ABORTO EM CASO DE MICROCEFALIA


28/04/2017 às 16h38
Por Danielle Silveira Arnoni

O principal objetivo do presente artigo é discutir a questão do aborto em casos comprovados de microcefalia. O surto epidêmico que assola o país e as incertezas e dúvidas em torno da síndrome são, de fato, causas motivadoras para elaboração deste artigo. 

A seguir será analisado o aborto sob um prisma amplo, desde seus aspectos históricos até se adentrar na controvérsia de uma possível descriminalização em casos confirmados de microcefalia. Nesse contexto, será compreendido o aborto no direito brasileiro elencando-se as previsões penais com as consequentes punições previstas pelo atual Código Penal a quem praticar as condutas típicas. 

Depois disso, serão analisadas as hipóteses legais de aborto, ou seja, as hipóteses elencadas no artigo 128 do Código Penal em que o aborto não será considerado crime. Haverá também reflexões a respeito do aborto eugênico ou eugenésico e quanto à possibilidade de aborto em casos de anencefalia. 

Antes de entrar na questão da microcefalia será realizada uma análise epistêmica em que serão observados argumentos contrários e a favor do aborto num aspecto geral. Serão estudadas as possíveis causas da microcefalia bem como as possíveis consequências da doença.

Por fim, serão reunidos relatos de mães de crianças portadoras da doença além do relato de Ana Carolina Cáceres, de 24 anos, portadora de microcefalia. Nesses depoimentos serão demonstrados os problemas e preconceitos enfrentados por quem sofre com a síndrome e também por quem luta diariamente para dar uma vida digna a seus filhos portadores da doença.

 

1-  Breve Aspecto Histórico do Aborto

 

Na antiga Grécia, o aborto era geralmente permitido e constituía um meio idôneo de controle populacional. O aborto não chocava o senso moral comum e não existiam restrições jurídicas para tal conduta. Não se reconhecia a dignidade do feto. “Situação análoga valia em Roma, onde o aborto não levantava problemas éticos e o direito era influenciado pela tese estóica do feto como pars viscerum matris (‘parte das entranhas maternas’)” [1]. Percebe-se assim, que o feto fazia parte do corpo da mãe não sendo considerado um ser em si.

A prática do aborto era muito difundida no mundo antigo e a condenação do aborto era considerada uma exceção. Todavia, com a derrocada do império romano houve uma revolução cultural na historia da humanidade o que acarretou mudança de mentalidade e costumes. Essa revolução cultural se deu com o cristianismo que vetou categoricamente o aborto “por considerá-lo contrário à soberania de Deus sobre a vida humana e sobre o processo generativo” [2].

O cristianismo foi uma doutrina revolucionária, pois se provocou uma valorização da vida como nunca conhecido antes, valorização essa que englobava agora também o feto. O aborto tornou-se um pecado contra Deus e quem o praticasse incidia em delito mais severo do que o do homicídio. O cristianismo trouxe consigo a ideia de que o feto era um ser separado do corpo materno, ou seja, a ele não pertencia e por isso devia adquirir direitos próprios. Diante disso, com o cristianismo o aborto era absolutamente proibido sem comportar exceções.

 

2-  O Aborto no Direito Brasileiro

 

Conforme analisado acima, com o cristianismo o aborto passou a ser considerado crime. Em 1830 não havia punição para o auto aborto. Somente o Código Penal de 1890 passou a incriminá-lo.

Poucas legislações admitem livremente a prática do aborto consentido e procurado pela gestante, a maioria descrimina parcialmente no sentido de tornar legal o aborto apenas quando realizado em casos específicos e em determinadas circunstâncias como ocorre no Brasil.

Atualmente o Código Penal, de 1940, prevê punições a quem praticar o aborto ou colaborar com sua prática.

Fernando Capez assim dispõe: 

 

  • O Código Penal de 1890, por sua vez, passou a prever a figura do aborto provocado pela própria gestante. Finalmente, o Código Penal de 1940 tipificou as figuras do aborto provocado (CP, art. 124 — a gestante assume a responsabilidade pelo abortamento), aborto sofrido (CP, art. 125 — o aborto é realizado por terceiro sem o consentimento da gestante) e aborto consentido (CP, art. 126 — o aborto é realizado por terceiro com o consentimento da gestante)[3].

 

O Código Civil assegura os direitos do nascituro em seu artigo 2° ao dispor que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro” [4]. Diante disso, percebe-se que a intenção do legislador é proteger também a pré- existência do ser humano, fazendo parte da existência como um todo.

Voltando ao Código Penal Brasileiro, nele há previsão de seis tipos de aborto: o aborto autoprovocado (art. 124); o consentido (art. 124); o provocado por terceiros sem o consentimento da gestante (art. 125); o provocado por terceiros com o consentimento da gestante (art. 126); o qualificado (art. 127); e o legal (art. 128).

O artigo 124 do CP faz a previsão do aborto provocado pela gestante (autoaborto) e o aborto consentido e vem assim exposto no Código Penal: “Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque” [5].

Nesses casos, por tratar-se de um crime de mão própria, somente a gestante é sujeito ativo do crime. O sujeito passivo do artigo 124 é o feto, “ou, genericamente falando, o produto da concepção, que engloba óvulo, embrião e feto” [6]. Nesses tipos, a pena consiste em detenção de um a três anos.

O aborto provocado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante (CP, arts. 125 e 126) trata-se de crime comum e o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, independentemente de qualidade ou condição especial.

No aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (art.125), os sujeitos passivos são a gestante e o feto, tratando-se de crime de dupla subjetividade passiva.

O aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (art. 125) tem pena de reclusão de três a dez anos. Já o aborto provocado com o consentimento da gestante (art. 126) possui pena de reclusão de um a quatro anos.

De acordo com o artigo 127 do CP, o crime de aborto será majorado se, em consequência do aborto ou das manobras abortivas, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave ou se, por qualquer dessas causas lhe sobrevém a morte.

Assim dispõe o Código Penal:

 

  • Art.127- As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em consequência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte[7].

 

Portanto, ocorrendo a lesão grave, a pena é aumentada em um terço e ocorrendo a morte, a pena é duplicada.

Segundo preconiza Rogério Greco: “a rubrica constante do artigo 127 do Código Penal anuncia: forma qualificada. Na verdade, percebe-se que no mencionado artigo não existem qualificadoras, mas, sim, causas especiais de aumento de pena, ou majorantes (...)” [8].

 

3- Das Hipóteses Legais de Aborto

 

Conforme expõe Anelise Tessaro, advogada e mestra em ciências criminais, “o legislador penal definiu como crime de aborto a interrupção voluntária da gestação que implique na morte do produto da concepção, sendo irrelevante o estágio de desenvolvimento em que se encontre a gravidez” [9].

Contudo, o Código Penal de 1940, que continua em vigor nos dias atuais, elencou duas hipóteses onde o delito de aborto estaria afastado, isto é, trata das causas de exclusão da ilicitude do crime de aborto que vem assim descrito:

 

Art.128- Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto Necessário

I-          Se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II-         Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

 

Em decorrência desse dispositivo legal, “não são considerados como crime o aborto necessário ou terapêutico (aquele motivado pelo risco de vida da gestante) e o sentimental ou humanitário (aquele em que a gravidez é resultante de estupro)” [10].

O inciso I do artigo 128 trata do aborto necessário ou terapêutico em que ocorre “a interrupção da gravidez realizada pelo médico quando a gestante estiver correndo perigo de vida e inexistir outro meio para salvá-la” [11].

De acordo com o Professor Rogério Sanches, em caso de aborto necessário ou terapêutico “não há necessidade do consentimento da gestante para a realização do aborto, basta que o profissional entenda ser indispensável fazê-lo. Desnecessário, ainda, autorização judicial” [12].

Consoante doutrina majoritária trata-se de espécie de estado de necessidade e assim expõe Rogério Greco:

 

  • Não há como deixar de lado o raciocínio relativo ao estado de necessidade no chamado aborto necessário. Isso porque, segundo se dessume da redação do inciso I do art. 128 do Código Penal, entre a vida da gestante e a vida do feto, a lei optou por aquela. No caso, ambos os bens (vida da gestante e vida do feto) são juridicamente protegidos. Um deve perecer para que o outro subsista. A lei penal, portanto, escolheu a vida da gestante ao invés da vida do feto. Quando estamos diante do confronto de bens protegidos pela lei penal, estamos também, como regra, diante da situação de estado de necessidade, desde que presentes todos os seus requisitos, elencados no art. 24 do Código Penal[13].

 

Seguindo o mesmo raciocínio entende Cleber Masson:

 

  • No aborto necessário há conflito entre dois valores fundamentais: a vida da gestante e a vida do feto. E o legislador dá preferência àquela, por se tratar de pessoa madura e completamente formada, sem a qual dificilmente o próprio feto poderia seguir adiante. Em verdade, não se pode rotular como inconstitucional o sistema penal em que a proteção à vida do não nascido cede, diante de situações conflitivas, em mais hipóteses do que aquelas em que cede a proteção penal outorgada à vida humana independente[14].

 

O inciso II do artigo 128 trata do aborto sentimental, humanitário ou ético em que o aborto é realizado pelos médicos nos casos em que a gravidez decorreu de um crime de estupro.

Quanto ao aborto sentimental assim entende Cleber Masson:

 

  • No aborto em caso de gravidez resultante de estupro o Código Penal encontra seu fundamento de validade na dignidade da pessoa humana (CF, art. 1°, inciso III). Entendeu o legislador que seria atentatório à mulher exigir a aceitação em manter uma gravidez e criar um filho decorrente de uma situação trágica e covarde que somente lhe traria traumas e péssimas recordações[15].

 

Nélson Hungria descreve que costuma-se chamá-lo aborto sentimental pois “nada justifica que se obrigue a mulher a aceitar uma maternidade odiosa, que dê vida a um ser que lhe recordará, perpetuamente, o horrível episódio da violência sofrida” [16].

Fernando Capez acrescenta:

 

  • O artigo 128, II, do CP não faz qualquer distinção entre o estupro com violência real ou presumida (CP, art. 224), donde se conclui que este último está abrangido pela excludente da ilicitude em estudo. Na interpretação da regra legal é necessário ter em vista que onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete fazê-lo, até porque qualquer restrição importaria em interpretação in malam partem, já que, se se entendesse estar excluído do dispositivo legal o estupro com violência ficta, a conduta do médico que praticasse o aborto nessas circunstâncias seria considerada criminosa[17].

 

Nesse tipo de aborto é imprescindível o consentimento válido da gestante ou de seu representante legal, quando incapaz.

Em outras palavras esclarece José Henrique Pierangeli:

 

  • É momento de lembrar que o médico, para realizar o aborto sentimental, não necessita da comprovação de uma sentença condenatória contra o autor do crime de estupro, nem mesmo se exige autorização judicial. Submete-se o facultativo apenas e tão somente ao Código de Ética de Medicina , mas ele deve, por cautela, se cercar de certidões e cópias de boletins de ocorrência policial, declarações, atestados, etc. Atente-se que, se o médico for induzido a erro pela gestante ou terceiro, e se o aborto estiver justificado pelas circunstâncias que o levaram ao erro, haverá erro de tipo. Tratando-se de estupro de menor de 14 anos, quando a violência se presume, basta, para satisfazer a cautela, a prova da menoridade[18].

 

Por fim, quanto à natureza jurídica do aborto sentimental afirma Aníbal Bruno:

 

  • Em verdade, a questão aí está muito aquém do caso em que se trata de preservar a vida da mulher. Dificilmente se poderia reduzir a hipótese a um estado de necessidade. Mas razões de ordem ética ou emocional que o legislador considerou extremamente ponderáveis têm introduzido essa descriminante em algumas legislações, atitude incentivada por episódios graves que realmente reclamavam medidas de exceção[19].

 

Rogério Greco acredita que o legislador cuidou de uma hipótese de inexigibilidade de conduta diversa, “não se podendo exigir da gestante que sofreu a violência sexual a manutenção da sua gravidez, razão pela qual, optando-se pelo aborto, o fato será típico e ilícito, mas deixará de ser culpável” [20].

 

4-  Aborto Eugênico ou Eugenésico

 

Para Anelise Tessaro “entende-se por aborto eugênico a interrupção da gestação quando existe o prognóstico de que o feto venha a nascer com grave anomalia física ou psíquica” [21].

Para Fernando Capez, aborto eugênico ou eugenésico “é aquele realizado para impedir que a criança nasça com deformidade ou enfermidade incurável” [22].

Para Magalhães Noronha:

 

  • Ocorre o aborto eugenésico quando há sério e grave perigo para o filho, seja em virtude de predisposição hereditária, seja por doenças da mãe, durante a gravidez, seja ainda por efeito de drogas por ela tomadas, durante esse período, tudo podendo acarretar para aquele, enfermidades psíquicas, corporais, deformidades, etc[23].

 

A terminologia “aborto eugênico ou eugenésico” foi cunhada durante a Primeira Guerra Mundial, e teve como proposta, “tornar legítimo o aborto para aquelas mulheres que engravidaram em virtude do estupro cometido por soldados de outros países, o que era bastante comum naquela época” [24]. Dessa forma, tinha o escopo de preservar a nação de eventuais doenças transmissíveis.

Diante disso, “a palavra eugenia e qualquer expressão a ela relacionada, carregam um forte sentimento de reprovação moral, que nos remete principalmente às práticas nazistas do século XX” [25].

Expõe Antônio Chaves que “o conceito de aborto eugênico foi totalmente desvirtuado e desmoralizado pelos nazistas ao pretenderem usá-lo sob alegação de ‘higiene racial’, a fim de manter imaculada a ‘raça ariana’” [26].

Ricardo Henry Marques Dip, entende que “o pressuposto fundamental do aborto eugênico é o de que só tem direito a nascer e a viver os sadios físicos e mentais, porque os enfermos serão infelizes e farão sofrer terceiros”[27].

Por outro lado, alguns juízes preocupados em desvincular o aborto por anomalia fetal incompatível com a vida do eugênico, incluíram no texto dos alvarás emitidos para autorizar este procedimento, a distinção entre essas duas espécies de interrupção da gestação, conforme a seguir:

 

  • Não só porque a palavra eugenia carrega uma forte carga de rejeição emocional e social, mas também porque no aborto por anomalia fetal incompatível com a vida não se procura a melhoria física - biológica da raça, nem a criação de “super-homens”. O intuito é abreviar a angústia e o sofrimento da mãe, quando o feto não tem condições de sobrevida extra-uterina, nem possibilidades de estabelecer uma vida relacional[28].

 

De acordo com Rogério Sanches, o nosso Estatuto Penal, na sua Exposição de Motivos, “foi claro ao incriminar o abortamento Eugenésico (praticado em face dos comprovados riscos de que o feto nasça com graves anomalias psíquica ou físicas)” [29].

Da mesma forma, posiciona-se Cleber Masson:

 

  • O direito brasileiro não contempla regra permissiva do aborto nas hipóteses em que os exames médicos pré-natais indicam que a criança nascerá com graves deformidades físicas ou psíquicas. Não autoriza, pois, o aborto eugênico ou eugenésico. O fundamento dessa opção é a tutela da vida humana no mais amplo sentido. O Direito Penal protege a vida humana desde a sua primeira manifestação. Basta a vida, pouco importando as anomalias que possa apresentar[30].

 

Fernando Capez igualmente entende que o aborto eugênico não é permitido pela nossa legislação, “uma vez que, mesmo não tendo forma perfeita, existe vida intrauterina, remanescendo o bem jurídico a ser tutelado penalmente” [31].

Acrescenta ainda que “eugenia é expressão que tem forte conteúdo discriminatório, cujo significado é purificação de raças” [32].

No entanto, Capez menciona que “mediante prova irrefutável de que o feto não dispõe de qualquer condição de sobrevida, consubstanciada em laudos subscritos por juntas médicas, deve ser autorizada a prática do aborto” [33].

Fernando Capez continua:

 

  • Nesse sentido, já decidiu o STJ: “Não há como desconsiderar a preocupação do legislador ordinário com a proteção e a preservação da vida e da saúde psicológica da mulher ao tratar do aborto no Código Penal, mesmo que em detrimento da vida de um feto saudável, potencialmente capaz de transformar-se numa pessoa (CP, art. 128, incs. I e II), o que impõe reflexões com os olhos voltados para a Constituição Federal, em especial ao princípio da dignidade da pessoa humana. Havendo diagnóstico médico definitivo atestando a inviabilidade de vida após o período normal de gestação, a indução antecipada do parto não tipifica o crime de aborto, uma vez que a morte do feto é inevitável, em decorrência da própria patologia. Contudo, considerando que a gestação da paciente se encontra em estágio avançado, tendo atingido o termo final para a realização do parto, deve ser reconhecida a perda de objeto da presente impetração. Ordem prejudicada” (STJ, 5° Turma, HC 56.572/SP, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 25-4-2006, DJ 15-5-2006, p. 273). Em sentido contrário: STJ, 5° Turma, HC 32.159/RJ, rel. Min. Laurita Vaz, j. 17-2-2004, DJ, de 22-3-2004, p.334[34].

 

 

5- Aborto em caso de anencefalia

 

Assunto que despertava discussão era quanto à possível autorização de aborto de feto portador de anencefalia.

Primeiramente cabe elucidar o significado de anencéfalo que nas palavras de Rogério Sanches:

 

  • (...) é o embrião, feto ou recém-nascido que, por malformação congênita, não possui uma parte do sistema nervoso central, ou melhor, faltam-lhe os hemisférios cerebrais e tem uma parcela do tronco encefálico (bulbo raquidiano, ponte e pedúnculos cerebrais)[35].

 

Nas palavras de Capez “o encéfalo é a parte do sistema nervoso central que abrange o cérebro, de modo que sua ausência implica inexistência de atividade cerebral, sem a qual não se pode falar em vida” [36].

Para Cleber Masson:

 

  • Anencefalia é a malformação rara do tubo neural acontecida entre o 16° e o 26° dia de gestação, caracterizada pela ausência total ou parcial do encéfalo e da calota craniana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. O Conselho Federal de Medicina (CFM) considera o anencéfalo um natimorto cerebral, por não possuir os hemisférios cerebrais e o córtex cerebral, mas somente o tronco. Consequentemente, sua eliminação em intervenção cirúrgica constitui-se em fato atípico, pois o anencéfalo não possui vida humana que legitima a intervenção do Direito Penal[37].

 

E acrescenta:

 

  • O raciocínio é o seguinte: o art. 3°, caput, da Lei 9.434/1997 admite a retirada de tecidos, órgãos, ou partes do corpo humano para fins de transplante ou tratamento somente após a morte encefálica. Em outras palavras, o ser humano morre quando cessam suas atividades cerebrais. E, no tocante ao anencéfalo, é razoável concluir que, se nunca teve atividade cerebral, nunca viveu. Não se trata, portanto, de aborto, e sim de antecipação de parto em razão da anencefalia ou de antecipação de parto de feto inviável[38].

 

Dessa forma, conclui:

 

  • Essa antecipação do parto encontra seu fundamento de validade no art. 1.°, inciso III, da Constituição Federal: dignidade da pessoa humana. De fato, a mulher não pode ser obrigada à retirada do anencéfalo, mas, se o desejar, não pode ser impedida pelo legislador ordinário. Não seria digno exigir da gestante a postergação de um sofrimento: no  lugar das roupas da criança, a aquisição do vestuário para o velório, em vez do berço, a compra de um caixão, imaginando a cerimônia de batismo, substituí-la pela missa de sétimo dia[39].

 

Cleber Masson relata que em algumas hipóteses, as quais ressalta que são raras, a criança nasce com vida e permanece viva por dias, e as vezes até meses. Fato parecido ocorreu com uma menina chamada Marcela de Jesus Ferreira, nascida com anencefalia em Patrocínio Paulista, Estado de São Paulo, que faleceu depois de 1 (um ano), 8 (oito) meses e 12 (doze) dias[40].

No exemplo acima, é altamente discutível tratarmos a respeito da existência da vida humana no anencéfalo apesar de vários autores alegarem que o Direito Penal não trabalha com exceções e sim com regras já que, nas palavras de Masson, “o ordenamento jurídico deve se amparar na normalidade, e nunca na excepcionalidade. Daí ser composto por ‘normas’, isto é, regras criadas com o propósito de disciplinarem situações normais na vida humana” [41].

Afirma Carolina Alves de Souza Lima que:

 

  • Apesar da existência de vida intrauterina do anencéfalo, não se legitima a atuação do Direito Penal para incriminar a conduta abortiva, sob pena de total desrespeito aos direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher. Referidos direitos devem prevalecer nessa situação específica, porque não se justifica impor à mulher uma gestação na qual o concepto não possui competência biológica para adquirir consciência de si e do mundo e para se relacionar, uma vez que não tem e nunca terá estrutura cerebral que lhe dê capacidade para alcançar essa condição de desenvolvimento humano. O respeito aos direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da mulher deve prevalecer, uma vez que o reconhecimento expresso da dignidade da pessoa humana, como valor essencial do Estado Democrático de Direito brasileiro, representa, nessas circunstâncias, permitir que ela conduza sua vida segundo suas convicções pessoais, independentemente da imposição de qualquer dogma, moral, religião ou verdade absoluta sobre a compreensão do mundo e da vida[42].

 

Na opinião de Pierangeli:

 

  • Em se tratando de anencefalia, não pode a interrupção da gravidez ser considerada como aborto ou antecipação do parto, posto que falta o elemento básico, fundamental, que é a existência da vida humana. A malformação congênita do anencéfalo inviabiliza a vida extrauterina. (...) A interrupção da gravidez ou antecipação do parto, em caso de anencefalia, constituem condutas atípicas. Como se trata de conduta atípica, fica sem sentido a exigência de autorização judicial para a realização da medida médico-cirúrgica, podendo o médico atuar livremente, posto que se trata de atuação com finalidade terapêutica, que também torna sua conduta atípica[43].

 

Durante muitos anos as decisões dos tribunais eram conflitantes e faziam com que se instaurasse a insegurança jurídica diante da possibilidade ou não de interrupção da gravidez na hipótese de feto anencéfalo.

Diante disso, em 17 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), propôs a Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n° 54), questionando um posicionamento do STF sobre o aborto de feto anencéfalo.

Conforme expõe Rogério Greco, após oito anos, vale dizer, em 12 de abril de 2012, o STF decidiu a questão por maioria e nos termos do voto do Relator, a fim de declarar “a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos arts. 124, 126, 128, I e II, todos do diploma repressivo” [44].

Dessa forma, logo após a decisão do STF, o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou as diretrizes para interrupção da gravidez, em caso de anencefalia, editando a Resolução n° 1989, de 10 de maio de 2012.

Segundo Sanches “o texto prevê que os exames de ultrassonografia precisam ser feitos a partir da 12° semana de gravidez, período no qual o feto já se encontra num estágio suficiente para se detectar a anomalia” [45].

Continua Sanches:

 

  • No caso de diagnóstico da anencefalia, o laudo terá que ser assinado, obrigatoriamente, por dois médicos. A gestante será informada do resultado e poderá optar livremente por antecipar o parto (fazer o aborto) ou manter a gravidez, e ainda, se gostaria de ouvir a opinião de uma junta médica ou de outro profissional. A interrupção da gravidez poderá ser realizada em hospital público ou privado e em clínicas, desde que haja estrutura adequada. A gestante terá toda assistência de saúde e será aconselhada a adotar medidas para evitar novo feto anencéfalo, com a ingestão de ácido fólico[46].

 

Portanto, “uma vez diagnosticada a anencefalia, poderá a gestante, se for de sua vontade, submeter-se ao aborto, sem que tal comportamento seja entendido cromo criminoso” [47].

Segue abaixo acordão que trata de Apelação crime interposta pela Defensoria Pública em favor de Isolete Cristiana Ferreira, 29 anos, residente e domiciliada em Porto Alegre/RS, grávida de 23 (vinte e três) semanas e 1 (um) dia de gestação, com diagnóstico de artrogrípose fetal durante realização de ultrassonografia obstrética.

Segundo o laudo juntado ao acórdão:

 

  • A artogripose é uma malformação rara com acometimento de 0,2 a 3 em 10.0000 nascimentos. É uma doença que compromete todas as articulações; pés tortos, mãos crispadas, luxações, deformações simétricas e bilaterais, atrofias musculares, espasticidade, levando a ausência de movimentos fetais e, neste caso, sem condições de sobrevida, prognóstico letal[48].

 

Seguem mais informações disponibilizadas no laudo médico:

 

  • (...) 1. A doença que acomete o feto da Sra. Isolete Cristina Ferreira trata-se de tipo letal de artogripose pelos achados de acinesia ou hipocinesia fetal, malformação do Sistema Nervoso Central, encurtamento grave de todos os ossos longos, alterações musculares e restrição grave de crescimento intra-uterino.Tal constituintes permitem traçar o prognóstico de inviabilidade de vida pós-uterino. 2. Segue anexos de bibliografia solicitada sobre o diagnóstico em pauta. 3. O diagnóstico foi estabelecido através do exame de ultrassonografia que foi repetido no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.4. Esta doença apresenta várias causas prováveis. Não tem alteração dos cromossomos. É um distúrbio que pode alterar a subunidade gênica. Portanto, estudo genético não foi realizado.5. Se acatado o pedido de antecipação terapêutica do parto, ao nascimento do feto morto, será proposto o estudo por necropsia, sob consentimento da paciente[49].

 

Após essas necessárias elucidações sobre o caso em comento segue ementa do acordão:

 

  • APELAÇÃO. PEDIDO DE INTERRUPÇÃO DE GESTAÇÃO (ABORTO). FETO PORTADOR DE ARTOGRIPOSE. - A espécie não trata do denominado aborto necessário, o qual é praticado para salvar a vida da gestante.  Se este fosse o caso, desnecessária seria qualquer autorização judicial. Com efeito, em caso de aborto necessário (art. 128, inc. I – “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”), conforme leciona Edgard de Magalhães Noronha, “É ao médico que cabe a enorme responsabilidade de dizer se deve ou não sacrificar a spes personae. A ele incumbe pronunciar-se acerca da necessidade e do momento da intervenção.” Neste caso (aborto necessário), com bem explanou o Professor Dílio Procópio Drummond de Alvarenga, “O pedido deduzido em juízo é desnecessário”.- Em relação ao aborto eugênico - interrupção da gestação fundada na circunstância de que o futuro ser vai trazer consigo doenças ou anomalias graves  - temos lição dos Professores  Antônio José Eça, Delton Croce e Delton Croce Júnior.- Nélson Hungria afirma: “O Código não incluiu entre os casos de aborto legal o chamado aborto eugenésico ...”.  Em igual sentido, Edgard de Magalhães Noronha:“Não é o aborto eugenésico admitido por nossa lei.”; e, Cezar Roberto Bitencourt: “... o Código Penal, lamentavelmente, não legitima a realização do chamado aborto eugenésico, mesmo que seja provável que a criança nascerá com deformidade ou enfermidade incurável.”.  Quanto ao ponto temos, ainda, precedente do Superior Tribunal de Justiça: HC 32.159/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ. - Por outro lado, é verdade que o Pretório Excelso, em recente decisão, por maioria, deixou assentado: “ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.” (ADPF 54, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 12/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013) - Filiamo-nos, contudo, as lições anteriormente colacionadas. É que mesmo com os olhos voltados para a Constituição Federal e tendo em conta os princípios enunciados – “O Brasil é uma república laica”; LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO -, pensamos que a nossa Carta Magna garante, como bem maior, o DIREITO A VIDA. - Com efeito, o art. 5º, caput, da Constituição Federal, ao enumerar os principais direitos individuais e coletivos, garante, em primeiro lugar, a todos, “...aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida ...” (sublinhamos) . Não poderia ser diferente, pois, há muito, Sahid Maluf – discorrendo sobre os direitos fundamentais do homem, mais precisamente “direitos naturais da pessoa humana” - lembrou: “É de evidência axiomática – frisa Nogueira Itagiba – que excluído o direito à vida, não necessitaria falar em direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade.” - Não podemos olvidar, ainda, que, quando do julgamento da ADPF 54, o Ministro Celso de Mello, embora formando a maioria, consignou: “Não questiono a sacralidade e a inviolabilidade do direito à vida. Reconheço, por isso mesmo, para além da adesão a quaisquer artigos de fé, que o direito à vida reveste-se, em sua significação mais profunda, de um sentido de inegável fundamentalidade, não importando os modelos políticos, sociais ou jurídicos que disciplinem a organização dos Estados, pois – qualquer que seja o contexto histórico em que nos situemos – “o valor incomparável da pessoa humana” representará, sempre, o núcleo fundante e eticamente legitimador dos ordenamentos estatais.” O Ministro Cezar Peluso, que formou a minoria, também proclamou: “(...) a Constituição da República reserva ao chamado direito à vida, que é, antes, o pressuposto ou condição transcendental da existência de todos os direitos subjetivos.”.- Não podemos esquecer, por todos, a lição da pena brilhante do mestre Hungria, que já havia assentado: “Como diz Impallomeni, todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida.”- Além disso - mesmo com entendimento diverso do que restou, por maioria, assentado na ADPF 54 - é importante consignar que o lá decidido não tem aplicação ao caso em exame, pois a espécie não trata de anencefalia. Lembramos, neste passo, a advertência contida no voto da Ministra Cármen Lúcia, quando do julgamento da ADPF 54: “A presente arguição não contempla, como erroneamente poderia alguém supor, proposta de descriminalização do aborto. Circunscreve-se à possibilidade legal de optarem as gestantes pela interrupção de gravidez de feto anencéfalo, assim diagnosticado por médico habilitado, sem incorrer em crime ou ter de se submeter a penalidades juridicamente impostas.” (sublinhamos) - Resulta, daí, que por tal fundamento a pretensão não merece acolhida. - Resta, por fim, verificar se o caso trata de pedido de aborto cujo fim é salvar a gestante de enfermidade grave (de perigo próximo a vida da gestante), ou seja, outra das modalidades do denominado aborto terapêutico, como informa o Professor Antônio José Eça: “Existem duas modalidades distintas de aborto terapêutico: - o aborto chamado necessário, que se pratica para salvar a vida da gestante; - o aborto cujo fim é salvá-la de enfermidade grave.” Quanto ao ponto – ou seja existência de perigo próximo à vida da gestante  -  temos como importante lembrar passagem do voto do Ministro Cezar Peluso  (ADPF 54). Em relação ao aborto profilático (preventivo), temos, ainda, a lição do mestre Hungria que o definia como modalidade de aborto necessário. - A questão, quase sempre envolvendo peculiaridades, não se mostra de fácil solução. - Esta Câmara já enfrentou a matéria em diversas ocasiões, sendo que em um dos últimos julgados (Apelação Crime 70048009773, de 12 de abril de 2012), embora a decisão tenha sido unânime, o deferimento do pedido se assentou em fundamentos diversos. Na Apelação Crime Nº 70048297840, mais recente (j. em 10/05/2012), também se tratou de aborto terapêutico, conforme se verifica na seguinte passagem da ementa: “Quanto do julgamento da apelação anteriormente mencionada, após desacolher o pedido fundado no denominado "aborto eugenésico" - isto é, tão somente pela mal-formação do feto - , restou abordo matéria relativa "aborto terapêutico" (fundamentação reproduzida) - No caso sub judice, então, devemos considerar o consignado no documento juntado a fls. 30, que atesta que o procedimento é necessário e deve se realizar"... COM BREVIDADE SOB PENA DE RISCO DE MORTE DA PRÓPRIA MÃE". - No caso sub judice, contudo, não restou demonstrado, com a certeza necessária - como nos precedentes anteriormente citados -– que se faz necessária a interrupção da gravidez para salvar a gestante de uma enfermidade grave, ou seja,  a existência de um perigo considerável a saúde, que acarrete perigo  próximo à vida da gestante. APELAÇÃO DESPROVIDA[50].

 

Conforme exposto, a Apelação restou improvida não tendo a gestante autorização judicial para interrupção da gravidez.

Restou provado que no caso em questão não se está tratando de anencefalia ou de qualquer doença que impeça a vida. O laudo transcrito no acordão retrata “hipoplasia do vermis cerebelar, mas acusa, ainda, a existência de diversos órgãos vitais, diga-se, normais (coração, pulmões, rins, bexiga, abdômen, estomago, fígado)” [51].

Por fim, estabeleceu-se que:

 

  • (...) as malformações físicas do feto podem não regredir e este vir a falecer em seguida ao seu nascimento (quem saberá), mas isso não quer necessariamente dizer que a criança, que está para nascer, não tem direito à vida, ainda que por alguns segundos [52].

 

De forma distinta se deu a Apelação Crime de n° 70048009773, de 12 de abril de 2012, julgada pela mesma Câmara, em que houve o deferimento unânime do pedido de interrupção da gravidez, assentando-se em fundamentos diversos, conforme exposto a seguir:

 

  • APELAÇÃO CRIME. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ. - No caso em estudo, o relatório médico datado de 16 de março de 2012, firmado pela Dra. Adriana Camozzato Fonte (CRM 16090), Ginecologista e Obstetra, aponta diagnóstico de acrania/anencefalia fetal, informando que “não é rara a necessidade de operação cesariana para a retirada do feto, impondo riscos adicionais a saúde da mãe.” (destacamos) - Posteriormente, quando do processamento do presente recurso, foram trazido aos autos dois relatórios médicos, datados de 26 de março de 2012 (elaborado pela Dra. Adriana Camozzato Fonte) e de 27 de março de 2012 (elaborado pelo Dr. Paulo Ricardo Rossi Sityá). -O digno Promotor de Justiça, embora tenha promovido no sentido do deferimento do pedido de interrupção da gestação, afirmou, apontando os termos dos artigos 124 e seguintes e 128 do Código Penal, que “A situação dos autos não se enquadra nas referidas hipóteses”. - Não foi outra a conclusão a que chegou o ilustrado Procurador de Justiça, que opina pelo desprovimento do recurso, apontando que a pretensão diz com o denominado “aborto eugenésico”. - Reprodução de passagem da lição do Professor Antônio José Eça, em relação ao aborto eugênico, citando como exemplo o caso de anencefalia. - Nélson Hungria afirma: “O Código não incluiu entre os casos de aborto legal o chamado aborto eugenésico...”.  No mesmo sentido Edgard de Magalhães Noronha: “Não é o aborto eugenésico admitido por nossa lei.” e Cezar Roberto Bitencourt: “... o Código Penal, lamentavelmente, não legitima a realização do chamado aborto eugenésico, mesmo que seja provável que a criança nascerá com deformidade ou enfermidade incurável.”. -Resulta, daí, que, por tal fundamento, a pretensão não merece acolhida. - Por outro lado, o Professor Antônio José Eça ensina que existem duas modalidades distintas de aborto terapêutico (“o aborto chamado necessário, que se pratica para salvar a vida da gestante; - o aborto cujo fim é salvá-la de enfermidade grave.”) -Tratando-se de aborto necessário (art. 128, inc. I – “se não há outro meio de salvar a vida da gestante”), conforme leciona Edgard de Magalhães Noronha, “É ao médico que cabe a enorme responsabilidade de dizer se deve ou não sacrificar a spes personae. A ele incumbe pronunciar-se acerca da necessidade e do momento da intervenção.” - Neste caso (aborto necessário), então,  “O pedido deduzido em juízo é desnecessário”, com bem  explanou o  Professor Dílio Procópio Drummond de Alvarenga,  em  texto inserido no Jus Navigandi nº 324 (27.5.2004), elaborado em março de 2004, sob o título “Anencefalia e aborto”. - Esta Câmara, por mais de uma vez, já teve oportunidade de enfrentar matéria similar. Lembro, entre os julgados, o ocorrido em 13 de maio de 2004, na Apelação Criminal nº 70008550360, feito da relatoria da eminente Desembargadora Lais Rogéria Alves Barbosa, hoje já jubilada. - A questão, que não se apresenta de fácil solução, é aquela que trata da outra modalidade de aborto terapêutico  aquela em que “o médico verifica que a conti­nuação da gravidez, embora não ameace a vida da gestante, põe em pe­rigo a sua saúde ou a integridade de suas funções”, conforme ressalta o  Professor Antônio José Eça.  - Afastando, então, os casos em que o pedido esteja fundado tão-somente na anencefalia – o que, a meu ver, conduziria ao aborto eugênico (precedentes desta Câmara neste sentido: Apelação Crime Nº 70008550360, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Laís Rogéria Alves Barbosa, julgado em 13/05/2004; e, Apelação Crime Nº 70016886509, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, de minha relatoria, julgado em 28/09/2006), devemos observar as situações em que é apontada a existência de pe­rigo a sua saúde, de “risco potencial e considerável para a saúde materna”, envolvendo, então, questão relativa a segunda modalidade de aborto terapêutico. - A matéria já foi enfrentada por esta Câmara. Anote-se: Apelação Crime Nº 70026698019, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julgado em 16/10/2008. - No caso sub judice, então, devemos considerar o consignado no relatório médico, que atesta que “A Sra. (...) está com 43 anos e apresenta gestação de alto risco, isto é, risco de desenvolver hipertensão, diabete e suas consequências. Além dos riscos referidos acima, esta situação gerou um grande trauma psicológico aos pais e familiares”. - É caso, assim, de provimento do apelo, pois o caso envolve espécie aborto terapêutico ou aborto profilático (preventivo). Passagens da fundamentação do voto do eminente Desembargador José Antonio Cidade Pitrez, Vogal (sumariado): - A ora apelante obteve o diagnóstico de que o feto que estava gerando padecia de anencefalia e formulou pedido de autorização judicial para interromper a gravidez, nos termos do artigo 2º, do CPC, sendo indeferido seu pleito em primeiro grau. - Poderíamos manter a decisão indeferitória, dizendo que o caso concreto não se enquadra na previsão do artigo 128, do CP, que a situação da ora apelante não se encaixa nesta moldura legal e que ela vai ficar como está, devendo a recorrente levar a termo a gravidez e aguardar o desfecho que a natureza vi dar à dita situação. - Lembro, contudo, que o artigo 126, do CPC, determina que o juiz não pode se eximir de despachar ou sentenciar, alegando lacuna ou obscuridade da lei, de modo que a questão tem que ser enfrentada e decidida segundo a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. - No caso, a apelante pediu autorização judicial para interromper a gravidez, diante do diagnóstico de anencefalia.     - Penso que a principal interessada na situação descrita nos autos é a mãe, ela é que tem que escolher, se quer ou não quer levar esta gravidez até seu final e, na hipótese do feito, houve a manifestação da apelante no sentido de que quer interromper a gravidez. - Devemos lembrar que o Código Penal data de 1940 e que a lei deve se adaptar ao avanço tecnológico da medicina, que hoje consegue antecipar com precisão a situação do feto, existindo até ecografias tridimensionais. - Na época em que o Código Penal foi feito, ainda valia aquele ditado de que em urna de eleição, cabeça de juiz e barriga de mulher grávida não se sabia o que vinha, não se tinha conhecimento do conteúdo. O avanço tecnológico da medicina mudou esta última parte do dito, pois é possível saber, desde a fase inicial da gravidez, os detalhes do feto em gestação, como sexo, posição, presença ou ausência de anomalias etc. - Nos dias de hoje, diante de tal avanço, é perfeitamente possível prever o fim da situação, de modo antecipado, qual seja a morte do concepto portador de anencefalia. - Cabe referir que o critério definidor da morte também variou ao longo do tempo: já foi sustentado que enquanto o coração estivesse batendo, ainda havia vida; depois, foi dito que enquanto a pessoa estivesse respirando, havia vida; agora, pela Lei dos Transplantes (artigo 3º-caput, da Lei nº 9.434/97) e pela Resolução nº 1.752, do Conselho Federal de Medicina, o critério definidor do fim da vida é a morte encefálica, ou seja, a pessoa está viva enquanto houver circulação em seu cérebro e, em sentido contrário, estará morta quando detectada a falta de tal circulação. - Diante deste último critério, o feto anencefálico não possui vida. Com efeito, se é possível retirar órgãos para transplante (desde que, obviamente, existente a prévia autorização do doador ou de sua família) quando cessada a circulação cerebral, pois a pessoa está morta, impõe-se a conclusão de que o feto anencéfalo não possui vida, pois a ausência de cérebro impede a existência de qualquer circulação naquele órgão faltante (como circular pelo cérebro, se ausente este?). - Já tive oportunidade, outrossim, de me manifestar sobre o tema quando do julgamento da apelação nº 70.016.886.509, em que restei vencido, nos seguintes termos: “Penso, com a devida vênia, que a interrupção da gravidez  é medida que se impõe, visto que a morte do concepto é inequívoca e a cessação da gravidez  trará  benefícios para a gestante. - Vê-se na obra “Obstetrícia”, de Jorge de Rezende, 3ª edição, 1974, Editora Guanabara-Koogan, páginas 805/807, que a anencefalia é uma anomalia do sistema nervoso central, que se caracteriza pela ausência da abóbada craniana e massa encefálica reduzida a vestígios da substância cerebral, sendo que freqüentemente a gravidez não alcança o termo, podendo tornar-se trabalhosa a extração do feto, que não sobrevive, atingindo excepcionalmente dois a três dias de vida. - É verdade que, em tese, o caso concreto não se enquadra nas hipóteses do artigo 128, do CP. Todavia, o parecer médico aponta que o risco da gestante é grande, levando a termo a gravidez, com a periclitação de sua vida, além de que nula a possibilidade do concepto sobreviver. - Imperativa a interrupção da gestação, pois, se conduzida a termo, a retirada do feto será laboriosa e de alto risco para a gestante, que poderá morrer no ato. - A jurisprudência desta Corte vem admitindo a interrupção da gravidez, em casos assemelhados, como se constata do agravo nº 70.002.099.836, relatado pelo Des. Carlos Cini Marchionatti, perante a Câmara Criminal de Férias, em sessão de 09 de março de 2001 e da apelação nº 70.005.037.072, da lavra do Des. José Antônio Hirt Preiss, julgada na sessão de 12 de setembro de 2002, da egrégia 3ª Câmara Criminal. - O colendo Tribunal de Alçada de Minas Gerais, em lapidar aresto, admitiu a postulação da interrupção da gravidez, no caso de constatação de má formação do feto, ante o diagnóstico de acrania fetal, com previsão de óbito intra-uterino ou no período neonatal, apesar de não se achar entre as causas autorizadoras do aborto, dispostas no artigo 128, do CP, pois a lei deve se adaptar ao avanço tecnológico da medicina, que antecipa a situação do feto (Apelação  nº 0264255-3, 3ª Câmara Cível, relatada pelo Dr. Duarte de Paula)”. - De outra banda, adoto como razão de decidir os termos do parecer ministerial exarado nesta instância, da lavra da Dra. Jacqueline Fagundes Rosenfeld. APELAÇÃO PROVIDA. UNÂNIME[53].

 

A ementa acima exposta trata de Apelação, interposta pela Defensoria Pública em favor de Cynthia Castiel Menda que investe contra sentença prolatada nos autos de n° 001/112.0057622-6, que julgou improcedente o pedido, entendendo ser impossível alcançar a concessão de autorização para interrupção da gravidez em questão.

A seguir o relatório médico da Dra. Adriana Camozzato Fonte, ginecologista e obstreta, datado de 16 de março de 2012, que informa:

 

  • “(...) A paciente Sra. Cynthia Menda, residente e domiciliada nesta Capital, grávida de 12 semanas e 2 dias de gestação hoje, procurou atendimento, após ter recebido o diagnóstico de acrania/anencefalia fetal durante realização de duas ultra-sonografias obstétricas datadas de 12 de março e 16 de março, conforme laudo em anexo. A anencefalia é uma má-formação que acomete uma a duas gestações a cada mil. A sobrevivência de fetos com essa má-formação é excepcional. Muitos destes fetos evoluem para o óbito intra-uterino. Algumas vezes a gestação segue até o termo devido ao crescimento dos demais órgãos e, não é rara a necessidade de operação cesariana para a retirada do feto, impondo riscos adicionais a saúde da mãe. Quando do nascimento, a parada cárdio-respiratória dá-se em poucos minutos ou horas. Nos países aonde a interrupção da gestação é permitida, esta costuma ser a conduta nos fetos anencefálicos, visando proteger a mãe aos riscos inerentes a manutenção da gestação. No Brasil e, em nosso estado inclusive, já houve casos de interrupção da gestação com autorização judicial devido a esta malformação. Os meios utilizados para realizar a interrupção neste período da gravidez visam basicamente simular o mecanismo de parto normal. Algumas vezes é necessária a realização de curetagem uterina após o procedimento para garantir o completo esvaziamento do útero. A técnica utilizada é realizada em hospital, visto ser o mesmo realizado de rotina nos casos de pacientes que se apresentam feto morto intra-uterino. De acordo com a vontade expressa pelos pais e com o exposto acima, coloco-me à disposição para realizar a interrupção terapêutica desta gestação após assinatura de consentimento informado, caso haja decisão judicial neste sentido”[54].

 

Nesse caso, a apelante pediu autorização judicial para interromper a gravidez, diante do diagnóstico de anencefalia. A decisão em comento foi embasada na situação da principal interessada que é a mãe. Foi ela quem manifestou o desejo de interromper a gravidez.

Foi também levado em consideração, para tomada de julgamento, a afirmação de que o feto anencefálico “não possui vida”, pois:

 

  • (...) se é possível retirar órgãos para transplante (desde que, obviamente, existente a prévia autorização do doador ou de sua família) quando cessada a circulação cerebral, pois a pessoa está morta, impõe-se a conclusão de que o feto anencéfalo não possui vida, pois a ausência de cérebro impede a existência de qualquer circulação naquele órgão faltante (como circular pelo cérebro, se ausente este?).[55]

 

Postas estas considerações, o julgado foi finalizado com a seguinte narração do estudioso Sandro D´Amato No-gueira – Advogado; Membro da WSV – World Society of Victimology (USA); pós-graduando em Direito Ambiental pela PUC/SP:

 

  • Primeiro, não há tratamento para o feto anencéfalo, porque o estado de anencefalia é fatal em 100% dos casos; segundo, as complicações maternas são claras e evidentes; terceiro, está claro que é inconcebível impor a uma mulher a obrigação de gerar um filho que saiba que não irá sobreviver, causando graves transtornos psicológicos, emocionais, e físicos na mulher; quarto, o dever de gerar um filho até o parto - fala-se parto e não nascimento, pois na maioria dos casos o feto já está morto - viola e conflita com nossos mais basilares princípios do nosso estado democrático de direito, que são: autonomia, liberdade e principalmente a dignidade da pessoa humana; quinto, em que pese existir os que defendam que, caso o feto sobreviva algumas horas, poderia aproveitar seus órgão para doação, o fato é que não há conhecimento de doação com 100 % de sucesso, pois sempre traziam complicações ao receptor, isso por causa do órgão doado também apresentar algum tipo de problema (fls. 65/72)[56].

 

 

6-  Análise Epistêmica da Descriminalização do Aborto

 

Para José Henrique Rodrigues Torres, Juiz de Direito e Professor de Direito Penal, a criminalização do autoaborto e do aborto praticado por terceiro com o consentimento da gestante é inconstitucional, “pois, viola, frontalmente, princípios fundamentais de proteção dos Direitos Humanos, princípios esses albergados por nossa Constituição Federal” [57].

Segundo ele:

 

  • A criminalização primária do autoaborto (CP, art. 124) e do aborto praticado por terceiro com o consentimento a gestante (CP, art. 126) afronta os princípios constitucionais da dignidade, viola os princípios éticos e democráticos de limitação da criminalização – idoneidade, subsidiariedade e racionalidade – e fere de morte os princípios da autonomia e liberdade da vida privada e pro homine, os quais embasam e fundamentam o sistema de proteção dos direitos humanos. Além disso, a criminalização dessas condutas desrespeita, também, os critérios principiológicos que devem ser observados no processo de criminalização nos Estados Democráticos de Direito: não criminalizar quando se trata de tornar dominante uma determinada concepção moral; não criminalizar simbolicamente ou de forma promocional; e não criminalizar comportamentos frequentes ou aceitos por parte significativa da população[58]. 

 

Torres assevera também que especificamente em relação ao aborto deve-se observar os princípios de direitos humanos que cuidam da proteção especial dos direitos da mulher no âmbito da sexualidade e da reprodução, os quais exigem, sob a égide do compromisso ético e democrático de respeito à dignidade da mulher, o “rompimento com os paradigmas da ideologia patriarcal, que tem determinado a edição e a matença de um sistema legal escrito com letra androcêntrica, de forma discriminatória e excludente”[59].

            E ainda acrescenta:

 

  • E não se olvide que o rol dos direitos sexuais e reprodutivos abrange os direitos de decisão sobre a quantidade, o intervalor e o momento de as pessoas terem seus filhos, de plena informação e meios para fazer a sua escolha, de acesso ao mais alto padrão de saúde sexual e reprodutiva, e ainda, o direito de tomar decisões relativas à reprodução sem discriminação, coerção ou violência[60].

 

De acordo com Azeredo e Stolcke “as mulheres têm o direito de regular a sua própria sexualidade e capacidade reprodutiva” [61].

Para Flávia Piovesan, “os direitos sexuais e reprodutivos devem ser compreendidos sob a perspectiva dos direitos humanos” e “é sob esse prisma que se insere a problemática do aborto” [62].

Torres alega que a questão da criminalização do aborto deve ser examinada sob o prisma dos direitos humanos e seus princípios os quais embasam a construção dos Estados Democráticos de Direito [67].

Afirma também que esses princípios integram o sistema constitucional brasileiro porque emergem do sistema normativo internacional de proteção dos Direitos Humanos que é um sistema “universal, indivisível, interdependente, obrigatório e transcendente” [68].

Por fim, José Henrique Rodrigues Torres conclui que caberia aos legisladores brasileiros:

 

  • (...) extirpar de nosso sistema legislativo os artigos 124 e 126 do Código Penal e aos juízes e juízas, enquanto prevalecer a omissão daqueles, declarar a sua inconstitucionalidade, negando a sua aplicação no momento da criminalização secundária, para garantir assim, a prevalência e a plenitude dos princípios constitucionais de garantia dos Direitos Humanos[69].

 

Portanto, para alguns autores, como o acima citado, a criminalização do autoaborto e do aborto com o consentimento da gestante é incompatível com o sistema de proteção dos Direitos Humanos das Mulheres além de ser inconstitucional.

 

6.1-     Da Incompatibilidade da Criminalização do Aborto com os Princípios Democráticos

 

Serão analisados aqui a criminalização do aborto em face desses princípios que têm natureza constitucional e estão fundados nos direitos humanos[70].

 

6.1.1-               Da Incompatibilidade da Criminalização do Aborto com o Princípio da Idoneidade

 

De acordo com o princípio da idoneidade, a criminalização de qualquer conduta “somente é aceitável sob o arnês da ética democrática, se constituir um meio útil eficaz ou idôneo para o enfrentamento de um determinado problema social”[71].

Segundo Alessandro Baratta, o princípio da idoneidade:

 

  • Exige que, para justificar ou manter a criminalização de qualquer conduta, o legislador deve realizar um atento estudo dos efeitos socialmente úteis esperados da pena, somente subsistindo as condições para sua introdução ou mantença se, a partir de um controle empírico rigorosamente embasado na análise dos efeitos de normas similares em outras ordens jurídicas, ou de normas similares em um mesmo ordenamento, ou ainda em métodos respeitados de prognose sociológica, resulta ser altamente provável ou comprovado um efeito útil ou idôneo em relação a situações que pressupõem graves ameaças a direitos humanos[72].

 

Na recente pesquisa intitulada “Aborto e religião nos tribunais brasileiros” Tamara Amoroso Gonçalves e Thaís de Souza Lapa observaram que “não obstante tal criminalização , há dados que indicam que sua prática é amplamente difundida no país” e “a proibição legal do aborto não coíbe, na prática, a sua realização”[73].

De acordo com as estimativas estudadas por José Henrique Rodrigues Torres, “a criminalização do aborto tem sido tão inútil e ineficaz para conter a interrupção das gestações que, de acordo com estimativas oficiais, são realizados, no Brasil, todos os anos, aproximadamente 1.000.000 de abortos” [74].

Como observa Flávia Piovesan, “sob o prisma fático, o país tem quase dois abortos clandestinos por minuto” e “estima-se que entre 750.000 a 1.400.000 de abortos clandestinos foram realizados apenas em 2000, de acordo com o dossiê Aborto Inseguro, realizado pela Rede Feminista de Saúde” [75].

Os autores ainda observam que “esses números apontam que a ilegalidade (do aborto) não os tem impedido (de acontecer), mas apenas piorado as condições em que são realizados e agravados os riscos inerentes a essa prática” [76].

Do mesmo modo Mariângela Gomes:

 

  • Para aquelas mulheres que tomam a difícil decisão de abortar, não há ameaça criminal capaz de impedi-las. Quando se aceita interromper a gestação do próprio filho, é sinal de que fatores econômicos e sociais se impuseram e preponderaram em relação a este instinto natural- e a ameaça abstrata de uma sanção criminal passa a ser menor do que a perspectiva de pena concreta em que se transformará a maternidade[77].

 

Por fim, Torres narra que:

 

  • Decididamente, a proteção da vida intrauterina mediante a criminalização do aborto tem sido absolutamente ineficaz e inútil, o que implica flagrante violação ao princípio da idoneidade e exige a proclamação de sua inconstitucionalidade e a adoção de medidas outras, eficazes e úteis, para o enfrentamento desse problema, que é de saúde pública e social, e que, por isso, merece enfrentamento, mas nunca no âmbito do sistema repressivo. Portanto, em face de sua absoluta inutilidade e inidoneidade, é evidente que a criminalização do aborto não está sendo mantida para salvaguardar a vida dos fetos, mas, sim, como instrumento de controle de sexualidade feminina e da autonomia das mulheres, que são aprisionadas na concepção ideológica patriarcal da maternagem[78].

 

Dessa forma, conclui-se que para esses autores a criminalização do aborto vai contra o princípio constitucional da idoneidade além de ser ineficaz e inútil para o enfrentamento do problema do aborto no País.

 

6.1.2- Da Incompatibilidade da Criminalização do Aborto com o Princípio da Racionalidade

 

De acordo com o princípio da racionalidade, “no processo democrático de criminalização devem ser considerados os benefícios e os custos sociais causados pela adoção da medida proibicionista criminalizadora[79]”.

Ou seja, para esse princípio não se pode manter a criminalização de uma conduta quando os custos sociais decorrentes da adoção dessa medida proibicionista são maiores que aqueles causados pelo “problema” que se pretendeu com ela combater[80].

Para José Henrique Rodrigues Torres no que diz respeito ao abortamento, a sua criminalização, “além de inútil e ineficaz, está acarretando terríveis custos sociais, muito superiores e mais intensos que aqueles causados pela prática dos abortamentos” [81].

Segundo Regina Figueiredo:

 

  • Calcula-se que, no Brasil, pelo menos 25% das gestações são indesejadas. Dos nascidos vivos registrados, 22,63% são filhos de meninas entre 15 e 19 anos, demonstrando um alto índice de gravidez na adolescência (Ministério da Saúde, 2004). Do total de gestações indesejadas, 50% terminam em abortamento provocado (Filho, s/d.), o que representou, só no ano de 2000, 247.884 internações por aborto nos registros hospitalares pagos pelo SUS, dos quais 67 terminaram em óbito (Ministério da Saúde, 2004). Esses números que não revelam a realidade com relação a esta prática do aborto no país, visto que várias localidades possuem populações não atendidas pelos SUS e existem serviços que não o notificam, e se, corrigidos, elevariam a projeção de abortos brasileiros de 750.000 a 1,4 milhões anuais (Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos, 2003). Tais abortos são responsáveis por 4,7% das mortes maternas, que já tem taxas bastante elevadas no país, de 45,8 mulheres em 100.000 nativivos (Ministério da Saúde, 2004)[82].

 

Como observam Aníbal Fagundes e José Barzelatto, a segurança do aborto “se correlaciona fortemente com a sua legalidade: a maioria dos abortos ilegais é de risco enquanto a maioria dos abortos legais é realizada sob condições de segurança” [83].

No mesmo sentido, Sonia Corrêa e Maria Betânia Ávila observam que:

 

  • O aborto inseguro é causa de mortalidade e morbidade feminina e o aborto seguro é um procedimento médico que responde a uma necessidade específica das mulheres que, quando não adequadamente respondida, põe em risco seu direito à vida[84].

 

Para Torres, no Brasil, o abortamento inseguro constitui uma das principais causas de morte de gestantes[85]. Afirma ainda que:

 

  • No contexto de clandestinidade do abortamento, as mulheres submetem-se a condições precárias e inseguras para a realização do procedimento e, por isso, de acordo com o Ministério da Saúde, o aborto é a quarta causa de mortes maternas no Brasil, devido a hemorragias e infecções. E a mortalidade materna decorrente do aborto inseguro, como afirma a Organização Mundial da Saúde, pode ser ainda mais elevada, pois muitos casos permanecem não relatados, ocultos nas cifras negras do medo e da intolerância, em face das consequências sociais, religiosas e penais de tal conduta[86].

 

O Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (Comitê Desc), ao divulgar a sua preocupação com a mortalidade no Brasil, recomendou que sejam adotadas medidas eficazes, “com a finalidade de proteger as mulheres dos efeitos dos abortos clandestinos e inseguros, assegurando que as mulheres não recorram a tais procedimentos prejudiciais”[87], que causam tantas mortes, especialmente entre as mulheres pobres e marginalizadas.

Segundo Torres:

 

  • Como revela o relatório elaborado, em 2005, pela Rede Feminista de Saúde, com base nos dados disponibilizados pelo DATASUS- Sistema de Informações Hospitalares- entre os 89 casos de óbitos de mulheres por aborto analisados, identificou-se que 41,6% eram negras, 62% eram solteiras ou separadas, 60% trabalhavam como domésticas ou eram donas de casa, 73% tinham escolaridade inferior a oito anos de estudos e 55% tinham menos de 29 anos de idade, tudo isso a confirmar que a criminalização do aborto atinge, em especial, as mulheres pobres, marginalizadas e expostas a situações de concreta vulnerabilidade social. A principal e mais terrível consequência da criminalização do aborto, que acarreta a prática do aborto inseguro, é o enorme índice de mortes de gestantes. Entretanto, como afirmam Aníbal Faúndes e José Barcelatto, ‘as mortes de mulheres relacionadas ao aborto são apenas a ponta de um grande iceberg, pois centenas de milhares de mulheres, todos os anos, estão sofrendo terríveis consequências físicas e psíquicas em razão do abortamento realizado em condições precárias e inseguras: infecções, que se instalam nas paredes do útero ou que migram para as trompas, para os ovários ou para a cavidade abdominal (doença inflamatória pélvica- DIP); lesões traumáticas ou químicas dos genitais e outros órgãos pélvicos; reações tóxicas a produtos ingeridos ou introduzidos nos genitais; hemorragias, que acarretam anemia, choque e morte ou que exigem transfusões sanguíneas de emergência, que as expõem a altos riscos de peritonite e contaminação com HIV e outras infecções; septicemia e choque séptico; retirada das trompas, dos ovários e do útero; obstrução das trompas que pode conduzi-las à esterilidade ou à gravidez tubária, outra causa dramática de morte materna; dores pélvicas crônicas; limitação da vida diária e das atividades sexuais; e depressão e complicações psicológicas em situações de pressão’[88].

 

Conforme descrito acima, denota-se que o aborto realizado de maneira inapropriada e sem assistência médica eficaz pode causar inúmeros problemas e gerar, muitas vezes, até a morte da mulher. É um procedimento de alto risco que afeta a vida da gestante de modo irreversível, tanto psicologicamente quanto fisicamente.

Torres prossegue:

 

  • Contudo, paradoxalmente, o sistema de proteção de direitos humanos garante às mulheres o direito de gozar do mais alto nível de saúde física e mental possível e afirma que os Estados têm a obrigação de oferecer serviços de saúde eficazes e criar condições no sentido de possibilitar para as mulheres o gozo de uma boa saúde, o que é incompatível com um sistema de proibição, fundado na criminalização, gerador de tantos prejuízos para a saúde da mulher. É por isso que o Comitê de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais reconheceu, em 2000, que o direito à saúde diz respeito ao ‘direito de controlar a própria saúde e corpo, incluindo a liberdade sexual e reprodutiva, e o direito de viver livre de interferências’, asseverando, inclusive, que o direito à saúde ‘requer a remoção de todas as barreiras que possam interferir no acesso aos serviços, educação e informação de saúde, inclusive na área de saúde sexual e reprodutiva’[89].

 

Torres aponta também que não podemos nos olvidar das não menos terríveis consequências sociais e econômicas geradas pelo abortamento clandestino, que quando realizado em condições desumanas, deixa muitos filhos na orfandade e desestrutura famílias[90].

Outro fator que denota-se do aborto clandestino é que ele contribui, efetivamente, para a ocorrência da morte seletiva de mulheres, conforme ressalta Jandira Feghali a seguir:

 

  • A ilegalidade aprofunda o abismo entre mulheres pobres e ricas. Divide o direito à vida por classe. Existem aquelas mulheres que podem realizar o procedimento em clínicas adequadas e aquelas que põem em risco a própria vida e a possibilidade de futuras gestações desejadas em clínicas sem a menor condição ou em autoabortos. São essas últimas que batem às portas do Sistema Único de Saúde com as sequelas de abortamentos realizados de forma insegura. Somente em 2004, cerca de 240.000 internações forma motivadas por curetagens pós-aborto, correspondentes aos casos de complicações decorrentes de abortamentos inseguros[91].

 

Torres afirma, diante disso, que a criminalização do aborto viola frontalmente o princípio da racionalidade e que o Brasil ratificou tratados e convenções internacionais de direitos humanos, incorporando-os ao sistema constitucional garantias e assumindo, assim, a responsabilidade de garantir às mulheres uma assistência plena à saúde sexual e reprodutiva[92].

Acrescenta também que no momento que se incorpora essas garantias ao sistema brasileiro, o Brasil se vê obrigado a enfrentar a flagrante violação dos direitos humanos das mulheres, não apenas no campo jurídico- formal, mas também com políticas públicas inclusivas, “efetivas e eficazes, nunca, porém com a adoção de um sistema criminalizador, gerador de danos, mortes e consequências terríveis para a sociedade e, em especial, para as mulheres” [93].

Torres vai além ao alegar que todas as pessoas têm o direito de viver livres de “tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, como garantem, expressamente, a nossa Constituição Federal, em seu artigo 5°, inciso III, e inúmeros tratados internacionais e regionais de proteção dos direitos humanos” [94].

Para o autor, “obrigar as mulheres a levar a termo gestações indesejadas pode desencadear elevado grau de sofrimento físico e mental” [95].

Relata que o Comitê de Direitos Humanos da ONU declarou que a proteção contra os tratamentos desumanos, degradantes e cruéis “não se restringe a impedir a prática de atos que causem sofrimento físico, mas, também, visa evitar o sofrimento mental” [96].

Diante dessas constatações, Torres conclui que o sistema internacional de direitos humanos reconhece que a criminalização do autoaborto e do aborto praticado com o consentimento da gestante acarreta flagrante afronta à dignidade das mulheres[97].

Torres finaliza com a citação de Ingo Wolfgang Sarlet:

 

  • Onde não houver pela vida e pela integridade física do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças. A concepção homem-objeto, como visto, constitui justamente a antítese da nossa dignidade da pessoa humana[98].

 

 

6.1.3- Da Incompatibilidade da Criminalização do Aborto com o Princípio da Subsidiariedade

 

O Princípio da subsidiariedade embasa-se na principiologia do Estado Penal Mínimo e da última ratio e consiste na justificativa de que a criminalização somente se fundamentaria quando não houvesse outros meios ou alternativas para o enfrentamento da dificuldade ou problema a ser discutido, que no caso, seria a do aborto.

Para Torres é necessário “desconstruir a falsa ideia de que a criminalização das condutas tidas como perigosas ou nocivas, conflituosas ou indesejadas, constitui uma solução eficaz para o seu enfrentamento” [99].

Acrescenta ainda que o sistema constitucional brasileiro exige do Estado “ações positivas promotoras dos direitos, e não ações negativas proibitivas de condutas, que se fazem obrigatórias na atuação do Estado para proteção dos direitos fundamentais do indivíduo” [100].

Para Torres:

 

  • O sistema de direitos humanos das mulheres, incorporado ao nosso sistema constitucional, exige, antes da criminalização, a adoção de medidas protetivas que, de forma mais eficaz e não danosas, são mais adequadas para o enfrentamento do problema em referência, o qual somente é agravado com a adoção da criminalização[101].

 

Conforme dispõe Aníbal Faúndes e José Barcelatto:

  • Todo aborto é resultado de uma gravidez não desejada. É óbvio, portanto, que a primeira estratégia para reduzir o número de abortos é ajudar as mulheres a evitar a gravidez quando elas não desejam ter o filho. Uma vez que a gravidez já aconteceu, ainda é possível prevenir o aborto com medidas positivas, e não punitivas, através das intervenções de apoio social de que a mulher precisa, não apenas para evitar a gravidez, mas também para que seus planos futuros como indivíduo não se vejam frustrados pelo nascimento desse filho[102].

 

Portanto, para Torres, a adoção da criminalização do abortamento, sem que antes sejam efetivadas medidas protetivas, constitui flagrante violação ao princípio da subsidiariedade[103].

 

7-  Análise Epistêmica da Criminalização do Aborto

 

7.1-     O Direito à vida e o Direito de viver

 

O Professor Doutor José Francisco de Assis Dias em seu livro “Aborto? Sou Contra! Os Argumentos anti - abortistas de Noberto Bobbio” traz algumas considerações e fundamentações a respeito do direito de nascer/viver.

Para embasar sua posição contrária ao aborto, Dias trata sobre o direito à vida e assim expõe:

 

  • O direito à vida é um direito que implica da parte do Estado, pura e simplesmente, um comportamento negativo: Não matar! Já o direito a viver implica da parte do Estado também um comportamento positivo, isto é, implica intervenção de políticas econômicas inspirados em princípios de justiça distributiva; e da parte dos “outros” também um comportamento positivo de sustentação, promoção e proteção solidária da vida, como valor primordial[104].

 

O autor distingue duas vertentes a respeito do direito à vida: “reconhece-se ao indivíduo- cidadão não somente o direito de não ser morto por nenhuma razão ‘não natural’, mas também o direito de não morrer de fome” [105].

A seguir serão listados dois diferentes conceitos atribuídos por Bobbio, e transmitidos pelo Professor José Francisco de Assis Dias, quanto ao direito à vida:

 

  • A expressão direito à vida referida ao Homem, na sua acepção mais comum, pode significar o fundamento jurídico constitucional, que na Sociedade de direito assegura aos cidadãos a defesa da morte, do ferimento ou de atos nocivos à própria vida da parte de outros. É quanto entende o V mandamento do Decálogo: Não matarás![106]

 

Dias prossegue:

 

  • Significa também o direito do morrente a receber cuidados intensivos a fim de não perder a vida: direitos a que lhe venham postos a disposição, da parte da Sociedade, meios maiores de quanto comumente ofertado a quem não se encontra em perigo de morte[107].

 

Diante disso, constata-se que o direito à vida abrange tanto o direito de nascer quanto também o direito de se manter vivo, em que o Estado obtém a obrigação de fornecer o básico para a sociedade. Todavia, o direito que aqui nos interessa é o direito de nascer.

Para Bobbio “o princípio fundamental da Moral é o respeito pela ‘pessoa humana’, porque a vida humana é o que existe de mais precioso” [108].

Podemos concluir com Bobbio que “o direito fundamental à vida e a viver compete a todos os entes humanos, desde a concepção até a morte natural, independentemente do nível ou intensidade atuais de suas capacidades vitais” [109].

 

7.1.1- Breves comentários de Anelise Tessaro a respeito do direito à vida

 

Ao contrário do que acredita Bobbio, Anelise Tessaro entende que nessas situações não é possível aplicar a norma moral geral, qual seja, o mandamento “não matarás”, pois outros valores também fundamentais se contrapõem a este ditame, como a qualidade de vida e a dignidade da pessoa[110].

Tratando especificamente desse assunto, e com o mesmo entendimento de Anelise Tessaro, Tom Beauchamp e James Childress teceram os seguintes comentários:

 

  • Com frequência não é possível aplicar com clareza nenhuma norma geral (princípio ou regra) a uma situação concreta, incluindo também aquelas em que as partes estejam de acordo sobre as regras ou princípios de moralidade. Por exemplo, destruir um feto humano inviável não supõe uma clara violação das regras contra o assassinato, e a regra sobre o direito de proteção da integridade e propriedade do próprio corpo tampouco parece ser claramente aplicável ao problema do aborto. Os fatos são complexos e se podem aplicar várias normas morais diferentes, mas com resultados não concludentes e contraditórios. No caso do aborto, ainda que exponhamos claramente os fatos e regras, este juízo será incompatível com o juízo obtido se esta eleição for diferente. Não basta recorrer a um método dedutivo de juízo ou a uma teoria ética geral para obter um conjunto adequado de fatos e aplicar as regras corretas[111].

 

Anelise Tessaro entende que os princípios são diretrizes e não respostas precisas aplicáveis ao caso concreto, e que em alguns casos, podem ser tratados como complementares um do outro, e não antagônicos, assim como pondera Guy Durant:

 

  • Além das diversas regras morais que visam à solução de problemas particulares da conduta ou a realização de objetivos precisos, existem também princípios, relativamente indefinidos, que propõem grandes orientações éticas e que visam à organização, à regulação e à correção de atitudes de uma categoria menos elevada. Por exemplo, os princípios da justiça, da bondade e da igualdade. Estes princípios têm por objetivo indicar um caminho a seguir, antes de pretender respostas precisas. Eles não dizem o que fazer em um caso particular, mas fornecem critérios pertinentes e racionais, justificativas em face às regras de comportamento. Trata-se, então, de princípios abstratos, de caráter impessoal, de conteúdo indeterminado, e que transcendem as regras concretas. O princípio do caráter sagrado da vida seria desta categoria. Ele constitui princípio fundamental e significativo, porém indeterminado. Por ser operacional e útil, o princípio do caráter sagrado da vida tem necessidade de ser concretizado por regras que o exprimam e o expliquem. É impossível que a riqueza deste conceito possa ser reduzida a uma só regra moral: ‘não se pode interromper a vida, sem justificativa’. Seria necessário um conjunto de regras morais suficientemente numerosas para atender o conjunto das questões biomédicas que têm necessidade deste princípio. As decisões relativas à vida e à morte não despertam apenas um problema, mas muitos. Por exemplo, a sobrevivência da espécie, a integridade da vida física e emocional do indivíduo, a inviolabilidade do corpo humano. (...) Apesar de opiniões contrárias, é possível então unir o conceito de qualidade de vida com o princípio do caráter sagrado da vida. Em nossa opinião, não é necessário colocar as duas máximas como oponentes, mas considerá-las como complementares, ambas contribuindo para satisfazer as exigências éticas do respeito pela vida humana[112].

 

Diante disso, para Anelise Tessaro, “os princípios podem ser vistos como complementares um do outro e não como normas estáticas, oportunizando uma maior facilidade de aplicação ao caso concreto para resolução destes conflitos” [113].

 

7.2-     Convenções e Tratados Internacionais que declaram o Direito à Vida

 

7.2.1-                Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 1966

 

Esse Pacto foi ratificado pelo Brasil em 24 de Janeiro de 1992 e em seu artigo 6°, parágrafo primeiro, trata do direito à vida, conforme segue:

O direito à vida é inerente à pessoa humana, Este direito deverá ser protegido pelas Leis, Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida. (...)[114]

 

7.2.2-                Convenção Americana de Direitos Humanos, 1969

 

Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil em 25 de Setembro de 1992 e em seu artigo 4°, parágrafo primeiro, dispõe:

Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. (...)[115]

 

7.2.3-                Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989

 

Essa Convenção foi ratificada pelo Brasil em 20 de Setembro de 1990 e diz em seu artigo 6°:

§ 1º. Os Estados Membros reconhecem que toda criança tem o direito inerente à vida.

§ 2°. Os Estados Membros assegurarão ao máximo a sobrevivência e o desenvolvimento da criança[116].

 

7.3-     O Direito do Nascituro

 

Para Bobbio, segundo o Professor Dias, o direito de viver compreende, além do “direito à vida, strictu sensu, ou seja, o direito a não ser assassinado, também o direito a nascer, a não ser deixado morrer e a ser mantido em vida ou direito à sobrevivência” [117].

Dias prossegue ainda:

Não existe “direito” de um indivíduo humano sem o correspondente “dever” de um outro indivíduo humano. E cada dever pressupõe uma norma imperativa. Na relação entre a mãe e o nascituro, perguntou Bobbio, quem é o mais fraco? Não é o nascituro? Em outras palavras, deve prevalecer o direito do nascituro, consequentemente, o dever da mãe; ou não?[118]

 

Dias conclui:

 

  • Os abortistas dizem que o nascituro é, certamente, o mais fraco em relação à mãe, mas que a mulher é a parte mais fraca em relação ao homem que a “obrigou”, ao menos na maior parte dos casos, a engravidar. Segundo Bobbio, não é por “acaso” que a tendência abortistas tenha tido enorme incremento pela difusão das reivindicações dos movimentos feministas, favorecidos pelos partidos da Esquerda política[119].

 

Deve-se levar em conta que essas observações feitas por Bobbio deram-se no século passado em que a maioria das ocorrências de abortamento ocorriam por motivos, geralmente, específicos como quando o homem “obrigava” a mulher a cometer o procedimento, conforme acima descrito.            

No entanto, o cerne do presente trabalho é abordar a questão do aborto em casos de microcefalia, problema insurgente no Brasil, o qual será analisado mais adiante.

 

7.4-     Três Direitos Incompatíveis

 

De acordo com Bobbio, conforme cita o Professor Doutor José Francisco de Assis Dias, “deve prevalecer o direito fundamental do concebido, aquele direito de nascer sobre o qual não se pode transigir” [120].

Para Dias, Bobbio reconhece também um segundo direito na relação abortiva:

 

  • (...) o direito da mulher a não ser sacrificada na cura dos filhos que não escolheu de ter. Reconheceu também um “terceiro” direito: o direito da Sociedade em geral e também das sociedades particulares a não serem super-populadas e, portanto, a exercitar o controle dos nascimentos. É verdade que são direitos incompatíveis, observou Bobbio; e quando nos encontramos diante de direitos incompatíveis, a escolha é sempre dolorosa[121].

 

DIAS conclui:

 

  • Segundo Bobbio, dos três direitos citados, o primeiro, o do concebido, é fundamental, sobre o qual não se pode transigir, os outros dois, o da mulher e o da Sociedade, são direitos derivados. Para Bobbio esse é o ponto central do problema do aborto procurado: o direito da mulher e da Sociedade, que normalmente são utilizados para justificar o aborto procurado, podem ser satisfeitos sem recorrer ao aborto, ou seja, evitando a concepção[122].

 

Portanto, em síntese, para Bobbio, haveria três direitos em questão quando se trata de aborto provocado: o direito do nascituro, o direito da mulher e o direito da sociedade. O direito do nascituro seria o de nascer, o da mulher o de não ter um bebê o qual não deseja e o da sociedade, de não sofrer superpovoamento.

A solução para evitar um aborto seria, em tese, para Bobbio, esquivar-se da concepção, quando possível, pois o direito de nascer do nascituro é fundamental e intransigível já o direito da mulher e da sociedade são direitos derivados e, portanto, estariam em segundo plano.

 

8-  Microcefalia

 

É uma condição em que o bebê nasce com o crânio do tamanho menor do que o normal. 

Apesar de a microcefalia ser uma situação antiga dentro da medicina brasileira foi a partir do segundo semestre de 2015 que se instaurou um surto da patologia no Brasil, sendo o maior número de casos diagnosticados em Pernambuco[123].

Devido a isso, estudos e análises vêm sendo realizados com o intuito de desvendar os efeitos dessa doença em seus portadores.

Por se tratar de um tema antes pouco abordado não temos bibliografia sobre o assunto que trate sobre suas reais consequências até porque, como dito, é recente os estudos nessa área para levantamento desses dados.

Diante disso, mesmo ante a ausência de material bibliográfico, todavia tendo em vista a importância sobre o debate do assunto, o presente trabalho, no que tange especificamente a microcefalia, foi elaborado com base em informações extraídas de entrevistas de jornais, sites e revistas eletrônicas com o intuito de construir uma reflexão séria de acordo com a relevância do tema abordado.

Conforme o site G1 da Globo.com:

 

  • A microcefalia é diagnosticada quando o perímetro da cabeça é igual ou menor do que 32 cm (até este ano o Ministério da Saúde adotava 33 cm, mas a medida foi alterada de acordo com parâmetros da Organização Mundial da Saúde). Portanto, o esperado é que bebês tenham pelo menos 34 cm. Mas atenção: isso vale apenas para crianças nascidas a termo (com 9 meses de gravidez). No caso de prematuros, esses valores mudam e dependem da idade gestacional em que ocorre o parto[124].

 

Os estudos apontam que as possíveis causas da microcefalia sejam infecções adquiridas pela mãe, como a toxoplasmose, rubéola e citomegalovírus, por exemplo, além de abuso de álcool ou drogas durante a gestação ou ainda, recentemente descoberto, a infecção da gestante pelo zika vírus.

Assim como os vírus da dengue e do chikungunya, o vírus da zika também é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti.

Segundo Mariana Lenharo, jornalista do Site G1 da Globo.com, com sua publicação de 05/12/2015:

Identificado pela primeira vez no país em abril, o vírus da zika tem provocado intensa mobilização das autoridades de saúde no país. Enquanto a doença costuma evoluir de forma benigna – com sintomas como febre, coceira e dores musculares – o que mais preocupa é a associação do vírus com outras doenças. O Ministério da Saúde já confirmou a relação do vírus da zika com a microcefalia(...)[125].

A confirmação, segundo o mesmo site, pelo Ministério da Saúde da relação do zika vírus com a microcefalia se deu em novembro de 2015 e teve como base os resultados de exames realizados em um bebê com microcefalia, nascido no Ceará, que apresentou em amostras de sangue e tecidos a presença do vírus zika[126] [127].

É possível diagnosticar a microcefalia ainda na gravidez através da ultrassonografia e pode ser confirmado logo após o parto através da medição do tamanho da cabeça do bebê.

De acordo com a pediatra Beatriz Beltrame as crianças com microcefalia podem ter consequências como, por exemplo, “atraso mental, déficit intelectual, paralisia, convulsões, epilepsia, autismo, rigidez dos músculos“ [128].

Beltrame acrescenta:

 

  • Apesar de não haver tratamento específico para a microcefalia, podem ser tomadas algumas medidas para reduzir os sintomas da doença. Normalmente a criança precisa de fisioterapia por toda a vida para se desenvolver melhor, prevenindo complicações respiratórias e até mesmo úlceras que podem surgir por ficarem muito tempo acamadas ou numa cadeira de rodas. Todas estas alterações podem acontecer porque o cérebro precisa de espaço para que possa atingir o seu desenvolvimento máximo, mas como o crânio não permite o crescimento do cérebro, suas funções ficam comprometidas, afetando todo o corpo. A microcefalia pode ser classificada como sendo primária quando os ossos do crânio se fecham durante a gestação, até os 7 meses de gravidez, o que ocasiona mais complicações durante a vida, ou secundária, quando os ossos se fecham na fase final da gravidez ou após o nascimento do bebê[129].

 

Quanto ao tratamento da microcefalia Tânia Saad, especialista do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), em reportagem publicada em 18/01/2016 ao Portal Brasil, na internet, explica que:

 

  • A microcefalia tem tratamento, mas não é um tratamento específico, depende do acometimento e grau que a criança vai apresentar. Uma vez que ela tenha sido diagnosticada, será necessário cuidar das suas necessidades: fisioterapia, se ela estiver mais rígida, se estiver evoluindo com atraso no desenvolvimento; fonoaudiologia, se tiver dificuldade para engolir; terapia ocupacional para ensinar o bebê para que que servem os movimentos que a fisioterapia vai ajudar a desenvolver; fisioterapia respiratória para que ele possa respirar melhor; neuropediatria porque ele pode desenvolver crises convulsivas; a própria pediatria, gastrenterologia, nutricionista para ajudar essa criança a ter uma boa curva de peso, para que ela possa suportar bem todas as intervenções de interdisciplinaridade que vai precisar. Dependendo do acometimento, vai precisar de mais ou menos suporte[130].

 

Como exposto acima, os efeitos da microcefalia variam de caso a caso e dependem do grau da doença em cada criança portadora, pois a microcefalia apresenta vários níveis de gravidade.

Uma reportagem do G1, de 14/04/2016, aborda pesquisa que tenta distinguir microcefalia ligada à zika da microcefalia ligada a outras infecções, conforme segue:

 

  • Um estudo brasileiro publicado na revista "British Medical Journal" nesta quarta-feira (13) detalhou os tipos de problemas presentes no cérebro de bebês com microcefalia relacionada à zika. Este é o primeiro estudo que faz uma tentativa de distinguir as características cerebrais de bebês com microcefalia ligada à zika daquelas observadas em bebês com microcefalia devido a outras infecções. A pesquisa concluiu que a microcefalia ligada à zika apresenta, em geral, danos cerebrais extremamente severos, com poucas chances de um bom desenvolvimento das funções neurológicas. Uma característica que parece ser específica da microcefalia por zika é a calcificação em uma região determinada: entre a substância branca cortical e subcortical do cérebro. A hipótese dos autores é que o vírus da zika destrói células cerebrais e forma lesões parecidas com cicatrizes, onde há depósito de cálcio. Para chegar a essas conclusões, os pesquisadores - vinculados à Faculdade Maurício de Nassau, AACD do Recife, Universidade de Pernambuco, Universidade Federal de Pernambuco e Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira - avaliaram 23 bebês com diagnóstico de microcefalia provavelmente associada ao vírus da zika. As crianças nasceram em Pernambuco entre julho e dezembro de 2015. Desse grupo, 15 passaram por tomografia computadorizada, 7 passaram tanto por tomografia quanto por ressonância magnética e um passou apenas pela ressonância. Apenas seis tiveram testes positivos para o anticorpo relacionado ao vírus da zika, mas exames descartaram outras possíveis causas de microcefalia como toxoplasmose, citomegalovirus, rubéola, sífilis e HIV. Segundo os autores, o estudo apresenta a maior e mais detalhada série de achados de neuroimagem em crianças com microcefalia provavelmente ligada ao vírus da zika. Entre os médicos que têm atendido pacientes com microcefalia desde que o número de casos começou a aumentar, já havia uma percepção de que esses casos de microcefalia eram distintos daqueles provocados por outros vírus, porém isso ainda não tinha sido descrito em uma publicação científica[131].

 

Quanto aos efeitos da microcefalia, Márcio Nehab, também especialista do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), em reportagem publicada em 18/01/2016 ao Portal Brasil na internet, fala de quais deficiências a criança com microcefalia pode desenvolver:

 

  • É impossível dizer qual acometimento cerebral ela vai ter. Ela pode ter retardo mental, paralisia cerebral, epilepsia, atraso no desenvolvimento global. Existem diversas manifestações clínicas do acometimento cerebral, levando a diferenças em relação ao prognóstico dessas crianças. Algumas crianças podem desenvolver um grau de microcefalia pequeno e que não tem nenhum acometimento cerebral. Isso pode acontecer. Existem tem gradações de microcefalia, inclusive, a Sociedade Americana de Neurologia classifica em microcefalia e microcefalia severa[132].

 

Dessa forma, é incontestável que a microcefalia é compatível com a vida extrauterina e a depender do acometimento da doença, a pessoa portadora pode ter uma vida normal apesar de possíveis limitações físicas que venha possuir.  

 

8.1-     Argumentos contrários ao aborto em casos confirmados de microcefalia do feto

 

De início, “é mister estabelecer a diferença entre feto malformado e inviável, pois as situações fáticas a que se referem estes conceitos são essencialmente diversas”[133].

Portanto, é de suma importância a distinção entre feto malformado e inviável, pois, independentemente de haver anomalias, é possível que o feto malformado se mantenha vivo[134].

Já nos fetos inviáveis, “a anomalia é incompatível com a vida extra-uterina, e a criança não viverá nem bem ou mal, vindo a falecer logo após o parto”[135].

Para estabelecer a diferença entre feto malformado e inviável Anelise Tessaro expõe que:

 

  • As malformações fetais, dependendo da gravidade, não provocam a morte do feto ao nascer. Ainda que estejam presentes anomalias congênitas, é possível que o feto malformado sobreviva, porém com certas limitações no que diz respeito a sua qualidade de vida. Em alguns casos, existem tratamentos clínicos ou cirúrgicos que podem mitigar ou até curar os efeitos desta malformação[136].

 

Diante disso, a primeira grande diferença que se analisa ao comparar anencefalia com microcefalia é que no primeiro caso a doença é incompatível com a vida já no segundo não. Na maioria dos casos de microcefalia registrados, a criança nasce e se desenvolve, dentro de suas limitações e de acordo com o grau da doença, mas, sobretudo sobrevive independentemente da má-formação.

Há ainda muita desinformação a respeito da doença e ausência de orientação médica e psicológica por parte do sistema de saúde pública que se encontra ainda mais despreparada quando o assunto é microcefalia, não possuindo estrutura para direcionar devidamente a gestante de bebê portador da síndrome. O aborto nesses casos, muitas vezes, é um ato de desespero e aflição de alguém que não encontra outra saída. Inúmeros são os exemplos de mulheres que pensam em abortar, mas que desistem ao serem ouvidas, orientadas e aconselhadas. Propor o aborto a essas mulheres, nessas situações, é negar o amparo que elas realmente necessitam.

Outro argumento levantado por aqueles que criticam o aborto em casos de microcefalia é de que se estaria negando o direito à vida de crianças deficientes.

Eudes Quintino Oliveira Júnior, promotor de Justiça aposentado e pós-doutor em ciências da saúde, argumenta que:

Se o aborto em caso de microcefalia for permitido, entraremos na eugenia. Quer dizer, só pode nascer o feto que for compatível, que não tenha nenhum problema", avalia. "Isso vai mudar muito a conceituação de dignidade. Se permitirmos no caso de microcefalia, teremos que admitir para todos os outros tipos de doença. A escolha da mulher não pode sobrepor à nova vida que vai chegar. [137]

Os militantes da luta pró- vida acreditam que os defensores do aborto em casos de microcefalia (e outras síndromes) propagam de forma dissimulada a eugenia. Argumentam que para os defensores do aborto o bebê considerado imperfeito é indigno de viver e que essa mentalidade contraria o princípio mais básico do Estado Democrático de Direito: o princípio da dignidade humana.

Diante disso, crianças com microcefalia merecem respeito e proteção por parte do Estado. Buscar abreviar a existência de crianças com essa síndrome, por meio do aborto, não condiz com o que se espera de uma sociedade evoluída.

 

8.2-     Argumentos a favor do aborto em casos confirmados de microcefalia do feto

 

Débora Diniz, doutora em antropologia, professora de Direito da UnB e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética, foi quem propôs à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) ajuizar ação no Supremo Tribunal Federal para garantir, em casos de anencefalia, o direito ao aborto. E como visto anteriormente, o STF, em 2012, acatou a liberação do aborto em situação de anencefalia do feto.

Grupo de ativistas, liderado pela antropóloga Débora Diniz, prepara uma ação similar para pedir à Suprema Corte o direito ao aborto em gestações de bebês com microcefalia.

Segundo entrevista concedida ao site da “Época”, Débora Diniz responsabiliza o Estado pela epidemia do zika vírus e pela incapacidade de erradicar o mosquito vetor. E dessa forma, as mulheres não poderiam ser penalizadas pelas falhas de política pública, como é o caso da microcefalia.

Nas palavras de Diniz:

 

  • O escândalo não deve ser o direito ao aborto em caso de zika, mas a negligência do Estado brasileiro em enfrentar a epidemia. A conversa precisa ganhar contornos justos, e o mais importante deles é reconhecer que as mulheres estão desamparadas pela incapacidade do Estado de eliminar o mosquito. Não podemos nos confundir agora, pois falar em direito ao aborto parece provocar um novo pânico. Direito ao aborto é só uma das formas de proteger as necessidades de saúde das mulheres em uma tragédia epidêmica. E não há nada de eugenia aqui, uma palavra que perturba pelo passado de terror e pelo prenúncio de discriminação injusta[138].

 

Diniz prossegue:

 

  • Segundo a OMS, “o nível de alarme é extremamente alto” para os riscos de má-formação no feto causada pelo zika. O conjunto de variações etiológicas do feto é descrito como “microcefalia”, mas estamos diante de um novo quadro clínico ainda a ser descrito. Para cuidar dessa metamorfose epidêmica, é preciso um pacote amplo de proteções aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres: a) acesso irrestrito aos métodos contraceptivos; b) teste para o zika em rotina de pré-natal; c) possibilidade do aborto legal em caso de testagem positiva ao zika. Para as mulheres infectadas pelo zika que não desejarem o aborto, deve haver pré-natal com cuidados específicos. Repito: sabemos pouco sobre os efeitos do zika em mulheres grávidas. Não há nada que se assemelhe à eugenia aqui. O Estado não impõe às mulheres o aborto. Ao contrário, há uma grave violação à saúde pela vivência da gravidez em tempo de epidemia: direito ao aborto ou cuidados precoces são duas maneiras de amparar as mulheres grávidas. Um estado democrático de direito reconhecerá essa diversidade de escolhas: as mulheres nem serão forçadas a manter-se grávidas sob riscos ainda desconhecidos a sua saúde e a de seu futuro filho, tampouco serão forçadas a abortar. Um Estado eugênico não reconhece o direito à autonomia da vontade, pois é um regime político totalitário de gestão da vida. Mas há outra razão para afugentarmos o fantasma da eugenia desta conversa. A epidemia fez crescer o número de crianças com deficiência em regiões pobres do Brasil – por isso, medidas de proteção social que respeitem o novo marco constitucional da pessoa portadora de deficiência devem ser urgentemente adotadas. Não há isso de “geração de sequelados”, como disse o ministro da Saúde. Menos ainda a solução de um salário mínimo para as famílias com crianças afetadas pelo zika: um Estado social forte não se resume à transferência de renda no limite da pobreza. A verdade é que não há incompatibilidade de agendas para o enfrentamento da epidemia: movimentos de mulheres e de pessoas com deficiência devem andar lado a lado. São as mulheres as principais vítimas da epidemia, e são as mulheres as cuidadoras das crianças com deficiência. Cabe a elas a escolha sobre seu projeto de vida e de família, especialmente em um momento dramático como uma epidemia[139].

 

Débora Diniz, porta voz e principal articuladora política da ação judicial que suscitou a autorização da antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos em 2004, defende, na entrevista acima, que o direito ao aborto em casos de microcefalia constitui um direito da mulher e não configura em si uma imposição ao aborto, ou seja, a mulher aborta se quiser.

Ela analisa a situação de emergência epidêmica que assola o país e considera o aborto uma possível solução de saúde pública.

Para Rui Nunes, professor catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto:

 

  • Os países desenvolvidos evoluíram no sentido de deixar a mulher decidir sobre sua autonomia reprodutiva. Segundo o especialista em bioética, isso não se traduz em eugenia - ciência que estuda como melhorar "qualidades físicas e morais de gerações futuras", segundo o dicionário Michaelis -, tampouco em discriminação de pessoas com deficiência. "Os países que permitem o aborto nesses casos são os que mais se preocupam com a inclusão de pessoas com deficiência na sociedade", argumenta. "Não é correto dizer que se trata de um ato eugênico. Os pais tomam essa decisão não por gostarem mais ou menos dos seus filhos, mas sobretudo por se preocuparem com a qualidade de vida que essas crianças terão no futuro"[140].

 

Outro argumento dos defensores do aborto diz respeito à existência do livre acesso ao procedimento somente para aquelas mães que têm condições financeiras de pagar por um aborto seguro e sigiloso. Em suma, eles alegam serem a favor de que as mulheres pobres não morram em procedimentos mal feitos, pois para as ricas o aborto seguro já é acessível.

 

8.3 - Relatos de quem vive e convive com a microcefalia

 

8.3.1- Caso de Ana Carolina Cáceres, portadora de microcefalia

 

Ana Carolina Cáceres, de 24 anos, portadora de microcefalia, desafiou todos os limites da doença previstos pelos médicos. O diagnóstico é de que ela não sobreviveria. Ana conta sua história no livro “Selfie: Em meu autorretrato, a microcefalia é diferença e motivação” [141].

Em depoimento a BBC Brasil disponibilizado no site do G1, Ana relata:

 

  • Quando li a reportagem sobre a ação que pede a liberação do aborto em caso de microcefalia no Supremo Tribunal Federal (STF), levei para o lado pessoal. Me senti ofendida. Me senti atacada. No dia em que nasci, o médico falou que eu não teria nenhuma chance de sobreviver. Tenho microcefalia, meu crânio é menor que a média. O doutor falou: "ela não vai andar, não vai falar e, com o tempo, entrará em um estado vegetativo até morrer". Ele - como muita gente hoje - estava errado. Meu pai conta que comecei a andar de repente. Com um aninho, vi um cachorro passando e levantei para ir atrás dele. Cresci, fui à escola, me formei e entrei na universidade. Hoje eu sou jornalista e escrevo em um blog. Escolhi este curso para dar voz a pessoas que, como eu, não se sentem representadas. Queria ser uma porta-voz da microcefalia e, como projeto final de curso, escrevi um livro sobre minha vida e a de outras 5 pessoas com esta síndrome (microcefalia não é doença, tá? É síndrome!). Com a explosão de casos no Brasil, a necessidade de informação é ainda mais importante e tem muita gente precisando superar preconceitos e se informar mais. O ministro da Saúde, por exemplo. Ele disse que o Brasil terá uma 'geração de sequelados' por causa da microcefalia. Se estivesse na frente dele, eu diria: 'Meu filho, mais sequelada que a sua frase não dá para ser, não'. Porque a microcefalia é uma caixinha de surpresas. Pode haver problemas mais sérios, ou não. Acho que quem opta pelo aborto não dá nem chance de a criança vingar e sobreviver, como aconteceu comigo e com tanta gente que trabalha, estuda, faz coisas normais - e tem microcefalia. As mães dessas pessoas não optaram pelo aborto. É por isso que nós existimos. Não é fácil, claro. Tudo na nossa casa foi uma batalha. Somos uma família humilde, meu pai é técnico de laboratório e estava desempregado quando nasci. Minha mãe, assistente de enfermagem, trabalhava num hospital, e graças a isso nós tínhamos plano de saúde. A gente corta custos, economiza, não gasta com bobeira. Nossa casa teve que esperar para ser terminada: uma parte foi levantada com terra da rua para economizar e até hoje tem lugares onde não dá para pregar um quadro, porque a parede desmancha. O plano cobriu algumas coisas, como o parto, mas outros exames não eram cobertos e eram muito caros. A família inteira se reuniu – tio, tia, gente de um lado e do outro, e cada um deu o que podia para conseguir o dinheiro e custear testes e cirurgias. No total, foram cinco operações. A primeira com nove dias de vida, para correção da face, porque eu tinha um afundamento e por causa dele não respirava. Durante toda a infância também tive convulsões. É algo que todo portador de microcefalia vai ter - mas, calma, tem remédios que controlam. Eu tomava Gardenal e Tegretol até os 12 anos - depois nunca mais precisei (e hoje sei até tocar violino!). Depois da raiva, lendo a reportagem com mais calma, vi que o projeto que vai ao Supremo não se resume ao aborto. Eles querem que o governo erradique o mosquito, dê mais condições para as mães que têm filhos como eu e que tenha uma política sexual mais ampla - desde distribuição de camisinhas até o aborto. Isso me acalmou. Eu acredito que o aborto sozinho resolveria só paliativamente o problema e sei que o mais importante é tratamento: acompanhamento psicológico, fisioterapia e neurologia. Tudo desde o nascimento. Também sei que a microcefalia pode trazer consequências mais graves do que as que eu tive e sei que nem todo mundo vai ter a vida que eu tenho. Então, o que recomendo às mães que estão vivendo esse momento é calma. Não se desespere, microcefalia é um nome feio, mas não é esse bicho de sete cabeças, não. Façam o pré-natal direitinho e procurem sobretudo um neurologista, de preferência antes de o bebê nascer. Procurem conhecer outras mães e crianças com microcefalia. No próprio Facebook há dois grupos de mães que têm um, dois, até três filhos assim e trabalham todos os dias tranquilas, sem dificuldade. Caso o projeto de aborto seja aprovado, mas houver em paralelo assistência para a mãe e garantia de direitos depois de nascer, tenho certeza que a segunda opção vai vencer. Se ainda assim houver pais que preferirem abortar, não posso interferir. Acho que a escolha é deles. Só não dá para fazê-la sem o mais importante: informação. Quanto mais, melhor. Sempre. É o que me levou ao jornalismo, a conseguir este espaço na BBC e a ser tudo o que eu sou hoje: uma mulher plena e feliz[142].

 

O caso de Ana é menos grave que os relacionados ao vírus da zika. Seu pai, Ermínio Cáceres, comenta que “é impossível não lembrar das dificuldades e das dúvidas que surgiram logo após o diagnóstico da microcefalia”[143].

Ele finaliza: "A gente não sabia se ela ia andar, se ela ia falar, se ia ouvir e hoje esta aí, como vocês estão vendo, formada em jornalismo. Fez o curso tranquilamente, tudo de bom”[144].

Numa entrevista concedida ao site Gazeta do Povo, Ana afirma: “Eu tenho 25 anos. Conheço muita gente com microcefalia que tem 30, 40 anos e trabalha, tem uma formação. Eu sou uma prova viva de que essa doença não é tudo isso’” [145].

 

8.3.2- Caso Dayane dos Reis Santos, mãe de bebê portadora da síndrome

 

Dayane dos Reis Santos, de 19 anos, convive diariamente com a falta de sensibilidade de médicos e profissionais que desconhecem como lidar com a síndrome de sua bebê.

Em depoimento a Thais Lazzeri, repórter do site da Época, segue relato na íntegra:

 

  • Foram poucos os segundos que fizeram minha vida mudar completamente. Estava grávida de quatro meses e faria o primeiro ultrassom. Lembro-me das primeiras imagens, do bebê pulando loucamente na minha barriga, quando nem sentia os movimentos dele. O médico começou o exame e logo anunciou que meu palpite sobre o sexo do bebê estava certo: era uma menina, Sophia. Estava tão emocionada que demorei a perceber o espanto do médico analisando o cérebro da minha filha. Quando perguntei o que era, ele disse: ‘parece que tem um ossinho a mais aqui’. Nenhuma outra resposta ele me deu. Esperei no laboratório pelo resultado do exame. No documento, o médico anotou o que provavelmente não teve coragem para me dizer. Sophia tinha microcefalia. Não sabia o que era microcefalia nem como mudaria brutalmente minha história. Estava com 18 anos, não planejei engravidar nem mudar para a casa dos pais do meu namorado – o que aconteceu no início da gravidez. Saí do exame e fui trabalhar. Incapaz de esconder meu sofrimento, minha chefe disse para eu tirar o dia de folga e me deu dinheiro para fazer um ultrassom morfológico com um especialista em imagem. Como não tenho plano de saúde e a fila do Sistema Único de Saúde (SUS) demoraria muito, aceitei o presente. Marquei o exame para o dia seguinte. Ao novo médico não faltaram respostas, mas sutileza. Ele olhou meu prontuário antes de começar o ultrassom. Nunca vou esquecer aquelas imagens. Minha filha tinha microcefalia, ele confirmou. E o ‘ossinho’ a mais era encefalocele, um problema grave, uma expansão do cérebro por aberturas no crânio. O médico disse para eu não esperar nada da minha filha: ela morreria no útero ou no parto – no máximo, viveria por poucas horas. Todos os meus sonhos para Sophia não aconteceriam. Para evitar maus pensamentos, preferi trabalhar 100% do tempo a ficar em casa – nem fazia hora do almoço. Quanto mais pensava, mais tinha que imaginar um novo futuro dela, e tudo o que diziam era ruim. Nem lembro direito da minha barriga crescer. A obstetra do posto de saúde me encaminhou para um tratamento psicológico porque a gestação era de alto risco. Nas consultas, só eu falava, o que me incomodou bastante. Desisti da terapia. A cesárea foi marcada para 28 de julho, quando completei 40 semanas e cinco dias (uma gestação normal pode ir até 42 semanas). Como pediram, cheguei ao hospital às 7h, mas não havia vaga na maternidade. Esperei até às 21h para entrar no centro cirúrgico. Durante esse tempo, a equipe médica – a mesma que me acompanhou pelos nove meses –, insistiu para Sophia nascer de parto normal, quando todos sabíamos que ela não sobreviveria. Antes da anestesia, o médico disse: ‘você sabe que sua filha não vai sobreviver, não é?’. Meu corpo tremeu inteiro diante da morte da minha filha. Daí, o mesmo médico brigou comigo porque o anestesista não conseguia aplicar a injeção porque eu me mexia demais. Não vi minha filha ao nascer. Acordei horas depois num quarto com outras mães com seus filhos no colo. Foi bem difícil assistir àquelas cenas, sozinha. Apenas no dia seguinte pude vê-la, na incubadora. Parte da cabeça dela estava coberta com uma compressa. Ainda assim, era possível ver parte da massa cefálica. Foi desesperador. Precisei ser socorrida. Em casos como o da Sophia, uma cirurgia cerebral precisa ser realizada logo após o nascimento. Por algum motivo que não souberam explicar, eu e Sophia permanecemos duas semanas na maternidade até a vaga para a cirurgia surgir em outro hospital. Minha irmã foi mãe naquela mesma maternidade. Como eu, também teve uma menina. Na alta, deram a ela um certificado de nascimento da bebê com uma foto, o resultado do teste da orelhinha, a carteira de vacinação preenchida e o teste do pezinho. Da Sophia, entregaram uma tomografia do cérebro e a carteira de vacinação com o nome dela, sem anotação alguma. Ali, minha filha não existiu. Chegamos ao novo hospital de ambulância. O médico do pronto-socorro, que faz a autorização da entrada de novos pacientes, era o mesmo que dava alta. Ficamos na sala da sutura temporariamente. Lembro que uma enfermeira perguntou ao médico porque não mandavam a gente embora, porque o caso da minha filha ‘não tinha jeito’. Demorou, mas fomos liberadas para a UTI. Moro no Grajaú, zona sul de São Paulo, e minha filha foi transferida para uma UTI na zona leste da cidade. No começo, tinha ajuda de muita gente para chegar ao hospital. Depois, a vida das pessoas foi seguindo, enquanto a minha permanecia na UTI. Recém-operada da cesárea, eu pegava duas – por vezes três – conduções para chegar. Sem trânsito, levava quatro horas. Por isso não é exagero dizer que morei no hospital por muitos dias, dormindo e comendo quando era possível. Nunca pude fotografar minha filha. Na UTI, não permitiram que levasse o celular pelo risco de infecção aos bebês. Um dia, uma das mães da UTI me chamou para conversar. Ela disse que quando eu saía para comer alguma coisa, os enfermeiros chamavam outras mães para ver minha filha e tirar foto sem a minha permissão. No primeiro hospital fizeram isso também. O que minha filha era para eles? O cirurgião, dias depois, falou que a única chance era operar Sophia e retirar a massa cefálica com menos atividade que não cabia na cabeça dela. Sem a operação, o risco de infecção era grande e ela não resistiria. Aceitei. A primeira vez que ouvi o choro da minha filha foi quando os enfermeiros tentaram encontrar uma veia no braço dela para a cirurgia. Foram tantas as picadas que ela não aguentou a dor e gritou. A cirurgia começou às 8h e terminou às 16h. O neurologista repetiu, seis vezes, que ela jamais iria andar. Era um palpite, ele disse. Sophia se recuperou bem, mas ainda não conseguia se alimentar sozinha. Desde o nascimento, ela recebia alimentação parenteral (uma sonda que passa pelo nariz e leva alimento para o organismo). Mas com esse equipamento ela não teria alta. A solução, a que resisti bastante, era fazer uma gastrostomia (cirurgia para fixar uma sonda alimentar). A alta estava programada para o dia 30 de setembro, depois de três meses intermináveis de internação. No dia, o médico, que sabia da minha expectativa sobre a alta, não apareceu. Senti uma raiva sem fim. Soube, depois, que ele estava tentando salvar a vida de um bebê da UTI, cuja mãe eu conhecia. Mas o bebê não resistiu. Aquilo me deixou calada. Recebi poucas orientações sobre o pós-operatório e o acompanhamento médico da Sophia. Indicaram uma fórmula alimentícia para a Sophia. Do governo, recebi um telegrama dizendo que Sophia não precisava da fórmula e podia se alimentar com comida caseira. Fazia a papinha e dava pela sonda. Foram tantas as vezes que a gastro caiu, que aprendi a por no lugar. Na Unidade Básica de Saúde (UBS) perto de casa não tinha atendimento pediátrico. A única médica era uma clínica-geral. Ela apenas pesava e media a Sophia. Sem um encaminhamento médico, não consegui nenhum tratamento para a Sophia. Reclamei do serviço no programa Alô Mãe, uma central de atendimento telefônico. A pediatra começou a trabalhar no posto de saúde quando Sophia, aos sete meses, tinha movimentos equivalentes a um recém-nascido. A vida de uma criança com deficiência exige muito, e eu estava nessa batalha sozinha. Abandonei meu emprego e a vida que tinha para cuidar da Sophia. Toda semana, por pelo menos três dias, passava a madrugada no hospital. Primeiro ela teve refluxo. Depois, broncopneumonia. Quando melhorou, passou a ter convulsões seguidas, várias vezes ao dia. Ela gritava e chorava sem parar. Um médico disse que era frescura minha, por ser mãe nova com pouca experiência.  Mas eu conheço minha filha, e ela não. Era uma terça-feira e o neurologista só estaria no plantão da sexta-feira. Voltei para casa, arrumei uma mala de viagem e atravessei a cidade em busca de uma resposta. Fui ao hospital onde Sophia tinha sido operada. Depois de alguns testes, os médicos desconfiaram da síndrome de West (uma forma de epilepsia). Desde então, Sophia já usou três tipos de anticonvulsivos. O melhor resultado foi com o último, o mais difícil para conseguir pelo Programa de Medicamentos Excepcionais, conhecido como Alto Custo. Em duas semanas, as convulsões sumiram. Não consegui o remédio. Comprei por três meses. Cada caixa custou cerca de R$ 200. Depois, por alguma razão que não conseguiram explicar, as convulsões cessaram. Cada pequena conquista é muito comemorada. Há duas semanas dei duas colheradas de suco de melancia para Sophia. Foi o primeiro alimento que ela provou. No dia seguinte, tentei dar um de melão, e ela cuspiu. Minha sobrinha de seis anos viu e me perguntou se fiz o mesmo com ela. Em sua inocência, ela acha que também já fez uma cirurgia para receber comida por uma sonda. Minha filha faz acompanhamento com nove médicos do SUS em sete locais espalhados pela cidade de São Paulo. Sophia tem prioridade na fila de atendimento, mas essa fila prioritária é gigante. Tudo demora. É cansativo e preocupante. Há pouco ela conseguiu uma vaga para fazer fisioterapia uma vez por semana. Antes ela ficava paralisada. Agora, movimenta-se, ergue os braços, tem mais firmeza no tronco. A próxima batalha é conseguir órteses para os pés dela. Como os membros são tortos, ela não tem firmeza para caminhar. Fiz o pedido, mas não sei quanto tempo vai levar para o equipamento chegar. Tem dias que penso que não sou uma boa mãe porque não consigo fazer o melhor por ela. Ainda não descobri por que a Sophia nasceu assim. Só consegui indicação para um geneticista na semana passada, depois de insistir muito com vários médicos. Preciso fazer um exame. O hospital me disse que, por conta de cortes de orçamento, não poderá fazer. Pedi então à UBS perto de casa, mas não sei se vou conseguir. Não sei quanto minha filha, hoje com um ano e quatro meses, vai progredir nem quanto vai viver. Parei de perguntar porque cansei de opiniões pessimistas. Cada vez que ela fica doente, choro e me pergunto se a hora dela chegou[146].

 

Esse depoimento demonstra os vários tipos de dificuldades enfrentados pela mãe e pela criança na tentativa de conviver bem com a doença. A falta de estrutura da Saúde Pública para lidar com a síndrome e a falta de informação e preparo dos profissionais restam evidentes nesse relato.

 

8.3.3- Caso de Marcelli Andreza Xavier da Silva, mãe de bebê portadora da síndrome

 

O caso de Marcelli, de 39 anos, mãe de Marina, portadora de microcefalia, traz também o relato do despreparo da saúde e a falta de informação para atender a um bebê microcefálico.

Marcelli Andreza Xavier da Silva, em entrevista concedida a Samantha Lima, repórter da Época, narra: “quando levo a menina ao posto de saúde, ninguém me dá informações ou encaminha para algum tipo de assistência. Os técnicos de saúde até têm medo de vaciná-la” [147] e complementa que: “o pior é a falta de informação e de apoio” [148].

Segue na íntegra a entrevista:

 

  • Marina nasceu há três meses e foi diagnosticada com microcefalia. Ela também tem artrogipose, um problema congênito na articulação do joelho que vem sendo associado à zika. A chegada de nossa bebê encheu a casa de um amor que não imaginávamos que existisse. Mas a missão de cuidar dela é dificultada pela falta de informação e de apoio. Tenho 39 anos. Fui mãe muito cedo, aos 14 anos, idade que minha terceira filha tem hoje. As duas mais velhas têm 25 e 22 anos. Tenho um neto de 4 anos. Ter filhos não fazia mais parte dos meus planos. No fim de 2014, porém, tive de interromper a pílula anticoncepcional para um tratamento de varizes. Foi nessa época que engravidei de Marina. Com oito semanas de gestação, eu e meu marido decidimos passar alguns dias de férias na casa de minha mãe, em Natal, onde nasci. Lá, tive um pouco de febre e senti muita fraqueza. Mas o que me deixou assustada foram as manchas vermelhas que surgiram no meu corpo. Procurei, então, uma clínica particular, onde encontrei várias pessoas com o mesmo quadro. Temi que fosse dengue, mas a suspeita era de chikungunha. Perguntei ao médico se havia algum risco para o bebê e ele não soube responder. De volta ao Rio, continuei preocupada. Meu temor confirmou-se quando fiz a ultrassonografia morfológica, com 20 semanas de gestação. Meu marido estava trabalhando, então decidi levar minha filha mais nova, que estava doida pra ver sua “boneca”. Depois de três gestações, e por ser da área de saúde (Marcelli é técnica em enfermagem), eu conseguia entender alguma coisa do que aparecia no monitor. Tudo parecia bem formadinho, até que o médico começou a examinar a cabeça do bebê. Em silêncio, ele arrastava o equipamento da cabeça pra coluna, ia e voltava. Olhando para a tela, eu percebi um espaço vazio no crânio da bebê. Perguntei se tinha algo errado. Ele disse: “está vendo que estou demorando? Ela está com um ventrículo aumentado no cérebro”. Na hora, ele suspeitou de hidrocefalia (má-formação em que o bebê tem água no crânio). A associação da virose com a microcefalia ainda não tinha sido feita. As lágrimas começaram a cair dos meus olhos e dos da minha filha. Quando saí de lá, senti o chão abrir-se debaixo de mim. Liguei para meu marido, chorando. Ele deixou o trabalho, no Hospital da Aeronáutica, onde trabalha como enfermeiro, e veio me ver. Fui orientada a repetir a ultrassonografia, em outra clínica particular, mais renomada. Vários médicos se juntaram na sala para acompanhar o exame, e lá mesmo, começaram a discutir o caso, como se fosse uma aula. Concluíram que era microcefalia. E eu ali, com minha bebê na barriga e sendo ignorada por eles, ouvindo que ela poderia nascer assim, poderia nascer assado. Sensibilidade zero. Senti-me um lixo. Foi horrível. Fiz e refiz duas vezes vários exames para identificar doenças como toxoplasmose, rubéola, citomegalovírus e HIV, que pudessem ser associados à microcefalia. Todos tiveram resultados negativos. Não tomei vacinas antes ou durante a gestação. Fiz um exame de rastreamento genético que descartou problemas hereditários. Evangélica, dividia a angústia com amigas da igreja. Juntas, orávamos para o bebê vir com saúde. Meu marido preferia não tocar no assunto. Eu o via indo ao banheiro chorar. Os amigos comentavam como ele estava triste. Aos poucos, nos conformamos. Ninguém engravida pensando em ter um filho com problema. Eu pensava em como seria o futuro dela, se teria autonomia. Fui buscando força dentro de mim, sempre pensando que ela podia me surpreender, podia ser melhor do que o que as pessoas ou a internet falavam. Marina nasceu no final de outubro, com 39 semanas de gestação, de cesárea, no Hospital da Aeronáutica. Seu perímetro cefálico era de 29 centímetros [abaixo de 32 centímetros a criança é considerada microcéfala]. Com dificuldade para respirar, ela não chorou e foi levada para UTI, onde ficou por dez dias. Como ninguém sabia por que ela tinha a cabeça pequena, fui orientada a procurar um neurologista. Naquela época, os casos de microcefalia ainda não haviam sido associados à zika. Começamos, então, a peregrinação para buscar as causas do problema, entender quais eram os tratamentos possíveis, fazer todos os exames – eletroencefalogramas, ressonâncias, tomografias, e, agora, a busca pela fisioterapia. Só conseguimos entender o que poderia ter acontecido quando o Ministério da Saúde divulgou a possível relação da zika com a microcefalia. O anúncio do governo e, agora, a decretação de emergência mundial para a microcefalia em nada mudaram nossas vidas. Continuamos perdidos. Quando levo a menina para o posto de saúde para ser vacinada, ninguém me aborda para dar informações, ou para encaminhar para qualquer programa de acompanhamento ou de assistência. Pelo contrário, os técnicos de saúde até têm medo de vacinar a menina. Por sermos da área médica, eu e meu marido procuramos informações aqui e ali. Soubemos por um amigo que a rede Sara está recebendo alguns casos. Entrei na internet e agendei a primeira consulta. Estou muito esperançosa que eles cuidem de Marina. Vai facilitar um pouco nossa vida se pudermos concentrar tudo o que ela precisa em um só lugar. Por orientação do pediatra, já começamos a fisioterapia, mas sabemos que ela precisa de mais do que tem recebido.  Enquanto isso, a família toda virou fisioterapeuta. A irmã mais velha movimenta as articulações da menina. A mais nova brinca com ela como se fosse uma boneca. Ela não chora tanto, mas, quando chora, é muito alto. Ela é brava demais, e chora a noite toda. Marina mama normalmente. Teve de largar o peito porque desenvolveu alguma reação ao leite. Tivemos de comprar leite especial. Mas ela já recuperou as curvas de peso e altura para a idade. Os testes visuais e auditivos não indicaram problemas. Ela sorri, quando brincamos com ela, e se assusta com barulhos. Ela só se perde às vezes, quando a gente chama e ela não reage. É diferente das outras filhas. Ela deve operar do joelho quando tiver seis meses. Soube que algumas amigas de infância, em Natal, tiveram bebês com microcefalia. Minha irmã, que mora lá, diz que elas estão completamente sem assistência, e sem saber como estimular seus bebês. Eu abandonei todos os grupos de WhatsApp. Fiz laqueadura de trompas, para eliminar a possibilidade de ter outro filho. Não posso ter nada que desvie a atenção de que Marina precisa. Eu e Eduardo pensamos diferente a respeito do futuro dela. Ele é mais cauteloso, apega-se ao que vê. Diz que talvez ela não andará. Eu creio num Deus que tudo pode. Não aceito que ela não andará. Ela será igual a qualquer pessoa, no que depender de mim. Não permito um futuro com dificuldade e, se houver, haverá também superação. Não entro na guerra para perder. Uma coisa ruim é ter de viver com a pena e a crueldade das pessoas. Mas já tenho resposta para tudo. Tem gente que me diz ‘coitadinha’. Eu respondo: coitada de você, porque esta criança vai surpreender o mundo. Outros me lembram que a criança vai ser a vida inteira dependente. Eu digo que, sim, como toda criança. Depois, é levanta-te e anda. Recomeçar a vida com um bebê pequeno em casa, com choros durante a madrugada, noites mal dormidas e, agora, a incerteza, não é fácil. Mas Marina veio nos ensinar a nos amarmos mais, não só no ambiente familiar. Encontrei amor onde nunca imaginei, amigos de oração, de trabalho. Uma vizinha fez uma promessa, de ficar um mês sem comer doces, se a bebê nascesse bem. Meu Deus, como cresci nesses dias! Sempre há alguém que precisa mais do que a gente. Minha filha é tudo e mais um pouco. Ela encheu nossa casa de amor, e todos nós mudamos por esse amor. Isso é demais.

 

 

8.3.4- Caso de Simone Tavares, mãe de duas meninas com microcefalia

 

Simone Tavares, mãe de duas meninas portadores da síndrome, relata as dificuldades do dia a dia e do preconceito enfrentado pelas filhas.

Segue o relato na íntegra:

 

  • Quando minha filha mais velha nasceu, há 20 anos, nem se falava em microcefalia. No teste do pezinho todos os exames deram negativo. Ela nasceu prematura e não me falaram nada no hospital. Fiz a primeira consulta de rotina quando ela tinha um mês. Só então soube do diagnóstico. Foi um choque. No posto de saúde, falaram que dificilmente ela iria andar e falar. "Vai ser retardada", foi exatamente o que eu ouvi. Eu criei a Patrícia praticamente no escuro e aprendi o que é a síndrome no dia a dia. Decidi engravidar de novo depois de seis anos e, com cinco meses de gestação, descobri que Adriana, a minha segunda filha, também tinha microcefalia. Eu já vivia a síndrome, então o medo foi bem menor, a aceitação foi bem mais fácil. Desde o início da gestação parece que eu sabia que ela também iria nascer com a doença. Não me assustei, porque já tinha consciência de que não era uma sentença de morte. Lógico que fiquei revoltada: "Ai, meu Deus, por que isso aconteceu comigo de novo?" Não pensei em aborto, até porque eu sabia que pessoas com microcefalia podem viver bem em sociedade. A Patrícia é mais sentimental. Ela vê as notícias e diz que tem muita dó das "crianças que as mães não querem que nasçam". Para as mulheres grávidas que estão sendo diagnosticadas com o zika, eu digo que esperem e deem a oportunidade de a criança nascer. Chega a ser muito egoísta da parte dessas mães. Elas estão dizendo ao mundo que não vão amar um filho que não é perfeito. A criança com necessidades especiais traz uma paz tão grande para dentro da família e um entendimento tão grande da vida... Eu não tirei o direito das minhas filhas de nascerem. Eu poderia ter interrompido a segunda gestação e pensar: "Não, eu já tenho uma criança com microcefalia, não quero outra". Mas não me cabe decidir quem vai nascer. Acredito que elas estejam tão bem como hoje, porque eu parei a minha vida para viver a vida delas. Essas crianças precisam de um tratamento intensivo e de terapias, e chega uma época em que é preciso fazer uma escolha. A opção que eu fiz foi ficar com elas, agradeço ao meu marido por essa possibilidade. Durante 20 anos, fizemos tudo de ônibus. Eu nunca tive carro. Eram três, quatro ônibus todo o dia. Levantávamos cedinho e chegávamos à noite em casa. Eu andava nas ruas com uma mochila e marmita, e comíamos na rua no intervalo entre uma terapia e outra. Foram anos bem difíceis, mas eu vejo que teve resultado. Apenas no ano passado, depois de ganhar uma ação contra o INSS, que se negou a pagar um benefício, consegui comprar um carro. Além disso, tem o preconceito, que é óbvio, até mesmo dentro da própria família. O ser humano não aceita o diferente. O diferente causa medo. O olhar das pessoas é o que machuca mais. Já chegou ao cúmulo de as pessoas pegarem na cabeça delas e dizer: "Nossa, mas é muito pequena!" Essa barreira só é quebrada no dia a dia. A Patrícia sempre reclamou de não ter amigas. No recreio, ninguém queria ficar perto dela. Conversei com a coordenação da escola, e eles começaram a fazer um trabalho de inclusão. Começou a colocá-la em grupinhos para estudar e fazer trabalho junto. Durou um ano para entenderem que ela não ia morder, não ia passar doença e que ela uma criança como eles. Hoje, ela já está no nono ano, encerrando o ensino fundamental, com essa turminha que no início ficava um pouco arredia com ela. Hoje são amigos que a protegem caso alguma outra criança mexa com ela. As limitações das meninas são cognitivas. Elas não aprenderam a ler, nem a escrever, nem a fazer contas. Elas estão na escola com um conteúdo adaptado em nível de ensino de pré-escola e têm o acompanhamento de um professor auxiliar. Já no esporte, tiram os desafios de letra. Elas participam de competições de atletismo da Apae e de paragincanas da escola regular. No ano passado, a Adriana representou o nosso estado [Mato Grosso do Sul] nas olimpíadas nacionais da Apae em Natal. Elas participam de todas as modalidades: corrida, lançamento de dardos e polibat, um esporte adaptado parecido com o tênis de mesa. O pai fez até um quadro de medalhas. Cada uma conquistou mais de 30. Elas viajam para as competições sozinhas, apenas com professores e colegas. Nem todas as crianças têm essa oportunidade[149].

 

 

8.4 – Relato de aborto por microcefalia em hospital privado

 

Médico, que não quis ser identificado, relata caso de aborto por microcefalia em hospital privado. Segue noticiário publicado no site da “Folha de São Paulo” no dia 10/01/2016:

 

  • Com 12 semanas de gestação, Joana (nome fictício) foi infectada pelo vírus zika. Sua cidade, no interior da Bahia, registrou um surto da doença em março de 2015. Na 30ª semana, um ultrassom morfológico mostrou que o feto tinha graves lesões cerebrais, como dilatação dos ventrículos (cavidades), calcificação e microcefalia. Diante do prognóstico de uma vida de muita limitação, ela o marido decidiram interromper a gravidez. O obstetra particular que a atendia desde o início da gestação indicou um outro colega para fazer o procedimento. No consultório, foi aplicada uma injeção de cloreto de potássio no coração do feto. Com o diagnóstico de "óbito fetal", Joana foi levada a um hospital privado. Lá recebeu medicação para induzir o parto normal. Dois dias depois, ela recebeu alta. A história foi relatada à Folha pelo obstetra de Joana. "As lesões cerebrais eram gravíssimas, a criança teria sérios problemas físicos e mentais. Eles [Joana e o marido] não se arrependeram da decisão", diz o médico, que não quer ser identificado. Também na condição de anonimato, outros dois obstetras que atuam na rede privada de Pernambuco e Paraíba relatam situações parecidas. Os casos configuram crime contra a vida. A gestante pode sofrer pena de detenção de até três anos. Já os médicos podem ser condenados a reclusão de até quatro anos, além de perda do registro profissional. Para especialistas, casos de feticídio (morte provocada do feto) por microcefalia podem estar ocorrendo de forma isolada e clandestina. "Pessoas que têm recursos e acesso à assistência podem fazer o aborto, como já fazem em outras situações, até para síndrome de Down. Mas ninguém fica sabendo. Para quem tem dinheiro no Brasil, as leis são diferentes", afirma o ginecologista Olímpio de Moraes, professor na Universidade de Pernambuco[150].

 

 

8.5 – Decisão de Juiz que negou pedido de aborto de feto com microcefalia

 

O Juiz de Direito Leonardo Fleury Curado Dias, da 4° Vara Criminal de Aparecida de Goiânia, indeferiu, dia 17 de março de 2016, o pedido de uma gestante para interromper sua gravidez de aproximadamente 27 semanas de bebê portador de microcefalia.

Em sua decisão o magistrado distingue microcefalia de anencefalia e ressalta o direito do nascituro de ter sua vida preservada.

A seguir decisão do juiz:[151]

 

  • ***, devidamente qualificada nos autos, impetrou, via procurador constituído, habeas corpus preventivo, com pedido de liminar, objetivando a interrupção de sua gravidez, de aproximadamente 27 (vinte e sete) semanas, alegando, em suma, que o feto gerado apresenta microcefalia, associada a alterações do sistema nervoso central, fato que lhe acarretará grave sofrimento. Após discorrer sobre o direito que entende aplicável à espécie, requer, em sede de liminar, a expedição de salvo conduto à impetrante para interromper sua gestação, estendendo-se os efeitos do salvo conduto para toda a equipe médica, de enfermagem e para quaisquer outros que, porventura, atuem nos procedimentos necessários ao feito, e expedição de alvará autorizando a realização da cirurgia pelo sistema Único de Saúde (SUS) e/ou convênio a que a paciente possa vir a utilizar. No mérito, requer que seja deferido o writ e mantidos os provimentos acautelatórios. Juntou documentos (fls. 22/37). Ouvido, o Ministério Público manifestou-se desfavorável ao pedido (fls. 46/49). É o relatório. Decido. Como cediço, as questões que abrangem o tema do aborto são tempestuosas e vem sempre à tona a repugnância ética pelo procedimento, que é considerado um ato atentatório contra a vida. Assim, a análise do presente pedido deve ser feita de forma cautelosa, dentro dos parâmetros legais. O legislador ressalvou algumas hipóteses do aborto não incriminadas, tais como: o aborto necessário ou terapêutico, ou seja, aquele de comprovado risco de morte para a mãe, e o aborto sentimental, este decorrente de gestação resultante de estupro. Há, ainda, o entendimento jurisprudencial, que pacificou a possibilidade da interrupção da gestação de feto anencéfalo. Assim, não ocorrendo nenhuma dessas hipóteses, configura-se a prática da interrupção da gestação, o crime de aborto (artigos 124 a 128 do Código Penal). Trata-se o caso em tela de microcefalia associada a outras alterações não esclarecidas (fl. 23), não podendo ser confundida ou a questão, tratada como o caso de anencefalia. Importante esclarecer, segundo conceitos médicos, a distinção entre microcefalia e anencefalia. A microcefalia é uma condição neurológica em que a cabeça e o cérebro da criança são significativamente menores que o normal para sua idade, o que prejudica o seu desenvolvimento mental. Já a anencefalia é caracterizada pela ausência total ou parcial de encéfalo e da caixa craniana do feto. O prognóstico de um bebê com anencefalia é de algumas horas ou dias de vida, não havendo condição de sobrevida. Porém, no caso da microcefalia, apesar de prejudicado o desenvolvimento mental da criança a mesma sobreviverá. Veja-se que o próprio Laudo Médico de fl. 25 menciona que há algumas alterações a serem esclarecidas no período pós- natal ou seja, indicação de que a criança virá ao mundo com vida. Pelo que consta da documentação juntada, não é possível concluir que o caso traz sérios riscos de vida a gestante ou a criança. Constata-se, de fato, que há a microcefalia e outras alterações a serem esclarecidas, porém, não pode estas alterações, não esclarecidas, servirem de base para autorizar o pedido, muito menos pela microcefalia, em que haverá vida após o parto, ressalvadas dificuldades cognitivas, motoras e de aprendizado do recém-nascido. Portanto, a alegação da impetrante, de que esteja carregando “...dentro de si feto sem qualquer chance de sobrevivência...” (fl. 08), não prospera. Casos de alterações e imperfeiçoes no feto, não podem, sempre, justificar uma situação para o aborto, vez que com este raciocínio estaríamos na busca pela criança perfeita. Ressalto que não está em discussão o direito da gestante e, sim o do nascituro. Entretanto, não se nega os transtornos advindos à mãe, o sofrimento e a dor que, provavelmente, a acompanharão durante toda sua existência. Contudo, a “VIDA”, por menor que seja e de que forma for, deve ser preservada. Diante de todo o exposto, indefiro o pedido liminar e, no mérito, denego a ordem impetrada. Sem custas processuais. Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos. Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Aparecida de Goiânia,17 de março de 2016. Leonardo Fleury Curado Dias. Juiz de Direito (grifei) [152].

 

 

Conclusão

 

Ao longo do estudo foi abordado o tema do aborto, primeiramente, sob uma perspectiva ampla, considerando o aspecto histórico e sua situação no direito brasileiro vigente, para depois, num segundo momento, analisar a questão do aborto em casos de microcefalia.

Foi analisada também a problemática do aborto eugênico e a possibilidade de abortamento em casos de anencefalia.

Foram apresentados relatos de uma pessoa portadora de microcefalia e de mães de crianças portadoras da doença. Restou evidenciado o despreparo da Saúde Pública para atender às necessidades de quem sofre com a síndrome, além de outras dificuldades enfrentadas por quem convive diariamente com a microcefalia.

A ligação entre o vírus da zika e a microcefalia é inédita e vem sendo estudada em pesquisas científicas mundiais. Todavia, ainda não se sabe como ocorre exatamente a atuação do vírus no organismo humano e como se dá a infecção do feto.

No Brasil os estudos vão sendo desenvolvidos e aprimorados conforme aumentam os registros de nascimentos de bebês com a doença.

A desinformação e as incertezas quanto ao surto de microcefalia tem gerado uma explosão de abortos clandestinos. Esse aborto, na maioria das vezes, vem acompanhado de medo e insegurança de quem não sabe como lidar com a síndrome.

A desinformação, de certa forma, acompanhou também o início deste trabalho que apesar da dificuldade de obter material bibliográfico, como doutrina e julgados, por exemplo, alcançou na leitura de sites e periódicos eletrônicos alguma compreensão sobre como a microcefalia afeta a vida de quem vive e convive com ela.

Com o presente estudo e à luz das informações com ele obtidas, conclui-se que microcefalia não se equipara à anencefalia para justificar o aborto.  

A descriminalização do aborto é dilema dos mais sensíveis, pois envolve conflito legítimo em que se busca proteger bens jurídicos presentes nos dois lados da discussão.

Em se tratando de microcefalia, pôde-se perceber que na maioria dos casos, a anomalia é compatível com a vida extrauterina e a criança, nessa condição, tem expectativa de vida semelhante a de outras crianças, exigindo, no entanto, cuidados especiais para melhorar sua qualidade de vida, como por exemplo, fisioterapia, fonoaudiologia etc, que dependerá do grau da síndrome.

Em suma, microcefalia não é uma patologia letal e o feto, na maioria dos casos até agora registrados, desenvolve-se e consegue ter uma vida relativamente normal, dentro de suas limitações. 

De fato, ainda não há relatos de pessoas com microcefalia, relacionado ao vírus zika, que tenham atingido a maioridade visto que casos da síndrome provocada pelo vírus são recentes.

No entanto, os casos existentes de quem vive com a doença demonstram que é possível ter uma vida digna e saudável.

Dessa forma, pessoas com microcefalia merecem respeito e proteção por parte do Estado. Buscar abreviar a existência de crianças com a síndrome, por meio do aborto, definitivamente não condiz com o que se espera de uma sociedade em evolução.

 

__________________________

 

[1] MORI, Maurizio. A moralidade do aborto: sacralidade da vida e o novo papel da mulher. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 17.

[2] MORI, 1997, p. 18.

[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Especial. Dos Crimes contra a pessoa a dos Crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212). 12 Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 91.

[4] BRASIL, Código Civil. Lei n° 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 05/04/2016.

[5] BRASIL, Código Penal. Decreto Lei n° 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm Acesso em: 05/04/2016

[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. Dos Crimes contra a pessoa. 12° ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 394.

[7] BRASIL, Código Penal. Decreto Lei n° 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm Acesso em: 05/04/2016

[8] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: Parte Especial, Vol II. Artigos 121 a 154-B do Código Penal. 12° Ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2015, p. 242.

[9] TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo. 2° Edição- Revista e Atualizada. Curitiba: Juruá, 2008, p. 74.

[10] Idem, p. 59.

[11] CAPEZ, 2012, p. 142.

[12] SANCHES, Rogério. Manual de Direito Penal, Parte Especial (arts. 121 ao 361), Vol. Único, 7° ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 92.

[13] GRECO, Rogério. 2015, p.246.

[14] MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado, Vol. 2, Parte Especial (arts. 121 a 212), 7° ed. rev., atual. e ampl.- Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015, p. 102-103.

[15]  Idem, p. 103.

[16] SANCHES, Rogério. Manual de Direito Penal, Parte Especial (arts. 121 ao 361), Vol. Único, 7° ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 92 apud HUNGRIA, 1958, p. 312.

[17] CAPEZ, Fernando, 2012, p. 143

[18] SANCHES, Rogério. Manual de Direito Penal, Parte Especial (arts. 121 ao 361), Vol. Único, 7° ed. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 94 apud PIERANGELI, 2005, p. 121-122.

[19] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Especial, Vol. II, Arts. 121 ao 154-B, 12° Ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2015, p. 246 apud BRUNO, 1976, p. 173.

[20] GRECO, 2015, p. 248.

[21]TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo. 2° Edição- Revista e Atualizada. Curitiba: Juruá, 2008, p. 21.

[22]CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Parte Especial: Dos crimes contra a pessoa, dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 121 a 212). São Paulo: Saraiva, 2012, p. 146.

[23]NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1991, v. 2 , p. 62.

[24]TESSARO, 2008, p. 43.

[25]Idem, p. 44.

[26] CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexualidade e transplantes. 2. ed., ver. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 32.

[27] TESSARO, 2008, p. 46-47 apud DIP, Ricardo Henry Marques. Uma Questão Biojurídica Atual: a autorização judicial de aborto eugenésico- alvará para matar. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 85, n. 734, p. 527 dez. 1996.

[28] TESSARO, 2008, p. 47 apud FRIGÉRIO, Marcos Valentin. Aspectos Bioéticos, Médicos e Jurídicos do Aborto por Anomalia Fetal Grave no Brasil. Relatório final apresentado a Fundação Mc Arthur, p.44.

[29] SANCHES, 2015, p. 94.

[30] MASSON, 2015, p. 105.

[31] CAPEZ, 2012, p.146.

[32] Idem.

[33] Idem.

[34] Idem.

[35] SANCHES, 2015, p. 94.

[36] CAPEZ, 2012, p. 146.

[37] MASSON, 2015, p. 105.

[38] MASSON, 2015, p. 105.

[39] MASSON, 2015, p. 106

[40] MASSON, 2015.

[41] MASSON, 2015, p. 106.

[42] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. Parte Especial, 7° ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2011, p. 661 apud LIMA, Carolina de Souza. Aborto e Anencefalia, p. 169.

[43] PIERANGELI, José Henrique. Aspectos Controvertidos nos crimes contra a vida: anencefalia, In: Direito Penal e Processo Penal, Porto Alegre: Sapiens, 2010, p. 106.

[44] GRECO, 2015, p. 260.

[45] SANCHES, 2015, p. 95.

[46] Idem.

[47] GRECO, 2015, p. 260

[48] BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação. Pedido de interrupção de gestação (aborto). Feto portador de artogripose. Apelação Crime Nº 70056632276. Segunda Câmara Criminal. Isolete Cristiana Ferreira x Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Marco Aurélio de Oliveira Canosa. Julgado em 24/10/2013.

[49] Idem, p. 09.

[50] BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação. Pedido de interrupção de gestação (aborto). Feto portador de artogripose. Apelação Crime Nº 70056632276. Segunda Câmara Criminal. Isolete Cristiana Ferreira x Estado do Rio Grande do Sul. Relator: Marco Aurélio de Oliveira Canosa. Julgado em 24/10/2013.

[51] Idem, p. 25.

[52] Idem.

[53] BRASIL, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Crime Nº 70048009773, Segunda Câmara Criminal, Relator: Marco Aurélio de Oliveira Canosa, Julgado em 12/04/2012.

[54] Idem, p. 11.

[55] Idem, p. 34

[56] Idem, p. 42 e 43.

[57] TORRES, José Henrique Rodrigues. Aborto e Constituição. Coleção para Entender Direito. 1° Ed. São Paulo: Estúdio Editores, 2015, p. 08.

[58] Idem, p. 08 e 09.

[59] TORRES, 2015, p. 09.

[60] Idem, p. 09.

[61] TORRES, José Henrique Rodrigues. Aborto e Constituição. Coleção para Entender Direito. 1° Ed. São Paulo: Estúdio Editores, 2015, p. 10, apud AZEREDO, Sandra e STOLCKE, Verena. Direitos Reprodutivos. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1991.

[62] SARMENTO, Daniel e PIOVESAN, Flávia. Nos limites da vida: Aborto, Clonagem Humana e Eutanásia sob a Perspectiva dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2006, p. 207.

[67] TORRES, 2015.

[68] TORRES, 2015, p. 11.

[69] TORRES, 2015, p. 12.

[70] TORRES, 2015.

[71] TORRES, 2015, p. 18.

[72] Idem, p. 17 e 18, apud BARATTA, Alessandro. Princípios del Derecho Penal Mínimo: para una teoria de los derechos humanos como objeto y limite de la ley penal. Doctrina Penal, ano 10, n. 37-40. Buenos Aires: Depalma, 1987, p. 628-629.

[73] TORRES, 2015, p. 18 apud www.ccr.org.br/livros-revistas-detalhe.asp?cod=32. Acesso em 27/04/2014.

[74] TORRES, 2015, p. 18 apud Um Milhão de Abortos/Ano Brasil: O Ministério da Saúde estima que são realizados mais de um milhão de abortos por ano apenas no Brasil. Ministério da Saúde. A Magnitude do Aborto no Brasil: Aspectos Epidemiológicos e Sócioculturais. Abortamento Previsto em Lei em Situações de Violência Sexual. Brasília: Ministério da Saúde, 2008, p. 8-9.

[75] SARMENTO, Daniel e PIOVESAN, Flávia. Nos limites da vida. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2006, p. 207.

[76] Idem.

[77] TORRES, 2015, p. 20 apud GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. Descriminalizar é Salvar Vidas. Boletim IBCCRIM. São Paulo, vol. 13, n. 151, 2005.

[78] TORRES, 2015. P. 25.

[79] Idem, p. 26.

[80] TORRES, 2015.

[81] Idem.

[82] TORRES, 2015, p. 29 apud FIGUEIREDO, Regina. Contracepção de Emergência no Brasil: necessidade, acesso e política nacional. Disponível em: www.ipas.org.br/arquivos/10anos/Regina_CE2004.doc. Acesso em 20.10.2008.

[83] TORRES, 2015, p. 30 apud FAGUNDES e BARZELATTO, p. 67.

[84] TORRES, 2015, p. 30 apud CORREA, Sonia e ÁVILA, Maria Betânia. Direitos Sexuais e Reprodutivos- Pauta Global e Percursos Brasileiros. In: Elza Berquó (org.), Sexo e Vida: Panorama da Saúde Reprodutiva no Brasil. Campinas: ed. Unicamp, 2003, p. 43.

[85] TORRES, 2015.

[86] TORRES, 2015, p. 31 e 32.

[87] TORRES, 2015, p. 32 apud A morte materna e os direitos humanos, p.46.

[88] TORRES. 2015, p. 33 e 34.

[89] Idem, p. 34 e 35.

[90] TORRES, 2015.

[91] TORRES, 2015, p. 38 apud FEGHALI, Jandira. Aborto no Brasil: obstáculos para o avanço da legislação.

[92] TORRES, 2015.

[93] TORRES, 2015, p. 43.

[94] Idem, p. 44.

[95] Idem.

[96] Idem, p. 45.

[97] TORRES, 2015.

[98] TORRES, 2015, p. 46 apud SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995, p. 108.

[99] TORRES, 2015, p. 47.

[100] TORRES, 2015, p. 48 apud KARAM, Maria Lúcia. Proibições, crenças e liberdade: o debate sobre o aborto, p. 167 a 179.

[101] TORRES, 2015, p. 61.

[102] FAUNDES, Aníbal e BARCELATTO, José. O drama do aborto: em busca de um consenso. São Paulo: Editora Komedi, 2004, p. 204.

[103] TORRES, 2015.

[104] DIAS, José Francisco de Assis. Aborto? Sou contra! Os argumentos anti-abortistas de Noberto Bobbio (1909-2004). Maringá-PR: Humanitas Vivens, 2011, p. 43.

[105] DIAS, 2011, p. 43.

[106] Idem, p. 57.

[107] Idem.

[108] DIAS, José Francisco de Assis. Aborto? Sou contra! Os argumentos anti-abortistas de Noberto Bobbio (1909-2004), p. 130 apud N. BOBBIO, “Due paradossi storici e uma scelta morale (1954), p. 43-44.

[109] DIAS, 2011, p. 130.

[110] TESSARO, 2008.

[111] TESSARO, 2008, p. 64-65 apud BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios da Ética Biomédica. Tradução de Teresa G. Miguel, F. J. J. Gutierrez, Lydia F. Grande. Barcelona: Masson, p. 14.

[112] TESSARO, 2008, p. 65 e 66

[113] TESSARO, 2008, p. 66.

[114] DIAS, 2011, p. 60.

[115] Idem, p. 61.

[116] Idem, p. 62.

[117] Idem, p. 115 apud N. BOBBIO, “II dibattito attuale sulla pena di morte” (1982), p. 210.

[118] DIAS, 2011, p. 115.

[119] Idem.

[120] DIAS, 2015, p. 116 apud N. BOBBIO, “Laici e aborto”, in Corrieri dela Sera, (1981), p. 3.

[121] DIAS, 2011, p. 116.

[122] DIAS, 2011, p. 116- 117.

[123] Com registros na literatura médica desde os anos 1940, foi apenas de seis meses para cá que o zika vírus despertou o interesse do mundo pela associação com o surto de microcefalia no Brasil. Até o último dia 23 de abril de 2016, o país registrava 1.198 casos confirmados, com mais de 7,2 mil notificações para investigação, um número inegavelmente maior que a média de 140 a 170 ao ano desde 2010. Zika vírus e microcefalia: A evolução do surto no Brasil. Informação disponível em: < http://exame.abril.com.br/brasil/ferramentas/zika-virus-e-microcefalia-a-evolucao-do-surto-no-brasil/> Acesso em 09 de maio de 2016.

[124] ROCHA, Ângela e RIESGO, Rudimar. Microcefalia: saiba o que é, o que causa e como identificar. Condição afeta bebês que nascem com a cabeça menor do que a média. Governo identificou relação entre microcefalia e zika vírus. Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/11/microcefalia-saiba-o-que-e-o-que-causa-e-como-identificar.html>. Acesso em: 09 de maio de 2016.

[125] LENHARO, MARIANA. Vírus da Zika: entenda transmissão, sintomas e relação com microcefalia. Vírus foi identificado pela primeira vez no Brasil em abril de 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/12/zika-virus-entenda-transmissao-os-sintomas-e-relacao-com-microcefalia.html> Acesso em: 09 de maio de 2016.

[126] Ministério da Saúde confirma relação entre microcefalia e o vírus da zika. Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2015/11/ministerio-da-saude-confirma-relacao-entre-microcefalia-e-virus-zika.html> Acesso em: 09 de maio de 2016.

[127] De acordo com o Site Portal Brasil, do Governo Federal, não há dúvidas sobre a correlação da contaminação pelo zika e casos de microcefalia, segundo pesquisas. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/governo/2016/02/nao-ha-fragilidade-nas-estatisticas-dos-casos-de-microcefalia-diz-marcelo-castro> Acesso em: 10 de Maio de 2016.

[128] BELTRAME, Beatriz. Entenda o que é microcefalia e quais são as consequências para o bebê. Disponível em: < http://www.tuasaude.com/microcefalia/> Acesso em: 09 de maio de 2016.

[129] Idem.

[130] Especialistas tiram dúvidas sobre zika e microcefalia. Disponível em: < http://www.brasil.gov.br/saude/2016/01/especialistas-tiram-duvidas-sobre-zika-e-microcefalia>. Acesso em: 09 de maio de 2016.

[131] Estudo detalha lesões no cérebro de bebês com microcefalia ligada à zika. Disponível em: < http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/04/estudo-detalha-lesoes-no-cerebro-de-bebes-com-microcefalia-ligada-zika.html> Acesso em 09 de maio de 2016.

[132]Especialistas tiram dúvidas sobre zika e microcefalia. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/saude/2016/01/especialistas-tiram-duvidas-sobre-zika-e-microcefalia>. Acesso em: 09 de maio de 2016.

[133] TESSARO, Anelise. Aborto Seletivo. 2° Ed. Revista e Atualizada. Curitiba: Juruá, 2008, p. 24.

[134] TESSARO, 2008.

[135] Idem, p. 26.

[136] TESSARO, 2008, p. 24.

[137] Microcefalia cria dilema para mulheres: abortar ou não? Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/microcefalia-cria-dilema-para-mulheres-abortar-ou-nao,1034006cbdc21a4ce739974953619b86s85ug1rb.html> Acesso em 11 de Maio de 2016.

[138] DINIZ, Débora. Grávida vítima de zika deve ter direito ao aborto? Vítimas de zika não podem ser forçadas a manter uma gravidez que pode trazer riscos ainda desconhecidos a sua saúde e a de seu futuro filho. Disponível em: <http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/02/gravida-vitima-de-zika-deve-ter-direito-ao-aborto-sim.html> Acesso em: 11 de Maio de 2016.

[139] Idem.

[140] Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2016/02/03/microcefalia-cria-dilema-para-mulheres-brasileiras-abortar-ou-nao.htm> Acesso em: 11 de Maio de 2016.

[141] Ana disponibilizou seu livro na internet no site: <https://issuu.com/xcarolcaceres/docs/livro1> Acesso em 11 de Maio de 2016.

[142] ‘Sou plena, feliz e existo porque minha mãe não optou pelo aborto’, diz jornalista com microcefalia. Disponível em: <http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2016/02/sou-plena-feliz-e-existo-porque-minha-mae-nao-optou-pelo-aborto-diz-jornalista-com-microcefalia.html> Acesso em 12 de Maio de 2016.

[143] Jovem com microcefalia escreve livro e tira diploma de universidade em MS. Disponível em: <http://g1.globo.com/mato-grosso-do-sul/noticia/2015/12/jovem-com-microcefalia-escreve-livro-e-tira-diploma-de-universidade-em-ms.html> Acesso em 12 de Maio de 2016.

[144] Idem.

[145] Microcefalia e Eugenia. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/microcefalia-e-eugenia-8btkuj19zc3b093wgfxiw0c1c> Acesso em 14 de Maio de 2016.

[146] “O médico anotou no exame que minha filha tinha microcefalia”. Disponível em: <http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/12/o-medico-anotou-no-exame-que-minha-filha-tinha-microcefalia.html> Acesso em 12 de Maio de 2016.

[147] O pior é a falta de informação e de apoio”, diz mãe de bebê com microcefalia. Disponível em: <http://epoca.globo.com/vida/noticia/2016/02/o-pior-da-microcefalia-e-falta-de-informacao-e-de-apoio.html> Acesso em 12 de Maio de 2016

[148] Idem.

[149] "Não cabe a mim decidir quem vai nascer", afirma mãe contrária ao aborto. Disponível em: <http://noticias.terra.com.br/brasil/nao-cabe-a-mim-decidir-quem-vai-nascer-afirma-mae-contraria-ao-aborto,c400628d3cde130423de01b91f744b02qi32siwj.html> Acesso em 14 de Maio de 2016.

[150] Alta de microcefalia reacende debate sobre aborto legal. Disponível em: <http://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/01/1727899-alta-de-microcefalia-reacende-debate-sobre-aborto-legal.shtml> Acesso em 14 de Maio de 2016.

[151] O nome da requerente foi omitido para preservar sua intimidade.

[152] BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Processo n°: 201600847581. Disponível em: <http://www.tjgo.jus.br/index.php/consulta-atosjudiciais> Acesso em 14 de Maio de 2016.

 


 

  • Aborto. Microcefalia. Zika Vírus.

Referências

Alta de microcefalia reacende debate sobre aborto legal. Disponível em: <http://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/01/1727899-alta-de-microcefalia-reacende-debate-sobre-aborto-legal.shtml> Acesso em 14 de Maio de 2016.

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Danielle Silveira Arnoni

Advogado - Santa Vitória do Palmar, RS


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