O presente parecer jurídico, de autoria de Gustavo Pereira Coelho Martins e Douglas Bienert, da Comissão de Direito de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná, tem por objetivo tratar da proposta de flexibilização do processo de formação de condutores, ventilada pelo Ministério dos Transportes.
a) Relatório
O Ministério dos Transportes, por intermédio do Excelentíssimo Ministro Renan Filho, de forma pública e notória, vem divulgando proposta para a flexibilização do processo de formação de condutores, sob a justificativa de que o “custo financeiro” para obtenção da CNH – Carteira Nacional de Habilitação no Brasil é muito elevado, ao contrário do que ocorreria em outros países, como por exemplo os Estados Unidos da América e a Inglaterra.
Segundo o Ministério dos Transportes, com base em um cruzamento de dados realizado pela SENATRAN – Secretaria Nacional de Trânsito, o valor expressivo do processo de formação, aliado às inúmeras burocracias e morosidades, são os principais fatores para que quase metade dos proprietários de motocicletas não possuam a licença necessária para pilotar.
Diante deste cenário, portanto, de maneira informal o Ministro Renan Filho anunciou[1] a sua proposta em entrevista à Folha de São Paulo, sustentando que a flexibilização do processo de habilitação seria capaz de legalizar inúmeros condutores que atualmente não dispõe de condições financeiras para obter a CNH. Dentre as principais medidas do pacote de flexibilização, o Ministro anunciou a facultatividade dos CFC’s (autoescolas) no processo de formação de novos condutores, os quais poderiam escolher instrutores autônomos, formados por meio de cursos rápidos na modalidade EAD.
Ainda, de acordo com a aludida proposta, os instrutores autônomos poderiam ministrar aulas práticas em veículos particulares, sem as adaptações exigidas atualmente para os veículos de aprendizagem, como por exemplo os “pedais de duplo comando”, mecanismo utilizado pelos instrutores de CFC’s e examinadores dos DETRAN’s para intervir durante a aula/exame em caso de perigo ou risco de acidente/sinistro.
Por conseguinte, o Excelentíssimo Ministro Renan Filho sustentou que os candidatos à habilitação poderão se reunir em locais privados, como pátios de Igrejas e vias de Condomínios particulares, a fim de desenvolver e treinar suas habilidades, opção que diminuiria o “custo financeiro” para obtenção da CNH.
Recentemente, por intermédio das redes sociais da SENATRAN[2], o Secretário Nacional de Trânsito Adrualdo de Lima Catão reforçou que a formação teórica dos candidatos à habilitação também seria objeto de alteração, na medida em que as atuais aulas presenciais e on line (síncronas) seriam substituídas pelo sistema EAD – Ensino à Distância (assíncrono – aulas gravadas). Inclusive, na mesma oportunidade, o Secretário registrou que o Ensino à Distância também seria utilizado para a formação de instrutores autônomos, diferentemente do atual modelo, que além de aulas teóricas exige o cumprimento de horas de estágio para aprimoramento prático da formação dos educadores de trânsito.
Pois bem. Tal proposta vem sendo objeto de críticas e debates por especialistas e pela sociedade civil, notadamente pelo fato de, aparentemente, não ter sido amplamente analisada nas Câmaras Temáticas de Trânsito do CONTRAN – Conselho Nacional de Trânsito.
Diante do exposto, especialmente em razão de que a proposta em questão apresenta inegáveis reflexos socioeconômicos e para a segurança no trânsito, esta atuante Comissão de Direito de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Paraná, resolveu confeccionar o presente parecer, nos termos abaixo.
É o relatório.
b) Fundamentação
Inicialmente, cumpre esclarecer que nos termos do disposto no artigo 13, da Lei 9.503/1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, o Conselho Nacional de Trânsito é composto por Câmaras Temáticas, que são órgão técnicos compostos por especialistas, com o objetivo estudar, oferecer sugestões e embasamento técnico sobre assuntos específicos para subsidiar decisões do colegiado, in verbis:
As Câmaras Temáticas, portanto, são responsáveis por promover debates técnicos, realizar estudos aprofundados, confeccionar pareceres, propor soluções e diretrizes, avaliar impactos e etc., auxiliando o colegiado na tomada de decisões para implementação de políticas públicas de trânsito e alterações da legislação.
É cediço que, na prática, nem todos os debates ou propostas de alterações na legislação de trânsito passam obrigatoriamente pelas Câmaras Temáticas. Entretanto, por óbvio, com fundamento nos princípios norteadores da Administração Pública, em especial os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, eficiência, motivação e do interesse público, entende-se recomendável que as matérias de alta complexidade técnica ou de grande impacto socioeconômico sejam previamente analisadas pelos especialistas, até mesmo como forma de evitar a politização das decisões.
Importante frisar que as alterações propostas surgem do próprio Ministério dos Transportes e da SENATRAN, órgãos que encontram as Câmaras Temáticas em suas estruturas, assim, diferente de alteração legislativa de iniciativa do Congresso Nacional, nos parece que o acesso ao corpo técnico das Câmaras Temáticas pelos órgãos proponentes das alterações é facilitado.
Nesse sentido, é forçoso reconhecer que a proposta de flexibilização do processo de formação de condutores apresenta grande impacto socioeconômico para o Brasil, seja pelo fato de estar em completo descompasso com a evolução legislativa de trânsito das últimas três décadas, bem como em relação as diretrizes das Organizações Mundiais; seja pela ausência de melhor análise de impactos na saúde e economia, em especial daqueles profissionais diretamente ligados à área.
Entretanto, ao que parece, o anúncio da multicitada proposta não foi precedido de estudo técnico das Câmaras Temáticas, tampouco foi objeto de análise de impacto regulatório por parte da Secretaria Executiva do Conselho, nos termos do que dispõe o artigo 12, inciso XVII, do Regimento Interno do CONTRAN (Resolução 820/2021).
Não obstante a suposta ausência de respaldo técnico, que subsidie uma decisão que melhor atenda ao interesse público, urge destacar que a proposta em questão também não respeitou o escrutínio legal do artigo 7º, também do Regimento Interno, o qual determina as “propostas de normas regulamentares do CTB e as diretrizes da Política Nacional de Trânsito serão submetidas a prévia consulta pública, por meio da rede mundial de computadores, pelo período mínimo de 30 (trinta) dias, antes do exame da matéria pelo CONTRAN”. (grifo nosso)
Logo, embora o CONTRAN seja, em tese, competente para emanar atos normativos regulamentares que flexibilizem o processo de habilitação de condutores, imperioso se faz reconhecer que, com fundamento nos princípios norteadores da atividade pública, em especial o princípio da estrita legalidade, tais atos devem ser necessariamente precedidos de estudo técnico e necessitam seguir os protocolos e diretrizes impostas pela legislação de trânsito, sob pena de restar caracterizado vício de formalidade.
Pois bem. Após sedimentada esta premissa, convém salientar que os temas trânsito e mobilidade urbana são prioritários na agenda mundial. Inclusive, as Nações Unidas – ONU e a Organização Mundial da Saúde – OMS têm desempenhado papéis cruciais na formulação de políticas e diretrizes para reduzir as mortes no trânsito, que são uma das principais causas de mortes prematuras no mundo. Essas organizações reconhecem que os sinistros de trânsito não são "acidentes" inevitáveis, uma vez que podem ser prevenidos com estratégias eficazes e ações coordenadas.
Neste contexto, a ONU lançou duas décadas de ação para a segurança no trânsito (2011-2020 e 2021-2030)[3], com o objetivo de reduzir pela metade o número de mortes e feridos em acidentes de trânsito globalmente. Dentre as diretrizes mundialmente difundidas, merece especial destaque o incentivo à educação e conscientização acerca das normas e condições necessárias para um trânsito mais seguro[4].
Com o objetivo de reduzir a mortalidade no trânsito, muitos países estão investindo em formação e fiscalização mais rigorosa de seus motoristas, o que tem contribuído para a redução desses índices e, consequentemente, melhorado a segurança no trânsito. Como exemplo de sucesso deste modelo de educação continuado e rigoroso, citamos a Alemanha e o Japão, que alcançaram as taxas de 4,0 mortes/100 mil habitantes e 2,5 mortes/100 mil habitantes, respectivamente, enquanto o Brasil apresenta o índice alarmante de 16,6 mortes/100 mil habitantes[5].
É importante frisar que além de uma formação mais rigorosa, esses países investem em educação e conscientização para o trânsito nas escolas, por intermédio de políticas públicas constantes, antes mesmo de o cidadão atingir a idade para participar do curso de formação de motorista.
Já no Brasil, muito embora o artigo 76, do Código de Trânsito Brasileiro, determine que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios deverão promover a educação para o trânsito na pré-escola e nas escolas de 1º, 2º e 3º graus, inclusive com a adoção de um currículo interdisciplinar com conteúdo programático sobre segurança no trânsito, sabe-se que esta não é a realidade. Infelizmente, a grande maioria dos cidadãos só recebem instruções e conscientização sobre normas e segurança no trânsito dentro do centro de formação de condutores, durante o processo para obtenção da CNH:
Diante da ausência de educação de trânsito em todos os níveis de ensino, nos termos do que preconiza o dispositivo legal acima, entendemos indispensável a manutenção das aulas teóricas ministradas pelos CFC’s nas modalidades presencial e on line (síncronas – em tempo real), pois torna o candidato à habilitação um sujeito ativo no aprendizado, uma vez que os educadores de trânsito podem lançar mão de inúmeras ferramentas pedagógicas interativas e dinâmicas, propiciando trocas de experiência, debates críticos sobre fatos e temas atuais, capazes de criar conscientização para o trânsito e moldar comportamentos.
Nos termos da proposta apresentada pelo Ministro dos Transportes, permitir que o ensino teórico (cidadania, meio ambiente, primeiros socorros, direção defensiva, legislação de trânsito e mecânica básica) seja ministrado na modalidade EAD – Ensino à Distância (assíncrono – gravado) é tornar o candidato à habilitação um sujeito passivo das informações, sem senso crítico, capaz de ter êxito no teste do DETRAN, porém, com dificuldade de moldar seu comportamento.
Importante destacar que a educação e qualificação dos condutores é ponto crucial na sinistralidade e mortalidade no trânsito, sendo a conduta humana principal fator contribuinte segundo a OMS[6]. Contudo as propostas veiculadas não parecem trazer em sua análise tal premissa como motivador principal.
Ainda, vale dizer que a ausência de compromisso estatal em relação às políticas pública de trânsito exigidas pelo supracitado artigo e, sobretudo, com as diretrizes estabelecidas pelas Nações Unidas – ONU e a Organização Mundial da Saúde – OMS, somada às nossas características culturais; falta de fiscalização em determinadas regiões; infraestrutura precária das vias públicas; ausência de sinalizações adequadas e de investimento em mobilidade urbana, nos conduz para um índice de mortalidade alarmante.
Ademais, o índice em questão é fruto de inúmeros fatores que necessitam ser analisados e melhorados, não podendo ser atribuído tão somente a qualidade da formação dos motoristas.
É preciso esclarecer que flexibilizar não é sinônimo de desburocratizar, razão pela qual qualquer medida que tenha por objetivo facilitar o “acesso” à CNH deve ser amplamente debatida e precedida de estudos técnicos, nos termos da legislação vigente, preservando a segurança no trânsito e, por conseguinte, a redução do índice de mortalidade.
Por mera argumentação, é válido afirmar que a CNH possui uma inegável função social, promovendo autonomia e inclusão social do cidadão, na medida em que lhe garante melhor acesso ao mercado de trabalho e oportunidades de mobilidade. Sendo assim, é dever do Poder Público criar políticas que viabilizem o acesso à CNH para pessoas de baixa renda, assim como ocorre com inúmeros outros programas sociais de inclusão.
Com vistas a propiciar que pessoas de baixa renda tenham acesso à CNH, grande parte dos Governos Estaduais, a exemplo do Estado do Paraná, bem como o próprio Governo Federal já estruturaram programas sociais, denominados de “CNH Social”, por intermédio dos quais as pessoas elegíveis serão beneficiadas com o custeio público do processo de habilitação[7].
Por isto, não parece crível que, a despeito dos nossos índices alarmantes de mortes no trânsito, justifique-se a substancial flexibilização do processo de formação de motoristas para que pessoas de baixa renda tenham melhor acesso à CNH, quando tal inclusão deve ser buscada por meio de programas sociais específicos, a exemplo da “CNH Social”.
Até porque, os estudos demonstram que após o início da vigência do Código de Trânsito Brasileiro e, consequentemente, do novo modelo de formação de condutores, houve uma substancial queda nas mortes no trânsito a cada 100 mil habitantes. Segundo o estudo[8] “Acidentes de Trânsito no Brasil: Dados e Tendências”, em 1989 o Brasil ostentava o índice de 32,7 mortes por 100 mil habitantes, sendo que atualmente o índice reduziu quase que pela metade (16,6 mortes por 100 mim habitantes), mesmo diante do aumento expressivo da população, do veículos em circulação e, principalmente, do surgimento de hábitos como o uso do telefone durante a condução, responsável por grande parte da sinistralidade.
De outro vértice, sustenta legalização de milhões de motoristas infratores, que dirigem sem a devida licença, depende da facilitação do processo, é reconhecer a ineficiência da Administração Pública no exercício do seu Poder de Fiscalização, preferindo legalizar a “qualquer custo” do que fiscalizar e criar políticas públicas de inclusão para os mais carentes.
É razoável que o Brasil se aproxime de modelos que trouxeram resultados efetivos para outras Nações. Neste sentido, em que pese o Excelentíssimo Ministro Renan Filho tenha trazido à baila o modelo de formação de condutores Norte-americano, que é mais facilitado em alguns Estados, os dados públicos demonstram que este talvez não seja um modelo a ser seguido, uma vez que o índice dos Estados Unidos da América é de 12,9 mortes/100 mil habitantes, muito próximo dos números do Brasil.
Contudo, há de se mencionar que reconhecidamente os Estados Unidos da América possuem melhor infraestrutura viária, com rodovias bem iluminadas e sinalizadas, assim como a notória fiscalização ostensiva. Isto é, deixando de lado as diferenças culturais, é válido concluir que a adoção do modelo de ensino Norte-americano poderá ser capaz de alavancar ainda mais os índices de mortalidade no trânsito em nosso país, notadamente se analisarmos os demais itens da proposta, que contempla a formação de instrutores autônomos por meio de cursos EAD, sem estágio prático; a possibilidade de ministrar aulas práticas em veículos particulares, sem sinalização de aprendizagem e “pedais de duplo comando”; a autorização para realização de aulas práticas de motocicleta em via pública; e a facultatividade dos CFC’s, que atualmente dispõe de corpo docente especializado (ex. Diretor Geral e de Ensino) e rigorosa fiscalização pedagógica.
Por óbvio, tamanha flexibilização do processo de habilitação coloca em risco não somente os candidatos à habilitação e a qualidade do ensino, mas também pedestres, ciclistas e outros condutores, especialmente diante da ausência de habilidade prática dos novos instrutores autônomos e da falta dos “pedais de duplo comando”.
Ao que tudo indica alterações nos procedimentos de habilitação de condutores devem ter como premissa a melhoria na formação e educação, com vistas a redução da mortalidade e sinistralidade, para, em um segundo momento, equilibrar demandas sociais e financeiras. Por mais nobre que sejam as intenções de redução de custos, estas só devem vir após cuidadosa análise da efetiva melhoria da segurança e proteção a vida.
c) Conclusão
Diante de todo o exposto, os autores e a Comissão de Direito de Trânsito, Transporte e Mobilidade Urbana da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Paraná, destacam intensa preocupação com a proposta apresentada pelo Excelentíssimo Ministro dos Transportes Renan Filho, sobretudo pela ausência dos debates técnicos nas respectivas Câmaras Temáticas e da inobservância do escrutínio legal. Tendo em vista que a medida em questão poderá resultar em inegáveis impactos socioeconômicos, em especial no que concerne à segurança no trânsito. Por fim, sugere-se fortemente a realização de estudos técnicos mais precisos, a ampliação dos debates com setores envolvidos acerca da proposta, bem como a submissão do tema as Câmaras Temáticas, para subsidiar decisão que melhor atenda ao interesse público e proteção à vida.
Douglas Bienert
OAB/PR 64.155
Gustavo Pereira Coelho Martins
OAB/PR 47.468