O PROCEDIMENTO DE RECONHECIMENTO DE PESSOAS: UMA ANÁLISE À LUZ DO DEVIDO PROCESSO LEGAL


05/06/2025 às 23h21
Por Advocacia Rodrigues

RESUMO

 

Esta pesquisa teve por objetivo analisar se a sujeição obrigatória do acusado ao procedimento de reconhecimento de pessoas e o procedimento irregular de reconhecimento de pessoas violam direitos e garantias fundamentais e, consequentemente, se são casos de nulidade. Para alcançar as respostas pretendidas, a pesquisa estudou a cláusula geral do devido processo legal e alguns princípios que dela decorrem, como o da vedação de prova ilícita e do nemo tenetur se detegere. Ademais, estudou-se o sistema de nulidades do ordenamento jurídico brasileiro, em suas noções gerais e normas basilares. Por fim, estudou-se também, em sede de psicologia jurídica, sobre o fenômeno da falsa memória, fato que ocorre bastante no momento do reconhecimento de pessoas. Conclui-se que sujeitar o acusado ao procedimento de reconhecimento de pessoa não viola o princípio da vedação da autoincriminação. Conclui-se também que o procedimento de reconhecimento de pessoas, inclusive o fotográfico, contra legen viola o devido processo legal e causa prejuízo à ordem pública, razão pela qual é caso de nulidade. Por fim, para se evitar prejuízos incomensuráveis, as autoridades devem respeitar o procedimento.

Palavras chaves: Procedimento de reconhecimento de pessoas. Devido Processo Legal. Falsa memória. Nulidades.

 

INTRODUÇÃO

O procedimento de reconhecimento de pessoas, consignado entre os artigos 226 e 228 do Código de Processo Penal, faz parte do cotidiano forense e policial. Com ele, busca-se o reconhecimento de supostos autores de infrações, a fim de que se possa instruir a persecução penal rumo a um resultado justo, seja condenatório, seja absolutório.

Conquanto se trate de um meio de prova típico, isto é, com procedimento previsto expressamente no Código de Processo Penal, é praxe no cotidiano policial e forense a inobservância do referido procedimento. Se não bastasse isso, faz-se interpretação extensiva da previsão legal, para prever outras formas de reconhecimentos, inclusive, fotográficos.

Os tribunais superiores até pouco tempo atrás entendiam pacificamente que o procedimento legal de reconhecimento de pessoas é mera recomendação legal, razão pela qual a sua violação não seria, em regra, caso de nulidade, mas de mera irregularidade. Todavia, sob a relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz, a 6º Turma do Superior Tribunal de Justiça inaugurou divergência, tornando o tema controverso na jurisprudência.

A presente pesquisa busca, então, respostas para os dilemas envolvendo o tema, principalmente os seguintes questionamentos: a sujeição compulsória do acusado ao procedimento viola a Constituição? A inobservância do procedimento é prova ilegítima e, consequentemente, caso de nulidade?

Justifica-se a presente tese, porque há divergências na doutrina e, agora, na jurisprudência. Ademais, há inúmeros casos de condenações injustas, com base em reconhecimentos que não observaram os tipos processuais penais.

No primeiro capítulo, a tese abordará o princípio do devido processo legal como cláusula processual penal. Na pretensão de explicar o procedimento de reconhecimento de pessoas, à luz do devido processo legal, buscar-se-á estudar os princípios do nemo tenetur se detegere e o da vedação da prova ilícita, ambos decorrentes do devido processo legal.

Na segunda parte, o objeto de análise será o sistema de nulidades que existe no ordenamento jurídico pátrio. Conhecendo as noções gerais, as espécies e os princípios que norteiam o tema nulidade, procurar-se-á entender as razões ou os equívocos dos tribunais superiores de entender a inobservância do procedimento de reconhecimento de pessoas como mera irregularidade.

Enfim, no terceiro capítulo, far-se-á um estudo do procedimento de reconhecimento de pessoas, procurando analisar se sua observância viola o devido processo legal e, por conseguinte, se é caso de nulidade ou simplesmente mera irregularidade. O ponto central do debate será análises científicas a respeito do fenômeno das memórias falsas, muito presente em casos de reconhecimento de pessoas.

Com fulcro em todo o estudado, pretende-se buscar a resposta para as seguintes perguntas: a inobservância do procedimento de pessoas é prova ilegítima? Se sim, é caso de nulidade? Pode-se obrigar um investigado a se submeter ao procedimento?

 

1- A PERSECUÇÃO PENAL E O DEVIDO PROCESSO LEGAL.

Em um Estado de Direito, é imprescindível a elaboração de leis penais com a finalidade de coibir a lesão aos bens jurídicos elementares. Não se consegue viver ordeiramente em uma sociedade permeada de homicidas, latrocídas, pedófilos, sequestradores e outros tipos de infratores, sem um sistema de imputação e sanção de natureza penal.

Contudo “o Direito Penal não é um direito de coação direta. Apesar de o Estado ser o titular do direito de punir, não se admite a imposição imediata da sanção sem que haja um processo regular” (LIMA, 2019, p. 39). O objetivo da regulamentação da persecução penal é garantir que a pretensão punitiva estatal se materialize no caso concreto respeitando os direitos e garantias fundamentais.

A solução da lide só será dada pelo Poder Judiciária após lhe ser apresentada uma acusação formal pelo titular do direito de ação. Uma vez aceita esta acusação, estará iniciada a ação penal, sendo que, durante o seu  transcorrer, deverão ser observadas as regras que disciplinam o seu tramitar até que se chegue à decisão final. Esse conjunto de princípios e normas que disciplinam a persecução penal para a solução das lides penais constitui um ramo do direito público denominado Direito Processual Penal. (REIS, GONÇALVES, 2017, p. 26)

 

Para garantir a racionalidade no direito de punir, é imperiosa a observância da cláusula geral do Devido Processo legal. Ela está consignada no artigo 5º, LIV, da Carta Magna, nos seguintes tempos: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. (BRASIL, 1988)

O Devido processo legal corresponde à expressão inglesa “due processo of law”. Significa o processo em conformidade com o Direito, que compreende a lei e todas as demais fontes do direito, principalmente a Constituição. Eis alguns apontamentos históricos

Inspirou a Carta Magna de 1215, pacto entre o Rei João e os barões, que consagrava a submissão do rei inglês a Law of the land, expressão equivalente a due process of Law, conforme conhecida lição de Sir Edward Coker. A Magna Carta costuma ser tida como o mais remoto documento normativo histórico de consagração do devido processo legal, até mesmo em razão da forte influência que exerceu na formação dos Direitos inglês e estadunidense.  (DIDIER, 2015, p. 64)

 

Na perspectiva processual, o devido processo legal perpassa pela fidelidade aos procedimentos (aspectos processuais) e pela observância dos demais princípios que dele decorrem (aspectos materiais). É assim que se posiciona a doutrina majoritária

 Portanto, o devido processo legal possui dois importantes aspectos: o lado substantivo (material), de Direito Penal, e o lado procedimental (processual), de Processo Penal. No primeiro, como já demonstrado, encaixa-se o princípio da legalidade, basicamente, além dos demais princípios penais. Quanto ao prisma processual, cria-se um espectro de garantias fundamentais para que o Estado apure e constate a culpa de alguém, em relação à prática de crime, passível de aplicação de sanção. Eis por que o devido processo legal coroa os princípios processuais, chamando a si todos os elementos estruturais do processo penal democrático, valendo dizer, a ampla defesa, o contraditório, o juiz natural e imparcial, a publicidade, dentre outros, como forma de assegurar a justa aplicação da força estatal na repressão aos delitos existentes. (NUCCI, 2015)

 

Não há devido processo legal e consequentemente uma racional aplicação do Direito Penal, sem observância dos princípios da vedação da prova ilícita e do “nemo tenetur se detegere”. Importa a análise deles para os fins pretendidos neste trabalho.

1.1-          Princípio da vedação da prova ilícita.

 

O princípio da vedação da prova ilícita é um direito e garantia fundamental positivado no artigo 5º, LVI, da Constituição Federal. Nestas palavras, dispõe a Carta Magna: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Neste diapasão, dispõe o Código de Processo Penal, no artigo 157: “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. (BRASI, 1941).

O princípio é fundamental no Estado Democrático de Direito, que visa respeitar os direitos e garantis fundamentais, controlando, pela Lei, as atividades probatórias. Nesse sentido, votou Celso de Melo, ex- ministro do STF:

 

PROVA PENAL. BANIMENTO CONSTITUCIONAL DA PROVA ILÍCITA. ILICITUDE. INADMISSIBILIDADE.

A Constituição da República, em norma revestida de conteúdo vedatório (CF, art. 5º, LVI), desautoriza, por incompatível com os postulados que regem uma sociedade fundada em bases democráticas (CF, art. 1º), qualquer prova cuja obtenção, pelo Poder Público, derive de transgressão a cláusulas de ordem constitucional, repelindo, por isso mesmo, quaisquer elementos probatórios que resultem de violação do direito material (ou, até mesmo, do direito processual), não prevalecendo, em conseqüência, no ordenamento normativo brasileiro, em matéria de atividade probatória, a fórmula autoritária do “male captum, bene retentum”. (BRASIL, 2007)

 

A doutrina classifica a prova obtida ilegalmente como prova ilícita e prova ilegítima. A prova será considerada ilícita quando a ilegalidade na sua obtenção decorrer de violação de normas de natureza material. Exemplifica-se com as provas obtidas sem observar a inviolabilidade de domicílio (art. 5º, XI, CF. Segundo a inteligência do Professor Renato Brasileiro de Lima (2019, p. 642) a prova ilícita deve ser desentranhada do processo e, uma vez preclusa a decisão de desentranhamento, deve ser inutilizada, salvo se for corpo de delito de outra infração penal. Assim ensina o §3º do artigo 157 do Código de Processo Penal: “Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente”.   (BRASIL, 1941)

Por outro lado, a prova ilegítima é a prova obtida com inobservância de norma de natureza processual. Pode-se citar como exemplo a ausência de pegar o compromisso da testemunha de dizer a verdade (artigo 203 do CPP).

Destaque-se a título de exemplo o tema principal deste trabalho: o reconhecimento de coisas e pessoas. O artigo 226 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) estabelece um procedimento específico. A inobservância do procedimento é um caso clássico caso de prova ilegítima.

Como se trata de inobservância de normal processual, a prova ilegítima, em regra, ocorre dentro da ação penal. Mas, excepcionalmente, pode ocorrer fora do processo, como por exemplo, nos casos da produção de provas antecipadas, cautelares ou não repetíveis.

Em regra, a consequência das provas ilegítimas é a declaração de sua nulidade, seja absoluta, seja relativa. Todavia, dependerá do grau de sua afetação no convencimento do juiz e nos direitos das partes. Em alguns casos, pode ser considera mera irregularidade, sem ensejar a anulação. 

Destaque-se a título de exemplo o tema principal deste trabalho: o reconhecimento de coisas e pessoas. O artigo 226 do Código de Processo Penal (BRASIL, 1941) estabelece um procedimento específico. . A inobservância do procedimento é, para parte da doutrina, um caso clássico caso de prova ilegítima.

A vedação da prova ilícita é um direito fundamental, que deve ser observado pelos sujeitos do processo, sob consequência de se violar o princípio do devido processo legal e se sujeitar as sanções, ora do desentranhamento, ora da declaração de nulidade.

 

1.2-         Princípio do nemo tenetur se detegere.

 

O princípio do nemo tenetur se detegere é o princípio segundo o qual ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Sua previsão constitucional consta no artigo 5º, LXIII, da Carta Magna, o qual diz que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado” (BRASIL, 1988)

A professora Maria Elizabeth Queijo explica o referido princípio com as seguintes palavras:

O princípio do nemo tenetur se detegere objetiva proteger o indivíduo contra os excessos cometidos pelo Estado, na persecução penal, incluindo-se nele o resguardo contra violências físicas e morais, empregadas para compelir o indivíduo a cooperar na investigação e apuração dos delitos, bem como contra métodos proibitivos de interrogatório, sugestões e dissimulações. (2003, p. 567).

 

Conforme os ensinamentos do jurista Renato Brasileiro de Lima (2019,p. 75-77), o princípio em análise tem vários desdobramentos, dentre os quais se destaca os seguintes: A- direito ao silêncio; B- Direito de não ser constrangido a confessar a prática de ilícito penal. C- Inexigibilidade de dizer a verdade. D- direito de não praticar qualquer comportamento ativo que possa incriminá-lo. E- direito de não produzir nenhum prova incriminadora invasiva.

É exatamente no debate sobre a vedação de condutas ativas auto incriminadoras que consta a resposta para a primeira indagação do presente trabalho: viola a Constituição sujeitar o indiciado ou acusado ao procedimento de reconhecimento de pessoas?

A doutrina e jurisprudência majoritárias entendem que não se consideram condutas ativas aquelas em que o indiciado ou acusado pode colaborar passivamente, isto é, sem implicar em um comportamento ativo de sua parte. O melhor exemplo é exatamente o procedimento de reconhecimento de pessoas, tema deste trabalho. No caso, o agente não é obrigado a fazer nada, senão ser colocado à frente do reconhecedor para possível identificação de autoria. Neste sentido:

Por força do direito de não produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere),o investigado tem o direito de não colaborar na produção da prova sempre que se lhe exigir um comportamento ativo, um facere, daí por que não é obrigado a participar da acareação. Todavia, em relação às provas que demandam apenas que o acusado tolere a sua realização, ou seja, aquelas que exijam uma cooperação meramente passiva, não se há falar em violação ao nemo tenetur se detegere. O direito de não produzir prova contra si mesmo não persiste, portanto, quando o acusado for mero objeto de verificação. Assim, em se tratando de reconhecimento pessoal, aindaque o acusado não queira voluntariamente participar, admite-se sua execução coercitiva. (LIMA, 2021, p. 210)

 

Aury Lopes Júnior, por sua vez, em posição minoritária, discorda. Com o argumento que justificou a vedação da condução coercitiva pelo STF, entende que não é o indiciado ou réu obrigado a comparecer e se expor ao reconhecimento de pessoas.

Pensamos que essa é uma posição equivocada e superada. Já era antes mesmo de o STF se manifestar sobre a condução coercitiva. Primeiramente, é preciso reconhecer que a distinção entre "cooperação ativa e passiva" é cosmética e tergiversa o núcleo do direito de não produção de provas contra si mesmo. Em segundo lugar, é ilusória, na medida em que esvazia, de forma utilitarista, o direito fundamental do imputado ao obrigá-lo a participar do ritual probatório contra sua vontade, a pretexto de mera cooperação passiva. Em terceiro lugar, é um eufemismo chamar isso de "colaboração passiva", quando na verdade é uma verdadeira coação, submissão ao poder. (JÚNIOR, FILHO, 2019)

 

Em que pese os fortes argumentos da corrente minoritária, é melhor a posição majoritária, pois os argumentos são contundentes e, em uma perspectiva prática, a aplicação da não obrigatoriedade ensejaria à absoluta inutilização do procedimento, que, quando bem utilizado, é importante para elucidação de crimes.

Tendo respondido a primeira questão, convém, agora, descobrir se a inobservância do procedimento de reconhecimento de pessoas viola o princípio do devido processo legal, ensejando prova ilegítima e caso de nulidades. Antes, faz-se necessária uma rápida análise no sistema de nulidades brasileiro.

 

2- SISTEMAS DE NULIDADES NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Para melhor compreensão da finalidade dos sistemas de nulidade, convém entender o instituto da tipicidade. “Em Direito Penal, diz-se que há tipicidade quando o fato se adequada ao tipo, ou seja, quando corresponde às características objetivas e subjetivas do modelo legal, abstratamente formulado pelo legislador” (DE PLÁCIDO, 2014, p. 1403).

O conceito acima trata da clássica tipicidade penal, isto é, quando a conduta humana se adequa ao tipo penal. Todavia, embora pouco se fale, há também a tipicidade processual. Ela ocorre nas ocasiões em que o ato processual é realizado em conformidade com a Constituição e com o procedimento tipificado na legislação infraconstitucional. A tipicidade processual é explicada nestes termos pela doutrina pátria:

A tarefa de aplicar o direito às situações concretas não é realizada pelo ordenamento jurídico, através de forma que devem ser obedecidas pelos que nela intervêm. Nesse Sentido, afirma-se que o processo exige uma atividade típica, composta de atos cujos traços essenciais são definidos pelo legislador. Assim, os participantes da relação processual devem pautar o seu comportamento segundo modelo legal, sem o que essa atividade correria o risco de perder-se em providências inúteis ou desviadas do objetivo maior, que é a preparação de um provimento final justo. (GRINOVER, GOMES, FERNANDES, 2009, p. 149)

No âmbito do direito material, sabe-se que as consequências da atipicidade  são as penas ou medidas de seguranças consignadas no preceito secundário de cada tipo penal. Tratando-se de atipicidade processual, as consequências, a depender do caso, será a declaração de nulidade do feito.

Em ordem a evitar o desatendimento às fórmulas da matriz legal, criou-se uma consequência jurídica para a inobservância da tipicidade das formas, que é a possibilidade de invalidação do ato imperfeito, sanção essa que recebe a denominação de nulidade. Muitas vezes, porém, o vocábulo é empregado para designar, não a consequência que advém do desrespeito ao modelo legal, mas o próprio defeito do ato. É de acordo com essa última concepção, por exemplo, que se diz que “ocorreu uma nulidade” em determinado ato processual. (REIS, GONÇALVES, 2017, p. 530)

Para se entender em quais casos caberá a nulidade, insta estudar como funciona o sistema de nulidades no Brasil.

2.1- Espécies de atos processuais e de nulidades processuais

 

A existência ou a espécie de nulidade dependerá necessariamente das formas de regularidades ou irregularidades dos atos processuais. Podem-se classificar os atos processuais em quatro tipos: perfeitos, meramente irregulares, nulos e inexistentes. Segue abaixo a explicação de cada um deles, segundo a boa doutrina do Professor Renato Brasileiro. (2019, p. 1623-1624)

Os atos perfeitos são aqueles realizados em perfeitas condições, ou seja, observando todos os aspectos demandados pela lei. Em razão disso, são atos absolutamente válidos e eficazes.  O ato meramente irregular, por sua vez, é aquele que não observa os mandamentos da lei, quanto a sua realização. Não obstante, a irregularidade não gera consequências prejudiciais para a ordem pública, nem para as partes. Já o ato nulo é aquele que a inobservância do modelo típico acarreta, ora prejuízo para ordem pública, ora prejuízo para as partes. Este prejudicabilidade pode acarretar a invalidação do ato, a depender da ofensividade às regras e aos princípios que norteiam o sistema de nulidades. Por fim, há os atos inexistentes. Nestes, a desconformidade com a previsão típica é tão absurda, que não é caso de nulidade, mas inexistência do ato processual. É o que ocorre, por exemplo, com uma sentença que declara extinção de punibilidade, com base em uma certidão de óbito falsa. Ou o ato do magistrado impedido.

Percebe-se, então, que não é qualquer irregularidade que ensejará a nulidade de um ato processual. É substancial que a irregularidades comprometa a ordem pública e o interesse das partes. Mas não só. Para ocorrer nulidade, é imprescindível que a referida irregularidade atente contra regras e princípios do sistema de nulidades.

Os princípios buscam nortear os eventuais processos, sustentando o magistrado e as partes no uso de argumentos das nulidades assertiva do Código Penal e da Constituição. A fim de termos rapidez e segurança jurídica, os princípios agem se completando como equilíbrio entre o meio dos atos processuais para que estes não interfiram no fim, e alcance os objetivos da lei. (RIUS, 2017)

 

Viu-se, até aqui, que a nulidade é uma sanção aplicada nos casos de atipicidade processual. O grande efeito da invalidação do ato nulo é perda da sua eficácia. Para doutrina majoritária, a natureza jurídica da nulidade é sanção processual de ineficácia.

Divide-se a nulidade em dois tipos: nulidade absoluta e nulidade relativa. Não há critérios absolutos para diferenciá-las. Para diferenciá-las, convém analisar suas principais características e observar as deliberações jurisprudenciais.

A nulidade absoluta ocorrerá nas hipóteses em que a irregularidade processual atentar contra o interesse público. Entenda-se por interesse público as previsões de natureza constitucional.

A Nulidade absoluta tem um duplo caráter de vício e sanção. Dessa forma com relação ao primeiro consiste em ato defeituoso praticado em prejuízo do interesse público, e se caracteriza como sanção, ao determinar a anulação de todos os atos praticados até então, apenas de um ato ou de todo o processo a depender do caso concreto. (RIGHTTO, GEIER, ALVES, 2014).

 

Convém salientar que não há nulidade sem que exista prejuízo. O artigo 563 do Código de Processo Penal diz que “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. (BRASIL, 1941). No caso da nulidade absoluta, o prejuízo é presumido, pois atenta contra o interesse público.

Além do prejuízo presumido, outra característica da nulidade absoluta é a possibilidade de ser arguida a qualquer momento, inclusive após o trânsito em julgado, inclusive em sede de Habeas Corpus ou Revisão Criminal. Conclui-se, então, que não há o instituto da preclusão temporal e do saneamento da nulidade por não arguição oportuna.

Na nulidade relativa, o prejuízo atenta preponderantemente contra o interesse das partes.  Exemplifica-se com a ausência de parecer do Ministério Público na prisão temporária. O parecer do parquet é precipuamente do interesse do próprio órgão ministerial e do acusado, pois, como fiscal da lei, pode-se verificar alguma irregularidade. Há interesse público. Mas o interesse público é subsidiário, razão pela qual se caracteriza a nulidade relativa.

O prejuízo na nulidade relativa, por sua vez, não é presumido, devendo ser comprovado pela parte que arguir. “Segundo a doutrina, enquanto o prejuízo é presumido nas hipóteses de nulidade absoluta, o reconhecimento de uma nulidade relativa está condicionado à comprovação do prejuízo decorrente da inobservância da forma prescrita em lei”. (LIMA, 2019, p. 1629)

Ademais, a nulidade relativa deve necessariamente ser arguida no momento oportuno, sob pena de preclusão e consequente convalidação. Este momento oportuno está consignado no artigo 571 do Código Penal (BRASIL, 1941). Em regra, o momento oportuno é o próximo ato processual dentro da sequência procedimental consignada na lei. Exemplo: arguição de incompetência relativa (caso de nulidade relativa) deve ser arguida na resposta da acusação, primeiro ato processual após o recebimento da denúncia, pelo juiz relativamente incompetente. Não sendo protestada na resposta à acusação, há preclusão temporal e convalidação, tornando, assim, o juiz competente.

Percebe-se, como já comentado, que não há regra absoluta para distinguir a nulidade em absoluta ou relativa. O caminho principal é analisar se o interesse preponderante é público ou das partes. A título de exemplo, vide a súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, que diz o seguinte: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. No caso, a ausência de defesa é de interesse preponderantemente público, pois viola o contraditório; no entanto, a deficiência da defesa atenta precipuamente contra os interesses do acusado, razão pela qual é caso de nulidade relativa.

Com base no exposto, faz-se necessário analisar o seguinte: a inobservância do procedimento de reconhecimento de pessoas prejudica o interesse público ou das partes? Com esta resposta, se verá se o procedimento irritual acarretaria mera irregularidade ou nulidade. Entendo pela prejudicabilidade, resta indagar se eventual prejuízo seria preponderantemente ao interesse público ou das partes, para aferir se é caso de nulidade relativa ou absoluta. Antes, convém detalhar como funciona o procedimento.

 

3-  PROCEDIMENTO DE RECONHECIMENTO DE PESSOAS.

O procedimento de reconhecimento de pessoas e coisas está consignado entre os artigos 226 e 228 do Código de Processo Penal[1].

A natureza jurídica do procedimento em análise é “meio de prova”. Meios de provas são instrumentos utilizados, com a finalidade de trazer para dentro do processo as informações constantes nas fontes de prova. Com efeito, entende-se que a vítima ou testemunhas são fontes de provas, isto é, são pessoas que viram a pessoa que cometeu a infração penal. Por intermédio do meio de prova “reconhecimento de pessoas”, trazem-se para dentro do processo as informações destas pessoas.

Trata-se de meio de prova por meio do qual alguém identifica uma pessoa ou coisa que lhe é mostrada com pessoa ou coisa que já havia visto, ou que já conhecia, em ato processual praticado perante a autoridade policial ou judiciária, segundo o procedimento previsto em lei. (2019, p. 739)

 

O procedimento é meio de prova precipuamente ligado à a autoria[2]. Busca-se com ele a descoberta da autoria de um delito. Sabe-se que, na instrução criminal, o mais difícil é a comprovação da autoria. Em regra, a materialidade é deixada nos vestígios, já que maioria dos crimes são materiais e não transeuntes. A dificuldade, contudo, está na demonstração de quem cometeu o delito. Neste contexto, o procedimento de reconhecimento de pessoas é um valioso instrumento utilizado para a convicção do magistrado, ao proferir a sentença, seja absolutória, seja condenatória.

 

No que diz respeito ao procedimento, o primeiro passo é requerer do reconhecedor uma descrição prévia de quem será alvo do reconhecimento. A descrição prévia é importante para se analisar contradições.

Logo após, o acusado, se possível, é apresentado ao reconhecedor, ao lado de outras pessoas, com as quais tenham certas semelhanças. Não obstante o código dê o ar de facultatividade com a expressão “se possível”, seguir o procedimento é de suma importância, para que o reconhecimento se dê com um grau de certeza que afaste qualquer tipo de dúvida.

Na ocasião, havendo receio de intimidação do reconhecedor, devem-se providenciar meios adequados, para que o reconhecimento se dê, sem que o haja confronto visual entre aquele que reconhece e aquele que é reconhecido. Conquanto o parágrafo único do artigo 226 (BRASIL, 1941) diga que esta regra não se aplica na instrução criminal ou em plenário do júri, o entendimento majoritário na doutrina e na jurisprudência é de que se pode fazer a providência. Esse é o entendimento, por exemplo, de Guilherme de Souza Nucci. (2008, p. 491)

Depois, lavra-se um laudo pormenorizado com relato dos detalhes do procedimento, o qual deve ser assinado pela autoridade, pelo reconhecedor e por duas testemunhas. O laudo é importante para se fazer controle da fundamentação, na hipótese de uso da prova na sentença.

Por fim o artigo 228 diz o seguinte: ”Se várias forem às pessoas chamadas a efetuar o reconhecimento de pessoa ou de objeto, cada uma fará a prova em separado, evitando-se qualquer comunicação entre elas”. (BRASIL, 1941). Consoante a inteligência da norma, a separação é crucial, para se evitar confusão mental de quem vá reconhecer.

Há muito tempo, os tribunais tem admito o reconhecimento fotográfico, desde que observado, à medida do possível, o procedimento legal acima consignado[3].

Os detalhes procedimentais do reconhecimento de pessoas não foram colocados à toa no Código de Processo Penal. As diligências são importantes para evitar condenação de não culpados e absolvição de condenados.

 

3.1- O problema da inobservância do procedimento.

 

Não são raras as vezes que autoridades de persecução penal, inescrupulosamente, dispensam a observância do procedimento de reconhecimento de pessoas, incorrendo em um desastroso informalismo.   Tourinho Filho manifesta suas reservas com essa praxe policial e forense:

De todas as provas previstas no nosso diploma processual penal, esta é a mais falha, a mais precária. A ação do tempo, o disfarce, más condições de observação, erros por semelhança, a vontade de reconhecer, tudo, absolutamente tudo, torna o reconhecimento uma prova altamente precária. (2009, p.645)

 

O grande problema — e objeto principal de análise deste trabalho — é que os tribunais superiores até pouco tempo atrás, pacificamente, não vinham condenando a negligência dos magistrados e autoridades policiais, neste ponto. Muito pelo contrário, o entendimento das egrégias cortes era pacífico no sentido de que o procedimento ora comentado seriam meras recomendações legais, razão pela qual a sua inobservância não ensejaria nulidade. Vide julgados do Superior Tribunal de Justiça.

NULIDADE NO AUTO DE RECONHECIMENTO PESSOAL. INOBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ARTIGO 226 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DISPOSITIVO QUE CONTÉM MERA RECOMENDAÇÃO LEGAL. CONSTRANGIMENTO ILEGAL INEXISTENTE. 1. Esta Corte Superior de Justiça firmou o entendimento no sentido de que as disposições insculpidas no art. 226 do CPP configuram uma recomendação legal, e não uma exigência, cuja inobservância não enseja a nulidade do ato. Precedentes. 2. Na hipótese em tela, o auto de reconhecimento da paciente não contém qualquer eiva capaz de impedir a sua utilização como prova nos autos. (BRASIL, 2014)

E mais:

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. JÚRI. PRONÚNCIA. EXCESSO DE LINGUAGEM. INEXISTÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 226 DO CPP. AUSÊNCIA. FORMALIDADES. RECOMENDAÇÃO LEGAL. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

1. Não há que se falar, no caso, em excesso de linguagem, porquanto o magistrado em nenhum momento afirmou juízo de certeza acerca da autoria delitiva, mas apenas indicou as provas, em especial testemunhais (e-STJ fls. 630 e 633), que davam suporte à sua conclusão acerca da existência dos indícios em desfavor do recorrente. 2. O Tribunal estadual afirmou que o reconhecimento operado em juízo é válido e observou as regras do referido artigo. A desconstituição dessa conclusão não pode ser alterada em recurso especial ante o óbice do Enunciado n. 7 da Súmula deste Tribunal. 3. Ademais, as disposições insculpidas no art. 226 do CPP, configuram uma recomendação legal, e não uma exigência absoluta, não se cuidando, portanto, de nulidade quando praticado o ato processual (reconhecimento pessoal) de modo diverso. Precedentes. (BRASIL, 2018)

 

No mesmo sentido é o entendimento do Supremo Tribunal Federal consignados em vários julgados, dentre os quais o Recurso em Habeas Corpus 199439, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes.

Entretanto, em 2020, a 6º Turma do Superior Tribunal de Justiça abriu divergência, em alguns julgados. Eis as conclusões do HC 598886-SC, da relatoria do Ministro Rogério Shietti Cruz:

I) O reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no art. 226 do CPP, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime; II À vista dos efeitos e dos riscos de um reconhecimento falho, a inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de lastro a eventual condenação, mesmo se confirmado o reconhecimento em juízo; III) Pode o magistrado realizar, em juízo, o ato de reconhecimento formal, desde que observado o devido procedimento probatório, bem como pode ele se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento; IV) O reconhecimento do suspeito por mera exibição de fotografia(s), ao reconhecer, à par de dever seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal, há de ser visto como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não pode servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo. (BRASIL, 2020)

 

 

Percebe-se que a 6º Turma do STJ considerou como necessária a observância do procedimento, para fins de uso do meio de prova em análise na sentença condenatória. E não só. O precedente estabelece que é vedado o uso  reconhecimento fotográfico, senão com a rígida observância das formalidades e como antecedente necessário ao reconhecimento pessoal. O julgado é histórico, pois atende reivindicação doutrinária de décadas.

A decisão da 6º Turma abriu divergência na jurisprudência sobre o tema, mas a divergência na doutrina existe a muito tempo.

Antes e dispor sobre o aspecto jurídico controvertido, uma análise do problema da falsa memória e a constatação de erros judiciários muito ajudarão.

 3.1.1- O problema da falsa memória e erros do  judiciário.

No caso do reconhecimento de pessoas, como aferir se o procedimento atingiu o seu fim? Trata-se de uma tarefa excessivamente complexa, pois a informação de quem reconhece é extraída de sua memória, ponto inacessível pelas partes.

Sobre a memória, a psicologia jurídica está cada vez mais convencida de que, no caso de reconhecimento de pessoas, o grau de falibilidade do reconhecimento é significante. Isto decorre do fenômeno da falsa memória, explicado desta forma por cientistas:

Diante da falibilidade da mente humana, a memória pode sofrer distorções, tanto fruto de processos internos quanto externos. Ao analisar esses erros na recepção de informações pelo processo de cognição, surgem os estudos acerca do fenômeno das falsas memórias. As falsas memórias podem ser definidas como lembranças de eventos que não ocorreram, de situações não presenciadas, de lugares jamais vistos, ou então, de lembranças distorcidas de algum evento. São memórias que vão além da experiência direta e que incluem interpretações ou inferências ou, até mesmo, contradizem a própria experiência (FREITAS e MANDARINO, 2007, p. 46)

 

Quando se trata de verificação de infração penal, o sujeito que reconhece — vítimas ou testemunhas — atua com emoções comprometidas pela revolta decorrente da lesão ao bem jurídico. Neste contexto, a falsa memória, sob o aspecto de percepções distorcidas, está mais propícia a surgir. Com efeito, os cientistas entendem que diligências cuidadosas devem ser tomadas, para se reduzir o grau de falibilidade:

Essa diligência deve ser realizada em ambiente adequado, de modo que aquele que reconhece a pessoa possa fazê-lo com serenidade e segurança, atentando-se também para o grau de certeza com que o autor do reconhecimento apontará a pessoa reconhecida (MACHADO, 2007, p. 653).

 

No mesmo sentido, Aury Lopes Júnior:

O reconhecimento possui alto grau de falibilidade e, portanto, valor probatório de escassa consistência. Isso porque, o subjetivismo inerente à prova em questão contamina sua eficácia. Entretanto, por sua força impressionista, mesmo diante das comprovadas falhas desse meio de prova, os juízes continuam a ser influenciados pela identificação positiva realizada pela testemunha, ainda que tais resultados equivalham a uma pacífica indicação de culpa ( 2011, p.6).

 

O ótimo Projeto Innocence tem dados estatísticos preocupantes a respeito do tema. Vide as informações trazidas pelo projeto, em entrevista dada ao Portal Migalhas:

A advogada Dora Cavalcanti, por meio do Innocence Project Brasil, associação sem fins lucrativa voltada a enfrentar questões sobre condenações de inocentes no país, sustentou como amicus curiae no processo. A causídica destacou dados do Innocence Project de Nova York que mostram que de 375 casos que foram objeto de uma reversão na Justiça, 69% tiveram, na raiz da condenação equivocada, um problema no reconhecimento. Outro dado apresentado pela advogada, de um conjunto de universidades, mostra que de 2.679 casos, mais de 40% de casos que são revertidos houve um reconhecimento equivocado. Nos casos de roubo, o dado copilado é de 81%. (RECONHECIMENTO... 2021)

 

Estas também são as conclusões de Renan Posella Mandarino e Marisa Helena D´Arbo Alves de Freitas no artigo com o título “O reconhecimento de pessoas no processo penal e a falsa memória”. Segue uma importante conclusão dos autores:

A justiça brasileira não está apta para enfrentar o problema das falsas memórias. O reconhecimento de pessoas é elemento de prova fundamental para determinados tipos de crimes, os quais não deixam vestígios e, portanto, dificultam o descobrimento da autoria. Porém, muitas injustiças são cometidas, em razão da demora para produção de provas em juízo e da ausência da aplicação adequada do art. 226 do Código de Processo Penal, fazendo desse importante elemento de prova uma “mera formalidade instrumental”, prova totalmente vazia e muitas das vezes realizada para suprir a inoperância investigativa do Estado. (pag. 18)

 

Segundo o programa Fantástico (EXPERIMENTO... 2019), só a organização não governamental Innocence Brasil, que trabalha com defesa de condenados inocentes, já reverteu mais de 300 casos de condenações, com base em erro no procedimento de reconhecimento de pessoas.

Um caso importante, largamente noticiado no ano de 2021, foi do jovem R.M.S.S, que foi acusado por dois assaltos, tendo sido condenado a 16 anos de pena. No caso concreto, em um dos crimes, usaram-se fotografias de pessoas diversas (mas parecidas) do jovem para instruir a instrução e concluíram pela autoria delitiva dos dois crimes. O jovem, que não tem antecedente criminal, ficou dois anos presos. Só se livrou graças ao incrível trabalho do Projeto Innocence. (PROJETO... 2021)

Frente à possibilidade incontestável da falsa memória, concretizada em terríveis acontecimentos de condenação de inocentes, mostra-se prudente a observância do procedimento, a fim de se evitar prejuízos.

 

3.1.2 – Argumento jurídico pela observância do procedimento de reconhecimento de pessoas.

Ao considerar os vícios no procedimento de reconhecimento de pessoas como mera irregularidade, parte da doutrina e da jurisprudência considera temerariamente que a inobservância do rito não gera prejuízo para a ordem pública e para as partes.

Todavia, como visto acima, o prejuízo é no mínimo provável, considerando a possibilidade de falsas memórias e reiterados erros recentes do Judiciário. Na dúvida, em homenagem aos princípios da presunção de inocência, in dubio pró réu e favor rei, deve-se presumir o prejuízo, a fim de se evitar o mal maior: a condenação injusta. Nesta perspectiva, trabalha Aury Lopes Júnior, quando diz que o procedimento de reconhecimento de pessoas “trata-se de uma prova cuja forma de produção está estritamente definida e, partindo da premissa de que – em matéria processual penal – forma é garantia, não há espaço para informalidades judiciais”. (2006, p.312)

Entendo pela existência do prejuízo, fica afastada a tese de que a inobservância do procedimento é mera regularidade. Considerando se tratar de prejuízo presumido, conclui-se que é caso de nulidade absoluta. E não só por causa do prejuízo presumido, mas, sobretudo, por se tratar de caso, cujo interesse é predominantemente público. E assim o é por que o erro judiciário, além de atentar terrivelmente contra a dignidade da pessoa humana, atinge terrivelmente a credibilidade estatal, além de gerar terríveis prejuízos com novos processos e justas indenizações.

Logo, se conclui que a inobservância do procedimento de pessoas é caso de prova ilegítima, que deve ser declarada nula, não produzindo efeitos no processo penal, como dispõe as teorias da prova ilícita e da nulidade dispostas no acima.

Ademais, se o devido processo legal em seu aspecto formal (dimensão processual) demanda observância de procedimentos, a razão de ser das formas não é outra senão garantir o cumprimento da tipicidade processual. Logo, seguindo a lógica do Estado Democrático de Direito, onde o Estado se sujeita ao império da Lei, conclui-se que uma produção de reconhecimento de pessoas, sem observância da forma, é prova ilegítima sim. Confirma a doutrina:

Como se vê, tal reconhecimento foi feito ao arrepio do art. 226 do CPP, que traça o procedimento a ser observado na hipótese de reconhecimento de pessoas e coisas. Em ambas as situações, temos exemplos de provas obtidas por meios ilegítimos, porquanto colhidas com violação à regra de direito processual. (LIMA, 2021, p.686)

 

Ratifica esta ideia o doutrinador Alexandre Salum:

Neste contexto, diante de todo o exposto, não há dúvidas quanto à devida formalidade do artigo 226, do Código de Processo Penal, e as graves consequências que podem causar a sua relativização. Por isso, quando o reconhecimento pessoal não for realizado de acordo com o CPP, este deve ser considerado nulo, não podendo o magistrado utilizá-lo como prova, sem que seja repetido conforme os mandamentos formais do artigo 226. (2015)

 

 

CONCLUSÃO

 

Diante de tudo que fora estudado, conclui-se que a persecução penal no Brasil deve zelar pelos direitos e garantias fundamentais, dentre as quais a cláusula geral do devido processo legal e os princípios que dela decorrem, como os princípios do nemo tenetur se detegere ,da vedação da prova ilícita, presunção de inocência, in dubio pró réu e favor rei.

Com efeito, o procedimento de reconhecimento de pessoas, positivados entre os artigos 226 e 228 do Código de Processo Penal, necessariamente deve ser iluminado pelos princípios supramencionados.

Uma das causas de materialização das garantias fundamentais dar-se-á na não sujeição compulsória do acusado a produção de provas contra si mesmo. Neste sentido, um dos consectários desta regra é a vedação da conduta ativa obrigatória do acusado contra o seu estado de inocência. No que diz respeito à sujeição do acusado ao procedimento de reconhecimento de pessoas, em que pese importante corrente doutrinária minoritária em sentido diverso, deve prevalecer entendimento, segundo o qual a sujeição compulsória não viola o princípio do nemo tenetur se detegere, já que, no caso concreto, o agente se comporta passivamente e o procedimento se faz muito necessário para elucidação da autoria delitiva. Outrossim, posição em sentido diverso ensejaria inutilidade do meio de prova, importante para persecução penal.

Destarte, a cláusula geral do devido processo legal, sob seu aspecto processual, recomenda que os atos processuais ocorram da forma mais fidedigna possível ao procedimento consignado na lei. Ou seja, forma é garantia do cidadão, não podendo o Estado violá-la, sem incorrer em atipicidade processual.

No âmbito da instrução processual penal, a observância das formas se faz ainda mais importante, já que o processo pode culminar na privação ou restrição da liberdade do agente. Com efeito, uma vez inobservado os procedimentos instrutórios, deve-se reconhecer a ilegitimidade da prova, vedada pela Constituição Federal.

Não se pode considerar o procedimento de reconhecimento de pessoas contra legen como mera irregularidade, pois há prejuízo, seja às partes, seja ao interesse público. O prejuízo deve ser considerando presumido e inerente à inobservância do procedimento, pois, segundo a psicologia jurídica, o fenômeno da falsa memória ocorre muito facilmente, sobretudo em procedimentos que violam as regras da lei. Ademais, as centenas de condenações revertidas, em sede de revisão criminal, é um fato incontestável que prova a prejudicabilidade.

A falibilidade é inerente à memoria, conforme dispõe a ciência. Com efeito, diante de situação de provável falsa memória, por inobservância de procedimentos, deve-se presumir o prejuízo, em homenagem aos princípios presunção de inocência, in dubio pro réu e favor rei.

Presente o prejuízo, afasta-se a tese da mera regularidade e concluiu-se que é caso de nulidade absoluta. Absoluta porque predomina o interesse público, já que a condenação de um inocente fere de morte a dignidade da pessoa humana e a credibilidade do estado, além de acarretar prejuízos financeiros, seja com o processo, seja com indenizações.

Com base no todo exposto, o presente artigo conclui respondendo as indagações principais pretendidas: a sujeição obrigatória do acusado ao reconhecimento de pessoas não contraria a Constituição, pois está de acordo com o princípio do nemo tenetur se detegere. Conclui-se também que a inobservância do procedimento de reconhecimento de pessoas viola a Constituição, em seu devido processo legal, ensejando prova ilegítima e caso de nulidade absoluta, em razão do prejuízo presumido.

 

 

 

 

 


    Referências

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

     

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    BRASIL STJ, 6º Turma, HC 598886-SC. Relator Ministro Rogério Schietti Cruz. DJE. 27/10/2020

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    [1] Neste trabalho, o foco é o reconhecimento de pessoas, razão pela qual não se comentará o reconhecimento de coisas.

    [2] Diz-se precipuamente, pois é possível o reconhecimento de vítimas e testemunhas.

    [3] STJ, 5ª Turma, HC 136.147/SP, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 06/10/2009, DJe 03/11/2009.


    Advocacia Rodrigues

    Bacharel em Direito - Ibirité, MG


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