O crime de violação de direito autoral e os princípios constitucionais penais


05/03/2016 às 13h13
Por Ana Lima Advocacia.

O CRIME DE VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS

Ana Luzia de Sousa Lima

Graduada no Curso de Direito, perante Univesidade Fumec – Belo Horizonte-MG

http://lattes.cnpq.br/8742961938512025

RESUMO

Trata-se de artigo científico que propõe análise de um dos dispositivos do Código Penal Brasileiro, qual seja o art. 184, que prevê o crime de violação de direito autoral. O intuito do trabalho científico é aferir a compatibilidade do dispositivo, com os princípios constitucionais que regem o Direito Penal. Através das ponderações acerca dos diversos institutos e conceitos da referida ciência jurídica, bem como dos princípios que a norteiam, tais como os princípios da legalidade e da taxatividade, far-se-á possível traçar conclusões alcançando a meta proposta pelo presente trabalho científico, que se mostra relevante, não somente pela individualização de uma problemática, como também pela propositura de possíveis soluções. A pesquisa evidenciará ainda o nível de repercussão do tema proposto no meio social, acadêmico e jurídico.

Palavras-chave: Aferir compatibilidade. Evidenciar inconstitucionalidade.

ABSTRACT

It is about scientific article that proposes analysis of one of the provisions of the Brazilian Penal Code, namely Art. 184, the which provides for the crime of copyright violation. The aim of scientific work is gauging the compatibility of the device, with the constitutional principles governing the Criminal Law. Through of the weightings on the various institutes and concepts of said legal science as well as of those principles that guide the science, such as the principles of legality and taxatividade, will be possible to delineate conclusions reaching the goal proposed by this present scientific work, that if show relevant, not only for the individualization of a problematic, as also by proposition of possible solutions. The research will evidence yet the level of repercussion of the theme proposed on social, academic and legal environment.

Keywords: Gauging to compatibility. Demonstrate unconstitutionality.

1 Introdução

O presente artigo científico propõe a análise do crime previsto no art. 184 do Código Penal Brasileiro (CPB), qual seja o crime de violação de direito autoral, sob uma perspectiva princípio lógica, no intuito de aferir se este se adéqua ao perfil constitucional do Estado Democrático de Direito ou se representa afronta ao mesmo, caso em que restará manifesta sua inconstitucionalidade substancial.

Não se pretende aqui, adentrar em todo o universo da propriedade imaterial, ou analisá-la nas diversas formas que o bem jurídico merece proteção.

Logo, discussões acerca do que vem a consistir os direitos autorais ou seus conexos, mencionado no dispositivo, bem como sua abrangência ou distinções entre patrimoniais ou morais, escapam do intuito pretendido com esta análise, que versa tão somente sob análise do conteúdo material do referido dispositivo, única e exclusivamente para alcançar a atual posição que este ocupa no cenário constitucional penal.

Prescinde, portanto, do texto constitucional, bem como dos princípios constitucionais penais, linha de pesquisa que possibilitará o alcance do resultado que aqui se pretende concluir.

Nesta perspectiva, mister o aprofundamento nos diversos princípios constitucionais do direito penal, mais especificamente o princípio da legalidade e seus decorrentes, de previsão constitucional no art. 5°, XXXIX da Constituição da República Federativa do Brasil (CR/88).

Igualmente relevante mostrar-se-á, para a pesquisa aqui proposta, a análise da consequencia e impacto prático que pode advir da constatação alcançada, bem como a proposição de soluções para a possível problemática.

Analisar-se-á diversos posicionamentos, sem, contudo, afastar-se da ideia que aqui se pretende testificar.

2 O Estado Democrático de Direito

O Estado democrático de direito é um conceito que designa qualquer Estado que se propõe a garantir o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, através do estabelecimento de uma proteção jurídica. Em um estado de direito, as próprias autoridades políticas estão sujeitas ao respeito das regras de direito.

Segundo posicionamento de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Martires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, na Obra Curso de Direito Constitucional:

Em que pesem pequenas variações semânticas, em torno desse núcleo essencial, entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direito e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras a Constituição brasileira. Mas ainda, já agora no plano das relações concretas entre o poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeira a solene proclamação daqueles direitos (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008. p. 149)

Isto porque num Estado Democrático de Direito, as leis devem expressar a vontade do povo, uma vez que formuladas por quem eleito pelo ele. O poder, portanto, em uma democracia emana do próprio povo, que através do voto o delega a quem julgar merecedor.

Neste sentido, manifesta-se Ronaldo Brêtas Dias:

Consideramos que a dimensão atual e marcante do Estado Constitucional Democrático de Direito resulta da articulação dos princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, cujo entrelaçamento técnico e harmonioso se dá pelas normas constitucionais. Para se chegar a essa conclusão, impõe-se perceber que a democracia, atualmente, mais do que forma de Estado e de governo, é um princípio consagrado nos modernos ensinamentos constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder, que tem origem no povo, daí o protótipo constitucional dos Estados Democráticos, ao se declarar que todo o poder emana do povo (DIAS, 2012. p. 58).

Segundo Fernando Capez, o constituinte brasileiro foi além da concepção de Estado de Direito, instituindo um Estado Democrático de Direito, não limitando-se à proclamação formal da igualdade entre todos, mas propondo-se a imposição de metas e deveres quanto à construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CAPEZ, 2013. p. 24).

Os cidadãos nas democracias estão dispostos a obedecer às leis da sua sociedade, porque estas são as suas próprias regras e regulamentos. A justiça é melhor alcançada quando as leis são criadas pelas próprias pessoas que devem obedecê-las.

Significa que nenhum indivíduo, presidente ou cidadão comum, está acima da lei. Os governos democráticos exercem a autoridade por meio da lei e estão eles próprios sujeitos aos constrangimentos impostos por ela.

Logo, o Estado Democrático de Direito tem por finalidade a liberação da pessoa humana de toda e qualquer forma de opressão. No que tange ao Direito Penal, significa que o indivíduo não poderá ser privado de seus direitos e garantias fundamentais.

Hodiernamente, nos Estados Democráticos de Direito, já se reconhece o Direito Penal Constitucional, isto é, um Direito Penal pautado nas normas e nos princípios constitucionais, dentre os quais merece destaque o princípio da dignidade da pessoa humana.

Nesta perspectiva, assevera Fernando Capez:

A norma penal, portanto, em um Estado Democrático de Direito não é somente aquela que formalmente descreve um fato como infração penal, pouco importando se ele ofende ou não o sentimento social de justiça; ao contrário, sob pena de colidir com a Constituição, o tipo incriminador deverá obrigatoriamente, selecionar , dentre todos os comportamentos humanos, somente aqueles que realmente possuem real lesividade social (CAPEZ, 2013. p. 24).

Do exposto resta nítido que sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, seu Direito Penal deve ser legítimo, democrático e obediente aos princípios constitucionais que o norteia, sob pena de afronta à própria Constituição evidenciando sua inconstitucionalidade material.

3 Os Princípios Constitucionais Penais

Inicialmente é importante ressaltar a relevante função desempenhada pelos princípios constitucionais haja vista a própria essência destes. Segundo Guilherme Nucci, estes compõem o ordenamento jurídico, servindo de instrumento para integração, interpretação e aplicação do próprio direito positivo (NUCCI, 2013. p. 41).

Na esfera penal não poderia ser diferente, uma vez que estes se encontram estritamente ligados à garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, que vão desde a proteção contra arbítrios do poder estatal, à própria garantia de suas integridades físicas.

Neste sentido, Guilherme de Souza Nucci:

Nos campos penal e processual penal, com maior razão, a primazia dos princípios precisa ser respeitada, vez que se lida, diretamente, com a liberdade individual e, indiretamente, com vários outros direitos fundamentais (vida, intimidade, propriedade, integridade física, etc.). (NUCCI, 2013 p.44).

Deste modo, a norma que contrarie qualquer destes princípios, está por consequência contrariando o próprio Texto Constitucional, que tem o dever de garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana, devendo, portanto ser expurgado do ordenamento jurídico, haja vista sua inconstitucionalidade substancial.

Nesta perspectiva, o presente o trabalho propõe a análise do art. 184 do CPB, no intuito de aferir a posição por este ocupada no cenário apenas traçado. Analisando o referido dispositivo de lei, sob tal enfoque princípio lógico, torna-se possível o alcance do objetivo traçado pelo presente trabalho.

3.1 Princípio da legalidade

No que concerne especificamente ao princípio da legalidade na esfera penal, temos que este é representado pela redação contida no art. 1° do CPB que prevê “não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. Em linhas gerais o princípio reserva para o estrito campo da lei a existência do crime e sua correspondente pena.

Neste sentido, Fernando Capez:

o princípio, contém uma regra - segundo a qual ninguém poderá ser punido pelo poder estatal, nem sofrer qualquer violação a seu direito de liberdade ­­­- e uma exceção, pela qual os indivíduos somente serão punidos se, e quando, vierem a praticar condutas previamente definidas em lei como indesejáveis. (CAPEZ, 2013, v. 1. p.57).

Do exposto resta nítida a necessidade de clareza e objetividade que os tipos penais devem ser revestidos, uma vez que um fato, só será considerado criminoso se houver perfeita correspondência entre ele e a norma que o descreve.

Nisto, assevera ainda o renomado autor, consiste a principal proteção política do cidadão em face do poder punitivo estatal, qual seja, a de que somente poderá ter invadida sua esfera de liberdade, se realizar uma conduta descrita em um daqueles raros pontos onde a lei definiu a existência de uma infração penal (CAPEZ, 2013, v. 1. p.37).

O princípio, portanto, corresponde a uma aspiração básica intrínseca à própria natureza humana, de proteger-se contra qualquer forma de tirania e arbítrio dos detentores do poder.

Neste sentido, a Teoria do Contrato Social, dá um grande impulso ao próprio princípio, pois nesta, o homem abrindo mão de uma parcela de sua liberdade, aceita a realização de um pacto, que viabilizaria a vida em sociedade, mediante garantias mínimas contra o arbítrio, dentre as quais a de não sofrer punições, salvo nas hipóteses previamente elencadas.

Neste sentido interessante o posicionamento de Fernando Capez:

De nada adiantaria exigir a prévia definição da conduta na lei se fosse permitida a utilização de termos muito amplos (...) A garantia, nesses casos, seria meramente formal, pois, como tudo pode ser enquadrado na definição legal, a insegurança jurídica e social seria tão grande como se nenhuma lei existisse. (CAPEZ, 2013. v. 1. p.63)

Doutrinariamente fala-se em limitações ao poder punitivo, decorrentes deste princípio, quais sejam: a proibição da retroatividade da lei penal incriminadora; a proibição de criação de crimes ou penas pelos costumes; a proibição do uso da analogia, salvo para benefício do réu; e por fim a proibição de incriminações vagas e imprecisas.

Tais limitações justificam-se pela própria natureza garantidora do princípio e muito se poderia discorrer acerca de cada uma delas, entretanto, devido a pertinência ao tema proposto na presente pesquisa, optar-se-á por fazê-lo apenas no tocante a proibição de incriminações vagas e imprecisas, pois esta vai ao cerne da questão que aqui se pretende desenvolver.

Basicamente a vedação consiste em impedir a construção de tipos penais demasiadamente vagos e imprecisos, uma vez que tais dispositivos, carentes de precisão na descrição das condutas tidas como criminosas, de alguma forma, podem ocasionar certa insegurança aos cidadãos, violando assim o princípio da legalidade.

Deste modo, cabe a lei a definição do crime mediante a descrição das condutas tidas como indesejáveis e passíveis de punição, propiciando aos cidadãos, prévio e integral conhecimento destas. Segundo, Francisco de Assis Toledo, para que a lei penal possa desempenhar uma função pedagógica, motivando o comportamento humano, há de ser facilmente acessível a todos e não somente aos juristas (TOLEDO, 2002. p. 29).

Neste sentido, interessante o posicionamento de Guilherme de Souza Nucci, no que concerne aos tipos penais abertos e imprecisos. Para ele, tais dispositivos por dependerem de tamanha valoração do julgador, podem esvaziar o próprio princípio, reduzindo-o a mera formalidade, pois ainda que existente a lei, esta ao apresentar-se vaga ou imprecisa, acaba por permitir o enquadramento de diversas outras condutas, consoante critérios subjetivos do julgador (NUCCI, 2013. p. 111).

3.2 Princípio da taxatividade

Decorrente do princípio da legalidade, o presente princípio impõe que a descrição da conduta seja detalhada e específica não se coadunando com tipos genéricos demasiadamente abrangentes.

Para alcançar o cerne do presente princípio, mister a análise terminológica da palavra.

Ta.xa.ti.vo

adj (taxar+ivo) 1 Que taxa, que limita, que restringe. 2 Que fixa com precisão e em nome da lei ou regulamento. 3 Que circunscreve e reduz um caso a circunstâncias precisas e determinadas. Dicionário Português online: Michaelis - 2009.

Cernichiaro, citado por Capez (2013), diz ser perigosa uma descrição genérica por ensejar grande liberdade ao intérprete, “flagrantemente oposta ao mandamento constitucional. O crime não é ação, mas ação determinada. E determinada pela lei” (CAPEZ, 2013. p. 64).

Nos dizeres de Guilherme de Souza Nucci,

Não se pode, na atualidade, contentar-se com a mera legalidade, pois nem todo tipo penal construído pelo legislador obedece, como deveria, ao princípio da taxatividade. O ideal é sustentar a estrita legalidade, ou seja, um crime deve estar descrito em lei, mas bem detalhado (taxativo) de modo a não provocar dúvidas e questionamento intransponíveis(...) (NUCCI, 2013. p.109).

Em poucas palavras podemos concluir que as condutas típicas, devem demonstrar-se suficientemente claras e precisas de modo a não deixar dúvidas ao destinatário destas e não ensejar abuso do Estado na invasão da intimidade e da esfera de liberdade dos indivíduos.

Do exposto, resta nítida a tênue linha que separa o princípio da legalidade do ora analisado, este nasce em decorrência daquele, possibilitando a plena eficácia de sua função garantidora.

3.3 Princípio da intervenção mínima

Segundo este princípio, ao Direito Penal só cabe à proteção dos bens jurídicos mais importantes para a vida em sociedade, limitando sua intervenção quando outros ramos do direito demonstrarem ser ineficazes ou insuficientes.

A necessidade social deve ser o critério justificador fundamental para a intervenção das normas incriminadoras, o que significa dizer que a conduta realizada deve ser repugnada, antes de tudo, pela própria sociedade tendo assim justificada a tutela penal.

Isto porque o Direito penal realiza as mais graves interferências na esfera de liberdade individual, sua utilização, portanto, deve estar limitada e orientada pelos objetivos de realizações dos interesses sociais maiores, do contrário, seu uso desenfreado importa em ofensa a dignidade da pessoa humana, uma vez que estar-se-ia diante de intervenções desnecessárias.

Segundo entendimento de Fernando Capez:

o ramo penal só deve atuar quando os demais campos do Direito, os controles formais e sociais tenham perdido a eficácia e não sejam capazes de exercer essa tutela. Sua intervenção só deve operar quando fracassam as demais barreiras protetoras do bem jurídico predispostas por outro ramo do Direito (CAPEZ, 2013. p. 38).

A criminalização de condutas de baixa lesividade social é própria de regimes totalitários, pois pretende disciplinar pelo medo e pela repressão penal as condutas do povo em todas as suas filigranas.

A atividade punitiva deve ser sempre a última medida de um Direito que respeita a dignidade e liberdade individual de seus cidadãos, e nunca a primeira. Neste sentido, manifesta-se Fernando Capez: “Se existe um recurso mais suave em condições de solucionar plenamente o conflito, torna-se abusivo e desnecessário aplicar outro mais traumático” (CAPEZ, 2013. p. 39).

Daí a concepção consolidada doutrinariamente de um Direito penal como ultima ratio, ou seja, última medida, restringindo-se ao mínimo necessário para a manutenção da harmonia social e apenas quando os outros ramos do direito não forem suficientes para fazê-lo.

Nos dizeres de Guilherme Nucci, “O Direito Penal é considerada a ultima ratio, isto é a última cartada do sistema legislativo, quando se entende que outra solução não pode haver senão a criação de lei penal incriminadora” (NUCCI, 2013. p. 93).

A intervenção mínima e adequada, portanto, implicará em critérios de seletividade na indicação dos bens jurídicos que receberão a tutela penal, critérios estes traçados pelo próprio legislador, que observará os princípios que norteiam o direito penal.

3.4 Princípio da adequação social

De acordo com o princípio da adequação social, é impossível se considerar como delituosa e sujeita a sansão, uma conduta aceita ou tolerada pela sociedade, mesmo que se enquadre em uma descrição típica. Logo, se um comportamento, em determinadas circunstâncias, não recebe juízo de reprovação social, não pode constituir um crime.

Nos dizeres de Rogério Greco: “significa que apesar de uma conduta se subsumir ao modelo legal, não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada” (GRECO. p. 15).

Ainda segundo o referido autor, o princípio possui dupla função, quais sejam a de restringir o âmbito de aplicação do direito penal e dele excluir condutas consideradas socialmente adequadas e aceitas pela sociedade, bem como a de orientar o legislador na eleição das condutas que se deseja proibir ou impor (GRECO. p. 15).

Seja pelos costumes, folclore ou cultura, tais condutas, passaram a ser excluídas da esfera penal, ainda que aparentemente sejam típicas, e entram no âmbito da atipicidade, uma vez que estão amparadas pela aceitação social.

É certo que tal princípio não é estático, como também não o é a sociedade. Assim, é possível que determinadas condutas que já foram entendidas com atípicas deixem de ser toleradas, como tem acontecido com várias atividades envolvendo crueldade com animais.

4 O crime de violação de direito autoral sob enfoque principio lógico

Partindo do acima exposto, mister analisar o dispositivo analisado no presente artigo a luz de tais princípios para então aferir sua compatibilidade com os mesmos. Para tanto, há de se voltar ao cerne da questão que aqui se pretende testificar.

Em poucas palavras, a pesquisa pretende identificar a posição ocupada pelo dispositivo ora estudado, no cenário traçado acima, buscando concluir se o tipo penal se adéqua ao perfil constitucional do Estado democrático de Direito ou se representa afronta ao mesmo, caso em que restará manifesta sua inconstitucionalidade substancial.

Passemos então a análise do referido dispositivo, primeiramente sob a luz do princípio da legalidade.

Em uma primeira análise, poder-se-ia pensar em plena consonância entre ambos, uma vez que é a própria lei penal que está definindo ou prevendo o crime de violação de direito autoral, fazendo-o através do dispositivo ora analisado.

Contudo, vale ressaltar que conforme exposto anteriormente o princípio da legalidade vai além de simplesmente reservar para o estrito campo da lei a existência de um crime e sua correspondente pena. O princípio tem ainda a função de garantir aos cidadãos uma mínima proteção política em face do poder punitivo estatal, significa dizer que estes não podem ser punidos senão pelas condutas previamente estabelecidas por lei como indesejáveis e criminosas.

Nesta perspectiva, surge o questionamento quanto aos tipos penais vagos e imprecisos, serão estes capazes de conferir tal segurança aos cidadãos?

Neste sentido, manifesta-se Cernichiaro, citado por Nucci (2013):

Vale ressaltar que a legalidade, como garantia humana fundamental que é, no campo penal, não pode ser meramente formal, sendo insuficiente apenas a existência de uma lei anterior à conduta. Torna-se indispensável que a elaboração do tipo penal seja específica, ou seja, claramente individualizadora do comportamento delituoso (NUCCI, 2013. p. 112).

Como poderá o cidadão evitar a invasão em seu direito de liberdade, se não sabe ao certo a conduta tida como delituosa para que dela possa se esquivar?

Neste sentido, relevante o ensinamento de Nilo Batista:

A função de garantia individual, exercida pelo princípio da legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que definem os crimes não dispusessem de clareza denotativa na significação de seus elementos, inteligíveis por todos os cidadãos. Formular tipos penais “genéricos ou vazios”, valendo-se de “cláusulas gerais” ou “conceitos indeterminados” ou “ambíguos”, equivale teoricamente a nada formular, mas é prático e politicamente, muito mais nefasto e perigoso. (BATISTA, 1990. p.78.)

Do exposto, passemos a análise propriamente dita do caput do art. 184 do CPB. Amolda-se com o referido princípio? Será ele revestido da precisão e clareza que o princípio exige para sua plena adequação? Cumpre a função garantidora do princípio da legalidade?

O caput do referido dispositivo possui a seguinte redação, ora transcrita:

Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. (Redação dada pela Lei nº 10.695, de 1º.7.2003)

Nota-se que o caput do art. traz como conduta criminosa o ato de violar direitos do autor. Resta, contudo o seguinte questionamento: o que vem a significar o verbo “violar” dentro do referido dispositivo? Não seria abrangente demais para representar um tipo penal?

Analisar-se-á a definição terminológica da palavra:

vi.o.lar
(lat violare) vtd 1 Infringir, quebrantar, transgredir: Violar a lei, violar o juramento. 2 Atentar contra o pudor de: forçar, estuprar, violentar: Violar uma donzela. 3 Profanar: Violar uma igreja, violar um templo. 4 Abrir uma carta destinada a outrem: Violar uma correspondência. 5 Revelar indiscretamente:Violar um segredo. (Dicionário Português online: Michaelis 2009).

vi.o.lar

v.t. Desrespeitar, infringir, transgredir: violar as leis. / Desrespeitar a santidade de; profanar: violar templos. / Divulgar, revelar: violar segredos. / Desvirginar, deflorar, estuprar. // Violar correspondência, abrir correspondência destinada a outrem. // Violar o domicílio de alguém, invadi-lo ilegalmente. (FERREIRA, 2004).

Nota-se que de ambas as fontes, extrai-se o largo alcance terminológico da palavra, podendo assumir diferentes significados de acordo com o contexto em que estiver inserida. De que forma então entende o legislador a palavra em questão enquanto conduta criminosa?

São questionamentos relevantes, uma vez que o tipo penal não contém expressamente tal descrição. Mostra-se necessário, para a preservação da função garantidora do princípio da legalidade, entender qual conduta considerou o legislador como ilícito desta natureza.

Ora, se mesmo aos profissionais do direito uma interpretação como esta exige profundo estudo e reflexão da matéria, como será para o cidadão que constitucionalmente tem direito de saber por lei, com antecedência, as condutas que lhe são penalmente proibidas?

Se não se sabe ao certo qual a conduta proibida, não se pode reprovar alguém por sua prática, pois não há culpabilidade sem a potencial consciência da ilicitude.

É bem verdade que em seus parágrafos, o art.184 do CPB é mais preciso ao definir uma série de condutas vedadas, entretanto a redação de todos eles faz referência à expressão “violar direito de autor” presente no caput, o que torna suas interpretações dependentes do significado que é atribuído ao tipo penal do caput.

Se tivesse o legislador mencionado ao menos uma das condutas presentes no parágrafo 2°, no caput do artigo, talvez a realidade fática do referido dispositivo fosse distinta e possivelmente a atual discussão proposta nesta pesquisa, não mais se sustentaria. Contudo, estas são somente suposições que infelizmente não remetem a realidade, o que, por sua vez, dá azo a presente pesquisa.

Vê-se, pois, que a expressão “violar direito de autor” é tão vaga que não admite uma interpretação que possa ser considerada minimamente pacífica mesmo entre os juristas. Destarte, evidentemente, não satisfaz a clareza necessária para ser considerado um crime definido em lei que pudesse ser compreendido por qualquer pessoa do povo alfabetizada, razão porque o art.184 do CPB sob o prisma do princípio da legalidade deve ser considerado inconstitucional.

De igual forma, no que tange ao princípio constitucional penal da taxatividade, teremos igual cenário de incompatibilidade, uma vez que o referido dispositivo carece de precisão na descrição da conduta tida como criminosa.

No que concerne ao princípio da intervenção mínima e da adequação social, várias ponderações poderiam ser feitas, entretanto, estas poderiam escapar do principal objetivo traçado para a presente pesquisa, qual seja evidenciar a inconstitucionalidade do referido dispositivo penal, dada à ofensa a princípios de base constitucionais.

Por este motivo, optar-se-á por uma breve análise do tema, dada sua inegável pertinência, sem a pretensão de esgotá-lo, uma vez que não representa o foco central do presente trabalho.

Conforme disposto acima, consoante o princípio da intervenção mínima cabe ao Direito Penal à tutela de determinados bens jurídicos, selecionados segundo critérios políticos específicos, já detalhados anteriormente.

Ora, se existe um dispositivo penal a tutelar a propriedade imaterial, significa dizer que existem condutas repugnadas, antes de tudo, pela própria sociedade e que de alguma forma representam lesão a tal bem jurídico, justificando a utilização da “última medida”, qual seja o Direito penal.

Contudo, neste ponto resta o seguinte questionamento: será mesmo que o crime previsto do artigo 184 do CPB está a causar tamanha reprovação social de modo a justificar a tutela penal? Ou estar-se-á diante de fatos que ganharam adequação social, perdendo deste modo sua razão de ser tutelado por tal ramo do Direito?

Nota-se que o cerne do questionamento ora exposto, versa em objeto distinto daquele que se pretende com o presente trabalho, pois estes buscam identificar se o crime de violação de direito autoral, está, de fato, a merecer a tutela penal, ou se encontra amparo na aceitação social, caso em que outros ramos do direito mostrar-se-iam suficientes para a proteção do bem jurídico.

Não se pode negar que a violação de direitos autorais – conhecida popularmente como pirataria - vem tornando-se parte do quotidiano das pessoas e ganhando cada vez mais aceitação ou causando sempre menos repúdio social, o que por sua vez pode estar a evidenciar a aceitação social da conduta.

Daí sua utilização em massa como argumento de defesa nos processos criminais, conforme se extrai do trecho jurisprudencial ora transcrito:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - VENDA DE CD's E DVD's FALSIFICADOS - ART. 184, § 2º DO CP - VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL - PRECEDENTES DO STF E STJ - PRINCÍPIOS DA ADEQUAÇÃO SOCIAL E DA INTERVENÇÃO MÍNIMA - AFASTAMENTO - TIPICIDADE MATERIAL RECONHECIDA - RECURSO IMPROVIDO.
-Consumada a infração prevista no art. 184, § 2º, do CP, descabida a invocação da teoria da adequação social ao propósito de afastamento da tipicidade material da conduta, porquanto a conduta praticada pelo acusado
possui relevância penal.

V.V.
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. RECURSO MINISTERIAL. ARTIGO 184, §2º, DO CÓDIGO PENAL. RÉU ABSOLVIDO. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL. POSSIBILIDADE. CONDUTA SOCIALMENTE ACEITA. AUSÊNCIA DE TIPICIDADE MATERIAL. DECISÃO PRIMEVA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
- Aplicam-se os princípios da adequação social e da intervenção mínima nos casos de comércio de produtos piratas, tendo em conta que a prática, além de fazer parte do cotidiano do país, é aceita pela sociedade, máxime quando o agente o faz para se manter no emprego informal, sendo esta sua única atividade. (Apelação Criminal 1.0518.09.173064-9/001, Relator(a): Des.(a) Nelson Missias de Morais , Relator(a) para o acórdão: Des.(a) Matheus Chaves Jardim , 2ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 12/03/2014, publicação da súmula em 24/03/2014). (grifo nosso)

Pelo exposto, resta evidente a afronta que o art. 184 do CPB, ora analisado, representa aos princípios acima descritos, o que está por evidenciar sua inconstitucionalidade material.

4.1 Posições doutrinárias acerca do tema

Para alguns, o dispositivo penal ora analisado não constitui ofensa a princípios constitucionais, por ter tal carência na descrição da conduta delituosa, suprida pelas disposições contidas na Lei Civil n° 9.610/1998, tratando-se, portanto, de uma norma penal em branco.

Várias ponderações precisam ser feitas acerca do posicionamento ora descrito, primeiramente, no que tange a própria solução proposta. Ora, suprir a carência de descrição de conduta de um tipo penal com condutas descritas em uma lei civil, evidencia uma equiparação de ilícitos de diferentes naturezas que assim o são devido razões específicas, critérios políticos de seleção traçados pelo próprio legislador.

Rogério Greco, na Obra Estrutura Jurídica do Crime, traça um interessante paralelo entre os diversos tipos de ilícitos, evidenciando a existência de uma razão política para que determinado ilícito seja tutelado pela esfera penal.

Vale ressaltar que não se quer com isto defender que a propriedade imaterial não mereça a tutela penal, pois esta é uma discussão que foge do objetivo da presente pesquisa.

Ademais, acredita-se ser perfeitamente possível, que o legislador, baseando-se em seus critérios específicos, defina condutas, relativa à mesma matéria, que representem meros ilícitos civis, e as estas reserve as sanções cabíveis na esfera cível, e condutas, que dada à gravidade da ofensa, mereçam sim a tutela penal, com sua devida punição previamente prevista em lei.

Nota-se que deste modo, não se estaria diante de afronta a princípios constitucionais, nem tampouco de equiparação de ilícitos de diferentes naturezas, uma vez que havendo distinção clara entre o penal e o civilmente punível, a dignidade da pessoa humana, a liberdade dos cidadãos está garantida.

Entretanto a solução proposta e aceita por grande parte dos juristas não delineia tal distinção, pelo contrário, ela propõe uma sanção penal para uma conduta prevista em uma lei civil, já que a lei penal fora omissa na descrição da conduta.

A atividade legislativa, portanto, no que concerne ao dispositivo 184 do CPB, carece de clareza nesta distinção, em outras palavras, faz-se necessário que o legislador aponte quais as condutas que estão a lesar o direito do autor, configuram ilícitos penais, uma vez que as que representam meros ilícitos civis já estão devidamente arroladas em lei específica (Lei n° 9.610/1998).

Neste sentido, o entendimento consolidado por Túlio Vianna acerca do tema, corrobora com a ideia que se pretende demonstrar com a presente pesquisa, conforme se extrai do presente trecho de sua Obra A Ideologia da Propriedade Intelectual:

Sob o aspecto de tipo legal a expressão “violar o direito de autor” não descreve o comportamento proibido de forma minimamente precisa. Ao remeter a um conceito da lei civil n° 9.610/1998, esvanece totalmente sua função de garantia contrariando o princípio constitucional da taxatividade. (VIANNA, 2005. p. 13).

Existem ainda outras problemáticas advindas do posicionamento acima exposto, que igualmente merecem destaque. A afronta ao princípio da separação dos poderes, por exemplo, uma vez que ao propor fazer uso de condutas elencadas em uma lei civil, trazendo-as para esfera penal, propõem-se atividade legislativa de meros aplicadores do direito.

A solução proposta, portanto, atribui ao judiciário, a quem compete tão somente à aplicação do direito, uma função legislativa não prevista constitucionalmente, daí afronta ao referido princípio.

A proposta para solucionar o problema, segundo nosso entendimento, deve dar-se em sede legislativa com alteração redacional do caput. do dispositivo legal ora estudado, o qual deveria conter condutas precisas, claras e objetivas, e ainda que não se confundam com as elencadas na lei civil n° 9.610/1998, sob pena de caracterização de sua inconstitucionalidade substancial dada ofensa a princípios de base constitucional.

4.2 Norma Penal em branco

Consoante acenado acima, atualmente, tem-se consolidado sempre mais o entendimento de que o dispositivo 184 do CPB, constitui uma norma penal em branco, haja vista sua necessidade de complementação, que é alcançada pelas disposições contidas na Lei civil n° 9.610/1998.

Pelo acima exposto, faz-se mister adentrar no verdadeiro conceito de norma penal em branco, para somente então concluir se de fato se está diante de uma norma penal em branco.

Sabe-se que todo tipo penal incriminador é composto de dois preceitos, quais sejam o preceito primário, àquele que contém a descrição da conduta delituosa e preceito secundário, que por sua vez estabelece uma pena.

Normas penais em branco são aquelas que necessitam de complementação para que se possa compreender o âmbito da aplicação de seu preceito primário, isto é, a parte do tipo penal que descreve a conduta delituosa (GRECO, 2008. p. 7).

Significa dizer, que embora haja uma descrição da conduta proibida, essa descrição, necessita de um complemento a ser extraído de outro diploma - leis, decretos, regulamentos etc - para que possam, efetivamente, ser entendidos os limites da proibição ou imposição feitos pela lei penal, uma vez que, sem esse complemento, torna-se impossível a sua aplicação.

Neste sentido, Luiz Régis Prado:

Na lei penal em branco, o comportamento prescrito (ação ou omissão) vem apenas parcialmente descrito ou enunciado, sendo que a parte integradora ou complementar – elemento indispensável à conformação da tipicidade penal – está prevista em outra norma jurídica da mesma ou inferior instância legislativa (PRADO, 2013. p. 215).

Consoante Guilherme Nucci, tais normas trazem em seu conteúdo referências a termos ou expressões, cuja descrição e conteúdo somente se tornam claros mediante a consulta a normas constantes de outros corpos legislativos ou administrativos (NUCCI, 2013. p. 106).

Insta, contudo salientar, que conforme disposto acima, a norma penal em branco necessita tão somente de uma complementação à conduta descrita, o que pressupõe a existência de uma descrição delineada da conduta delituosa.

CEREZO, citado por PRADO (2013), diz ser indispensável que a lei penal em branco contenha a descrição do núcleo essencial da ação proibida (ou ordenada) (PRADO, 2013. p. 216).

Visando melhor elucidar o acima exposto, analisar-se-á um clássico exemplo de uma norma penal em branco.

A Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006, em seu art. 28, traz a seguinte disposição:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

Trata-se de uma norma penal em branco, por que para ter o efetivo enquadramento de uma pessoa neste tipo penal é imprescindível saber de quais substâncias se refere o legislador, uma vez que este não explicita quais são elas, limitando-se a utilização da palavra drogas.

Nota-se que a complementação faz-se necessária para fins de aplicação do mencionado artigo, e esta encontra guarida na Portaria expedida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, que por sua vez define qual ou quais substâncias são tidas como drogas e têm seu uso proibido.

Vale ainda ressaltar, que tal complementação de que necessita o dispositivo ora analisado versa tão somente no que vem a consistir as substâncias entorpecentes, uma vez que as condutas tidas como delituosas estão expressamente previstas no tipo penal e consistem em adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo.

Nota-se, portanto que uma norma penal em branco não será àquela que carece de descrição da conduta delituosa, mas sim àquela que carece de um complemento normativo que possibilite o efetivo enquadramento da conduta descrita à conduta realizada pelo agente.

Muitas vezes, esse complemento de que necessita a norma penal em branco é fornecido por outra lei, ou, como vimos acima, no caso do art. 28 da mencionada lei, por algum outro diploma que não uma lei em sentido estrito. Por essa razão, a doutrina divide as normas penais em branco em dois grupos:

Normas penais em branco homogêneas: quando o seu complemento é oriundo da mesma fonte legislativa que editou a norma que necessita desse complemento.

Normas penais em branco heterogênea: quando o seu complemento é oriundo de fonte diversa daquela que a editou.

No caso do art. 28 da Lei de Entorpecentes, por exemplo, estamos diante de uma norma penal em branco heterogênea, uma vez que o complemento necessário ao referido artigo foi produzido pela ANVISA, e a Lei n° 11.343/2006, foi editada pelo Congresso Nacional.

Deste modo, pode-se concluir que a norma penal em branco não se confunde com o tipo aberto, aquele que não apresenta a descrição típica completa e exige uma atividade valorativa do juiz.

Neste sentido, relevante o entendimento de Guilherme Nucci, ora transcrito:

Parece-nos razoável a existência das normas penais em branco. Lembremos que o branco da norma, dependente de complemento pode ser integralmente preenchido por meio de consulta a outra norma vigente, em textos de conhecimento público. Ademais a norma em branco pode ser muito mais segura do que tipos penais excessivamente abertos. (NUCCI, 2013.p. 107).

Após discorrer sobre o conceito propriamente dito de norma penal em branco, torna-se possível analisar o dispositivo 184 do CPB e traçar a conclusão proposta acima.

Sabe-se que o que se tem consolidado doutrinariamente, é que o referido artigo constitui norma penal em branco dada sua ausência de descrição na conduta delituosa, entretanto, tendo em vista o acima exposto, tal conclusão mostra-se descabida, uma vez que foge do real conceito de norma penal em branco.

Afinal, a norma penal em branco pressupõe a existência de uma conduta delituosa explicitamente descrita, carecendo somente de uma complementação desta para seu efetivo alcance.

Não parece o caso do referido dispositivo, que sequer possui uma conduta delituosa descrita. O tipo penal previsto no art. 184 do CPB é demasiadamente vago e genérico para refletir consonância ao perfil constitucional de um Estado Democrático de Direito.

6 Precedentes jurisprudenciais envolvendo a problemática

Por todo o exposto resta evidenciado a relevância da abordagem ora proposta, que seja em sede doutrinária, seja em sede acadêmica ou mesmo social, sempre mais terá justificada sua discussão uma vez que envolve impactos práticos para a sociedade.

Tal realidade não poderia mostrar-se diferente no judiciário, onde é sempre crescente o número de demandas que, alegando a inconstitucionalidade do dispositivo, requerem absolvição de quem enquadrado no referido crime. É o que ora se passa a demonstrar.

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL - ABSOLVIÇÃO - PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL - INVIABILIDADE - INCONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSITIVO LEGAL - INOCORRÊNCIA - CONDENAÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
- Embora sirva de norte para o legislador, que deve distinguir dentre as condutas aquelas socialmente relevantes e, portanto, merecedoras de intervenção do Direito Penal, não me parece razoável a aplicação pelo Judiciário do Princípio da Adequação Social.
- Inexiste inconstitucionalidade no dispositivo legal previsto no art. 184, § 2º do CPB - precedente julgado pela Corte Superior do eg. TJMG.
- A proteção dos direitos autorais é uma necessidade premente em nossa sociedade nos dias atuais, principalmente em face do vertiginoso crescimento desse tipo de delito, deixando indefesos aqueles que sobrevivem da criação artística. (Apelação Criminal 1.0209.08.089275-2/001, Relator(a): Des.(a) Furtado de Mendonça , 6ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 27/08/2013, publicação da súmula em 04/09/2013)

Nota-se que relevante faz-se evidenciar que o tema tem chegado ao judiciário em número sempre mais crescente, independentemente de seu acolhimento ou não.

De igual maneira o recurso de apelação n° 1.0024.05.646547-9/001 interposto pelo Réu, contra sentença oriunda do juízo da 9ª Vara Criminal da Comarca de Belo Horizonte, evidencia tal presença do tema no judiciário.

A sentença proferida por aquele juízo o condenou às penas de dois anos de reclusão, regime aberto, e dez dias-multa, à razão mínima, pela prática do crime previsto no art. 184, § 2º, do CP. Narram os autos que, em 30/06/2004, o acusado foi surpreendido por policiais civis, na Rua São Paulo, centro de Belo Horizonte, expondo à venda 82 (oitenta e dois) CD´s produzidos com violação de direitos autorais. Ao perceber a presença deles, o acusado desarmou o tabuleiro e empreendeu fuga, mas foi alcançado e preso.

Após instrução criminal, veio sentença condenatória, reconhecendo a violação a direito autoral. A pena privativa de liberdade foi substituída por penas restritivas de direitos. A defesa do réu recorre buscando a absolvição sob alegação de erro de proibição.

O voto do Des. Rel. Alexandre Victor de Carvalho, dá provimento ao apelo, não pelo invocado erro de proibição, uma vez que inexistente, haja vista que a conduta do apelante demonstrou o conhecimento da proibição existente, mas sim por comungar das conclusões alcançadas por Túlio Vianna, na Obra, “A Ideologia da Propriedade Intelectual”, acerca da inconstitucionalidade do referido dispositivo dada a afronta aos princípios da legalidade e taxatividade.

Nos dizeres do Desembargador:

A Constituição da República de 1988, ao declarar o Brasil um Estado Democrático de Direito, adotou no art. 5º, inc. XXXIX, o conhecido princípio da Legalidade que tem, como uma de suas funções, proibir incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poena sine lege certa).

E continua ainda “A meu sentir, um desses exemplos de conceitos vagos e imprecisos é o encontrado no §2º do art.184 quando diz "violação do direito de autor". O que isso significa?”.

Nota-se no caso em tela que a alegação partiu do próprio judiciário através do posicionamento do Desembargador Relator. Igualmente relevante à postura do então Des. Hélcio Valentim que em seu voto diz ser imperioso que a Corte Superior se pronuncie sobre a inconstitucionalidade do dispositivo em questão, para que, a partir do precedente, os seus órgãos fracionários possam declará-la, caso seja esse o entendimento da Corte.

O presente recurso restou sumulado:

SÚMULA: APÓS O DESEMBARGADOR VOGAL ARGÜIR A INCONSTITUCIONALIDADE DO § 2º DO ARTIGO 184 DO CÓDIGO PENAL, A TURMA JULGADORA DEU POR RELEVANTE A QUESTÃO, SOBRESTANDO O JULGAMENTO. O DESEMBARGADOR PRESIDENTE DETERMINOU A REMESSA DOS AUTOS À EGRÉGIA CORTE SUPERIOR PARA O EXAME DA QUESTÃO À LUZ DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 481 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 97 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

Igualmente imperioso, faz-se a análise do incidente de arguição de inconstitucionalidade cível n° 1.0024.03.146587-5/002 na apelação criminal n° 1.0024.03.146587-5/001 – Comarca de Belo Horizonte – Requerente(s): 5° Câmara Criminal – Requerido(a): Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – Rel. Des. Sérgio Resende, levada à apreciação desta Corte em 10 de dezembro de 2008, com a seguinte ementa:

EMENTA: INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - RESERVA DE PLENÁRIO - ART. 184, §2º DO CÓDIGO PENAL - QUESTIONAMENTO DE NULIDADE DO CITADO DISPOSITIVO LEGAL - PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO E DE DIREITOS PESSOAIS DOS AUTORES E SEUS SUCESSORES - TIPO PENAL EM BRANCO - COMPLEMENTAÇÃO PELA LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA PÁTRIA - INOCORRÊNCIA DE LESÃO AO PRINCÍPIO DA TAXATIVIDADE - REGRA QUE ATENDE AOS ANSEIOS POPULARES - IMPROCEDÊNCIA DA ARGUIÇÃO.

A questão fora levantada pelo Des. Alexandre Victor de Carvalho que em seu voto sustenta a inconstitucionalidade do parágrafo segundo do art. 184 do CPB, por entender que a citada norma viola o princípio constitucional da taxatividade, trazendo uma incriminação vaga e imprecisa, fundando-se em um bem jurídico indeterminado, o que é vedado no Direito Penal brasileiro.

Para o Desembargador, o referido dispositivo não constitui norma penal em branco, uma vez que estas necessitam tão somente de complementação de seu preceito primário, não podendo tal preceito ser constituído por um verbo genérico, núcleo do tipo, uma locução, que não tem nenhuma precisão, que é, totalmente, porosa e que tem uma vaguitude imensa.

Como amicus curiae, ingressou no feito o Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico - IBDE, apresentando parecer pela procedência do incidente. Seguem trechos desta participação que corroboram com o tema desta pesquisa:

A simples leitura do art.184 do CP – “violar direito de autor” – para a maioria dos brasileiros, incluindo aqueles de formação universitária, não esclarece, com o mínimo de taxatividade necessária, qual a conduta para a qual se prevê a imposição da pena.

E ainda:

A expressão “violar direito de autor” não descreve o comportamento proibido de forma minimamente precisa e, por isso, esvanece totalmente sua função de garantia, contrariando o princípio constitucional da taxatividade.

Pelas transcrições e posicionamentos descritos, resta nítido que a alegação da inconstitucionalidade do referido dispositivo penal faz-se sempre mais presente no judiciário o que por sua vez pode estar a evidenciar uma problemática, afinal, se o tipo penal fosse claro e objetivo, as alegações de sua inconstitucionalidade não se sustentariam.

5 Conclusão

O presente trabalho científico propôs a análise do artigo 184 do CPB, visando identificar se este se amolda ao perfil constitucional do Estado Democrático de Direito.

Em vista dos argumentos apresentados, a conclusão pela inconstitucionalidade material do referido dispositivo faz-se necessária, dada a evidenciação de afronta a princípios constitucionais penais.

Com a pesquisa, verificou-se que a ausência de descrição na conduta delituosa, é incompatível com os princípios constitucionais da legalidade e da taxatividade, o que por sua vez, evidencia a inconstitucionalidade substancial do referido dispositivo penal e justifica a defesa de tê-lo expurgado do ordenamento jurídico atual.

Constatou-se ainda, que a solução proposta em sede doutrinária, qual seja, a escolha pela norma penal em branco, buscando complementações na lei n° 9.610/98, acarreta em afronta ao princípio da separação dos poderes, bem como em equiparação de ilícitos de diferentes naturezas.

Traçando soluções em sede legislativa para a problemática, o presente trabalho mostra-se relevante não somente para a constatação ou levantamento de uma problemática, como também por levantar discussões acerca de um tema de tamanha relevância social.

  • Direito Penal
  • Direitos autorais

Referências

BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 3° ed. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. 2° ed. São Paulo: Martin Claret, 2010.

BINI, Diego. O Estado Democrático de Direito e o direito penal no Brasil: Finalismo ou funcionalismo? Eis a questão. Jus Navigandi, Teresina. Disponível em: . Acesso em: 05 abr. 2014.

BITTENCOURT, César Roberto. Tratado de Direito Penal 3 – Parte Especial. 7° ed. São Paulo: Saraiva, 2011. v..3.

BRASIL. Código Penal Brasileiro. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Vade mecum. São Paulo: Saraiva, 2013.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Lei n° 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crime e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 de ago. 2006.

BRASIL. Lei n° 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Altera, atualiza e consolida a legislação sobre diretos autorais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 20 de fev. 1998.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Especial.  10° ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 2.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 17° ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 1.

GONZAGA, Alvaro de Azevedo; ROQUE, Nathaly Campitelli. Vademecum Humanístico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – parte geral. Disponível em: < http://pt.slideshare.net/dianasampaio2008/direito-curso-de-direito-penal-parte-geral-rogério-greco> Acesso em: 24 abr. 2014.

GRECO, Rogério; GALVÂO, Fernando. Estrutura Jurídica do Crime. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6° ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Apelação criminal - processo penal - violação de direito autoral - art. 184, § 2°, CPB - ofensa ao princípio da taxatividade - arguição de inconstitucionalidade - relevância - acolhimento pela turma julgadora – incidência da segunda parte do art. 481, do CPC - aplicação subsidiária, na forma do art. 3°, do CPP - remessa ao órgão especial. Ap. 1.0024.05.646547-9/001, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho. Publ. 31/05/2008.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Incidente de Inconstitucionalidade - reserva de plenário - art. 184, §2º do código penal. Ap. 1.0024.03.146587-5/001, Rel. Des. Sérgio Resende.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Réu absolvido. Aplicação do princípio da adequação social. Possibilidade. Conduta socialmente aceita. Ap. 1.0518.09.173064-9/001. Rel. Des. Matheus Chaves Jardim. Publ. 24/03/2014.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Violação de direito autoral - absolvição - princípio da adequação social - inviabilidade - inconstitucionalidade do dispositivo legal. Ap. 1.0209.08.089275-2/001, Rel. Des. Furtado de Mendonça. Publ. 04/09/2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 9° ed rev., atual., e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. 3° ed ver., atual., e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Especial. 11° Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

SOUZA, Esdras Dantas de. Curso de Direito Penal, aulas de direito em vídeo. Disponível em: < http://estudosdedireitopenalpartegeral.blogspot.com.br/>. Aceso em 08 abr. 2014.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5° ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

VIANNA, Túlio lima. A ideologia da propriedade intelectual: a inconstitucionalidade da tutela penal dos direitos patrimoniais de autor. Disponível em: .  Acesso em: 04 set. 2013.


Ana Lima Advocacia.

Advogado - Belo Horizonte, MG


Comentários