reflexão e um juízo crítico sobre valores, não sendo raros os conflitos e o surgimento dos em dilemas éticos. Essa reflexão e juízo devem nos levar, individualmente, à opção de valores. A escolha é de cada um, em que os valores não são meramente impostos pelos usos e costumes. Na ciência de que a ética implica em uma opção, para poder ser exercida, pressupõe uma condição essencial, ‘sine qua non’, chamada de liberdade. Desta forma, exercer a ética será possível desde que a liberdade de opção, com a devida responsabilidade, não houver sido tolhida. Junto da liberdade, a Bioética pressupõe a necessidade de outras condições, tais como: não preconceito, humildade para respeitar o ponto de vista do outro (alteridade) e da grandeza de alma para alterar a opção caso ela se demonstre equivocada ou inadequada. Assim justifica-se falar em ética da reflexão autônoma.”[14]
A Bioética por meio de uma metodologia interdisciplinar deve ser compreendida através da junção de profissionais de diversas áreas: da educação, do direito, da sociologia, da economia, da teologia, da psicologia e da medicina, e assim devem participar das discussões sobre os temas que envolvem o impacto da tecnologia sobre a vida humana.
Além do conceito de ética, e seus valores relacionados, traz luz ao comportamento do indivíduo o conceito da bioética, diametralmente interdependente. Salvino Leone, Salvatore Privatera e Jorge Teixeira da Cunha escrevem que a bioética “tem como objetivo indicar os limites e as finalidades da intervenção do homem sobre a vida, identificar os valores de referência racionalmente proponíveis, denunciar os riscos das possíveis aplicações.”[15]
A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos coloca o respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade pessoal como princípio, constituindo, também, a base para os demais que tratam da dignidade humana. Enfatiza que compete ao poder público garantir a proteção de todos, segundo o princípio da Justiça, e, principalmente, aos mais vulneráveis, de acordo com a equidade, enquanto estiverem nessa condição especial, conforme o art. 8º:
A vulnerabilidade humana deve ser levada em consideração na aplicação e no avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e de tecnologias associadas. Indivíduos e grupos de vulnerabilidade específica devem ser protegidos e a integridade individual de cada um deve ser respeitada[16].
A vulnerabilidade humana que se apresenta na realidade de famílias traz a necessidade de análise com critério, porém a concretude do fato jurídico revela atitude e o exercício da autonomia privada, diante de uma realidade que se impõe quando tratamos de preservação da vida.
Assim, apresenta-se a fragilidade da vida no caso da necessidade de transplante de células tronco entre irmãos para a tentativa de salvar um deles, surge aqui a reinvindicação de um direito fundamental diante de uma situação delicada, difícil. Nesta situação, específica em que se tem um membro da família com uma doença grave, na iminência de um ser humano ser compatível para realizar um transplante, não há que se furtar tamanha possibilidade de se conseguir salvar a vida do membro familiar. Desta forma a família possui o pleno direito de considerar todas as possibilidades que a ciência proporciona, na tentativa de restabelecer a dignidade humana daquele ente familiar.
Márcio Fabri dos Anjos estabelece a relação entre autonomia privada e a vulnerabilidade no fato jurídico da separação conjugal, e uma vez delimitada a vulnerabilidade, esta serve de alicerce para a resolução das situações de conflito, de acordo:
A autonomia e vulnerabilidade são “parceiras”, pois o equacionamento das vulnerabilidades leva ao enfrentamento e superação através da conquista da autonomia com responsabilidade. Para compreender melhor a família que se separa, no entendimento e ajuda a situações de conflito, aplicamos os referenciais da vulnerabilidade e da autonomia, segundo a ótica da condição humana contemporânea[17].
A autonomia privada permite o enfrentamento das vulnerabilidades, e de forma responsável, deve estar dentro da esfera da ética, e ainda concêntrica à perspectiva da moral da sociedade a qual a família se desenvolve.
Quando se trata de dignidade humana, tem-se a compreensão de que os valores humanos devem ser preservados, dos quais repousa a decisão familiar dos pais de poder salvar a vida do filho com doença grave, o que se materializa é a possibilidade de afastar a ameaça da vida de um ente familiar.
Compreende-se, portanto, que a decisão familiar de trazer outra vida para salvar outra, portanto, outra vida que está ameaçada, e neste caso, a conduta está revestida de ética e amparada pela os preceitos constitucionais, conduta que conserva os valores humanos no ambiente familiar, e, por conseguinte, traz mais vida literalmente à família.
A defesa da vida humana é direito fundamental estabelecido em lei que repousa nas ações da entidade familiar, na salvaguarda de um filho que tem sua dignidade humana preservada, respeitando a ética e esculpindo a solidez da afetividade já existente na família, na busca de conservar a vida de um ente familiar acometido por uma doença avassaladora, e que possui chances reduzidíssimas por depender de doador compatível. Ainda que não haja na legislação instrumento jurídico para regular os aspectos éticos e as limitações dos procedimentos nas ações médicas na reprodução assistida.
Entende-se que a decisão de salvar uma vida está plenamente revestida de princípios constitucionais, repleta de legalidade e de legitimidade. Assim, os atos necessários para possibilitar a execução dos procedimentos científicos existentes com o propósito finalístico de conservar a vida, repousam de plena ética, e esta decisão moralmente consonante especificamente com o princípio constitucional da dignidade humana, a qual significa a verdadeira humanização da vida.
4 INTERVENÇÃO ESTATAL NO DIREITO DE FAMÍLIA
Os princípios da paternidade responsável e do planejamento familiar, na consagração do poder familiar, perfaz no direito do livre planejamento familiar a possibilidade da constituição familiar baseada no afeto, da pluralidade das formas de família, da liberdade da dissolução do casamento e do melhor interesse do menor.
Flávio Tartuce escreve sobre o afeto, “que sem dúvida, atualmente, é o principal fundamento das relações familiares. Mesmo que não conste de forma literal a palavra afeto no texto da Constituição Federal como um direito fundamental, e que se pode concluir que o afeto decorre da valorização constante da dignidade humana”.[18]
Necessário um comparativo entre o instituto da autonomia privada e da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. O direito privado, deve se ocupar da tutela das relações entre os indivíduos, enquanto o direito público deve limitar-se a restringir a intervenção estatal no âmbito particular.
A autonomia privada no ambiente familiar significa o instrumento próprio desenvolvimento familiar, sem restrições ou impedimentos, que tem no Direito de Família Mínimo um sistema jurídico que o autoriza a tomada de decisão para a execução do necessário na defesa dos indivíduos da família.
Eduarda Schiling Lanfredini e Rodrigo Rosa de Lima prescrevem que o Direito de Família Mínimo significa a interferência mínima do Estado nas relações familiares, conforme:
O Direito de Família Mínimo, conhecido também como a mínima intervenção do Estado nas relações familiares, prega e reconhece a capacidade do sujeito de administrar as relações firmadas e da consequente desnecessidade da ingerência estatal, salvo quando estivermos diante de situações revestidas de vulnerabilidade, como a iminência de risco a crianças, adolescentes ou pessoas idosas.[19]
O direito privado determina a regência dos interesses das pessoas particulares, sendo preciso para definir os seus limites, estabelecer as esferas do direito público e o direito privado, a fim de que seja possível enquadrar as normativas jurídicas híbridas que envolvem a família, de forma a delinear o direito de família mínimo.
Leonardo Barreto Moreira Alves aponta sobre o princípio da intervenção mínima do Direito de Família, e que por força de tal preceito ocorre a identificação do Direito de Família Mínimo que repousa nele o exercício da autonomia privada dos membros familiares, de acordo:
É justamente essa a concepção do princípio da intervenção mínima no âmbito do Direito de Família (...). Por ele se entende que a intervenção do Estado nas relações familiares só deve ocorrer excepcionalmente, em situações extremas, como ultima ‘ratio’, já que, como visto, deve prevalecer a regra geral da liberdade dos membros da família.
Por força do reconhecimento do princípio em tela, identifica-se atualmente um Direito de Família Mínimo, um Direito de Família no qual deve prevalecer, como regra geral, o exercício da autonomia privada dos componentes de uma família, pois somente dessa forma será possível efetivamente lhes garantir o implemento dos seus direitos fundamentais, o desenvolvimento da sua personalidade.[20]
João Baptista Villela destaca que, “nas relações de Direito de Família de cunho extrapatrimonial, se verifica a inaplicabilidade da coerção de uma determinada norma jurídica, prevalecendo-se a responsabilidade de cada cidadão, entendida como uma resposta ética da consciência do homem (interior) para a sociedade (exterior). Assim, há que reconhecer a total inaplicabilidade da coerção em grande parte das situações jurídicas. O direito de família, excluindo-se os conteúdos de caráter patrimonial, possui literalmente um direito impassível de execução coercitiva.”[21]
André Luiz freire traz os conceitos a partir de um critério formal do direito público e privado, de acordo:
(...) é possível conceituar o direito público, a partir de um critério formal, como sendo o conjunto de normas jurídicas que disciplinam o exercício das atividades públicas (ou das funções públicas). Já o direito privado pode ser definido como sendo o conjunto de normas que disciplinam o exercício das atividades privadas. Nesse conceito, está implícito: quem exerce a atividade, como a exerce, qual o seu conteúdo e quais os limites. Ao direito público caberá disciplinar o sujeito que exerce a atividade pública (organização político-administrativa e exercício de funções públicas por entes privados), os meios técnico-jurídicos por ele utilizados (leis, atos administrativos, processo etc.), o conteúdo dessa atividade (inovação jurídica em caráter originário, resolução de casos concretos com força de definitividade, serviço público etc.) e os seus limites (ex.: controle de constitucionalidade). O mesmo vale para o direito privado no que se refere à atividade privada. Ressalte-se que o conceito de direito público acima apresentado não leva a uma identidade desse ramo com o exercício de poderes públicos. Em primeiro lugar, porque, como já destacado, o dever de realização de fins públicos domina o direito público. Em segundo, porque o Estado é titular de outras posições jurídicas, como direitos a prestações, sem que isso signifique submissão aos princípios do direito privado.[22]
O direito de família, apesar de possuir vínculo com as normas de ordem pública, pertence ao direito privado, uma vez que as referidas intervenções estatais normativas não retiram a eficácia da autonomia privada. O que ocorre é a existência de um círculo normativo que estabelece os limites da autonomia da vontade no ambiente decisório familiar, e a distinção entre o direito público e o direito privado está na diferença de regime, sendo direito público ter como base os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da sua indisponibilidade do interesse público fundamentando os poderes estatais, e o direito privado estabelece as limitações do indivíduo.
Francisco dos Santos Amaral Neto apresenta a finalidade de um princípio ou norma jurídica, em que estabelecem limites para evitar o abuso de direito, conforme:
A funcionalização de um princípio ou norma implica sua positivação normativa e o estabelecimento de limites por meio de regras ou princípios vinculantes, com o fim de evitar-se o abuso de direito. Isso porque, ao atribuir uma função social a determinado direito, o interesse social passa a se sobrepor ao interesse individual, justificando a intervenção do Estado no sentido de promover a igualdade material necessária ao fiel cumprimento daquela função, de acordo com o bem comum.[23]
O Estado não pode intervir nas relações firmadas, isto porque a família tem na sua composição imaterial a expressão e representação do livre arbítrio do indivíduo, que tem no seu seio o afeto como valor jurídico. Dimas Messias de Carvalho descreve sobre o afeto como valor jurídico na concepção do Direito de Família, conforme:
O afeto como valor jurídico importa nova concepção do Direito de Família na sua relação entre o público e o privado. A intervenção do Estado na família deve ser frequente, mas apenas protetiva, especialmente para os incapazes e pessoas fragilizadas, evitando abusos e proporcionando seu desenvolvimento, sem ingerência na sua constituição e manutenção. O Direito de Família, por consequência, é ramo de direito privado, regulado por normas cogentes ou de ordem pública, com forte intervenção protetiva do Estado, mas respeitando a vontade de seus membros; suas instituições jurídicas são de direito-deveres; é direito personalíssimo, irrenunciável e intransmissível.[24]
O conceito do direito de família mínimo estabelece a mínima intervenção do Estado nas relações familiares, prega e reconhece, a capacidade do sujeito de administrar as relações firmadas e da consequente desnecessidade da ingerência estatal. O Estado diante das modificações contemporâneas na vivência do direito de família, e da aceitação da afetividade como um princípio fundamental, deve atuar de acordo com o direito de família mínimo que tendo como finalidade a demonstração da intensidade e da abrangência da autonomia privada no âmbito familiar, privilegiando, assim, o instituto da autonomia da vontade na formação e no regramento das relações familiares.
Leonardo Barreto Moreira Alves demonstra que a parentalidade socioafetiva está na esteira da autonomia da vontade, conforme:
A parentalidade socioafetiva também pode ser apontada como concretização da relação entre afeto e autonomia privada. Além disso, segundo Faria (2007, p. 64), “Na relação indivíduo-família, aquele deve possuir autonomia para a tomada de decisões com relação, por exemplo, à direção do núcleo familiar, à fixação do domicílio, a opção quanto à guarda e educação dos filhos”. Nessa mesma linha, relembre-se que a Constituição Federal, no seu artigo 226, § 7º, estabelece que o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado apenas o dever de propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, sendo vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas (BRASIL, 1988).[25]
O Estado deve se preocupar em tutelar as liberdades da instituição familiar, e procurar não interferir nelas, desta forma não considerando a família como um componente do Estado, através de edição e aplicação de normas de caráter impositivo, a imposição de diversas normas cogentes.
O instituto da autonomia privada possui uma diferenciação em relação à autonomia da vontade com a sua aplicação nas legislações que tutelam as relações familiares. Pietro Perlingieri traz o conceito de autonomia privada, conforme:
(...) poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas (...) como consequência de comportamentos - em qualquer medida - livremente assumidos. Na base desta concepção reside, frequentemente, de modo somente tendencial, a liberdade de regular por si as próprias ações ou, mais precisamente, de permitir a todos os indivíduos envolvidos em um comportamento comum determinar as regras daquele comportamento através de um entendimento comum.[26]
A autonomia privada traz a permissividade do Estado para que o indivíduo possa decidir livremente na sua esfera íntima, uma vez que o ordenamento jurídico tutela as ações individuais autorizadas. O indivíduo decide no arcabouço normativo do direito privado, quais normas jurídicas serão aplicadas, ações que invadem tanto as questões afetivas quanto as patrimoniais.
Francisco Amaral estabelece o limite da autonomia da vontade no ordenamento jurídico nos casos de matéria de ordem pública, de acordo:
O limite conhecido como “ordem pública” tem como objetivo evitar o abuso de direito, por meio de um conjunto de normas jurídicas que regulam e protegem os interesses fundamentais da sociedade e do Estado e, no Direito Privado, estabelecem as bases jurídicas fundamentais da ordem econômica, a exemplo do Código Civil e da Constituição Federal. O limite denominado “bons costumes”, por sua vez, representa o conjunto de regras morais que formam a mentalidade de um povo e que se expressam em princípios - lealdade contratual, proibição.[27]
Portanto, a autonomia privada consiste na permissão que o Estado oferece aos seus cidadãos para que estes decidam por si mesmos suas próprias regras de conduta, de acordo com suas vontades.
Ingo Wolgang Sarlet estabelece os limites da autonomia privada em relação à proteção da dignidade humana, conforme:
Assim, considerando que o bem jurídico tutelado por esta cláusula geral é a dignidade, característica exclusiva do ser humano, tem-se que o ser humano é o sujeito dessa tutela, de modo que o limite da dignidade é o próprio homem e qualquer atitude conflitante com a dignidade humana deve ser intolerável pelo Direito.[28]
A dignidade humana deve corresponder como um fim em si mesmo, não se transformando em instrumento para fins alheios, de modo a descaracterizar-se a pessoa humana como sujeito de direitos.
Narciso Leandro Xavier Baez e Germano Alves de Lima mencionam sobre os limites em relação a proteção dos direitos da personalidade, de acordo:
No Direito Brasileiro, estes direitos têm fontes híbridas: a cláusula geral de tutela da dignidade humana (art. 1º, III, CF), os direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição Federal e os artigos 11 e 12 do Código Civil. Tais direitos são gerais, absolutos, intransmissíveis, indisponíveis e vitalícios, extinguindo-se com a morte do titular. Dessas características, interessa ao presente estudo a indisponibilidade, ou seja, a impossibilidade de o sujeito determinar o destino de seus direitos.[29]
Luís Roberto Barroso relata que os direitos fundamentais e a autonomia privada representam a concretização do princípio da dignidade humana, e ter seu núcleo essencial preservado, de acordo:
Portanto, considerando que os direitos fundamentais, assim como a própria autonomia privada, representam facetas de concretização do princípio da dignidade humana, devem ter seu núcleo essencial respeitado, de modo que, se o núcleo essencial de determinado direito fundamental mostrar-se prejudicado no caso concreto, o indivíduo não terá condições de exercer plenamente sua vontade, razão pela qual deverá ter restringido o exercício da autonomia privada até que se restabeleçam, integralmente, os direitos fundamentais mais urgentes e necessários.[30]
Desta forma, a garantia dos direitos fundamentais representa o livre poder de exercício da autonomia privada sem que haja há abuso de direito, assegurando o pleno desenvolvimento da personalidade e o respeito de uma escala de intensidade que varia de acordo com as dimensões econômicas e existenciais que caracterizam o caso concreto.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise doutrinária realizada permite verificar a necessidade de interferência mínima por parte do Estado na vida pessoal do cidadão por ele tutelado, no que diz respeito à entidade familiar por ele protegida, considerada célula principal da sociedade.
O princípio da autonomia da vontade dispõe que os indivíduos, desde que dotados de capacidade jurídica, têm o poder de praticar atos e assumir obrigações de acordo com a sua vontade. Porém, apesar de estabelecido o princípio da autonomia da vontade e definido pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, Inc. II, são necessárias restrições impostas ao referido princípio, por não ser absoluto.
O efetivo exercício da autonomia privada, no que tange o direito ao livre planejamento familiar, propriamente dito, não apenas se resume a autorização estatal e a efetivação de tal direito por aquele que deve zelar pela família como patrimônio social, a questão é mais ampla. A autonomia da vontade traz a liberdade decisória, mas em contrapartida a efetivação de direitos e cumprimentos de deveres no âmbito familiar desde a concepção do nascituro, do acompanhamento do regular desenvolvimento da criança, após o seu nascimento, e desenvolvimento da infância à adolescência. Claramente necessário o devido respeito às normativas jurídicas, e mais especificamente, ao Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei 8.069 de 1990, através da conscientização dos membros da família e das garantias asseguradas pelo Estado na proteção da família. Há que ser observada a lei vigente, a matéria de ordem pública e os bons costumes, ditames que não estão vinculados à vontade das partes, e que o direito ao planejamento familiar de forma ampla pulveriza as decisões e seus reflexos no seio familiar.
As ciências jurídicas devem ser dinâmicas na busca de atender a resolução dos conflitos contemporâneos, diante da evolução da sociedade e suas consequentes transformações. As normativas têm caráter híbrido no âmbito familiar, devendo haver uma análise dos seus princípios constitucionais, dos interesses coletivos na sobreposição dos direitos individuais, de forma a não descaracterizar ou a reclassificar os preceitos constitucionais para atender pontualmente o caso concreto. Ocorre a necessidade da materialização de um sistema jurídico robusto composto por normas de classificação heterogênea na formação de novos direitos e na esteira do surgimento de novas conjunturas sociais.
O respeito ao princípio da autonomia da vontade e sua esfera concêntrica com a autonomia privada das pessoas, sendo o reconhecimento da possibilidade de agirem de forma livre, e conforme seus planos estabelecidos para o desenvolvimento familiar, conforme as teorias de autonomias em que há a independência e a capacidade de agir de acordo com a decisão tomada.
As atuações estatais indevidas no Direito de Família merecem ser afastadas pois à intervenção do Estado no âmbito familiar deve ser em situações específicas e excepcionais, quando se tratar da defesa dos direitos fundamentais dos seus membros familiares.
Portanto, conclui-se que é necessário, na análise normativa atribuída à família, um diálogo entre as fontes de direito público e o direito privado, além dos limites da autonomia da vontade e da intervenção estatal, com a aplicação da hermenêutica jurídica nos casos concretos com a finalidade de estabelecer a interpretação da norma ao fato jurídico dando o verdadeiro sentido e o seu merecido alcance da norma jurídica, e, por sua vez, da sua esperada eficácia na preservação dos direitos fundamentais na esfera familiar.
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[1] Marcos José Vieira Dos Santos, Graduação em Direito e Pós-graduação em Direito Processual Civil 'Latu Sensu' pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina. Pós-graduando em Direito de Família e Sucessões 'Latu Sensu' pela Escola Superior do Mistério Público do Rio Grande Do Sul. Pós-graduação em Direito Médico e da Saúde 'Latu Sensu' pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Pós-Graduando em Direito em Bioética 'Latu Sensu' pela Faculdade Católica de Santa Catarina. Pós-Graduando em Direito de Energia 'Latu Sensu' pela Escola Superior da Magistratura Federal do Estado do Paraná. Advogado. E-mail: adv.marcosjose@gmail.com.