Será que o Refis e outros programas de parcelamento incentivado se caracterizam como um mecanismo de renúncia de receita? Qual seria a importância prática dessa distinção para o orçamento público?
Segundo o tributarista Fernando Facury Scaff , no decorrer dos últimos anos, uma das bases da política econômica dos governos brasileiros (federal, estaduais e municipais) tem sido calcada nas renúncias fiscais, que se caracterizam em redução da carga tributária através de diversos mecanismos como crédito presumido, isenção e redução da base de cálculo, muitas vezes concedidos a empresas específicas, outras vezes a setores inteiros que atuam em determinado segmento econômico.
Mas será que o Refis e outros programas de parcelamento incentivado que existem em nossa Federação se caracterizam como um mecanismo de renúncia de receita? E qual seria a impotência prática dessa distinção para fins do orçamento público?
O Refis, em linhas gerais, constitui um incentivo para os contribuintes quitarem seus débitos, com o resultado esperado de aumentar a receita da Administração. Tal prática é habitualmente utilizada por muitos entes da federação (União, Estados e Municípios) para poder manter o equilíbrio orçamentário previsto nas Leis Orçamentárias.
Não há dúvida que esse conjunto de Refis se insere na política econômica dos governos federal, estadual e municipal de desonerações incentivadas, visando reduzir o estoque de seus créditos e obter mais receita para fazer frente ao superávit primário que se compromete a realizar, inserido como meta fiscal estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) anual. Porém, juridicamente, trata-se de uma singela renúncia fiscal? Quais as normas aplicáveis a estes Refis? Este é o ponto a ser analisado.
No âmbito federal, por exemplo, já foram apresentados vários programas de parcelamento incentivado, que receberam no meio tributário o nome genérico de Refis, embora tenham um título diferente em cada ocasião. O primeiro foi intitulado propriamente de Programa de Recuperação Fiscal - Refis (Lei 9.964/00); o segundo foi denominado de Parcelamento Especial - Paes (Lei 10.684/03); o terceiro recebeu o nome de Parcelamento Excepcional - Paex (MP 303/06); o quarto foi o “Refis da Crise” (Lei 11.941/09), que foi reaberto (5º) sob a alcunha de “Refis da Copa” (Lei 12.073/14), novamente reaberto (6º) com o apelido de “Refis das Eleições” (Lei 12.996, de 18 de junho de 2014) e mais uma vez reaberto (7º) até meados de dezembro (Lei 13.043, de 13 de novembro de 2014).
O conceito de renúncia de receita foi introduzido pelo direito americano em 1967, tendo como base conceitual o conceito de “tax expenditure”, o qual pode ser traduzido como gasto tributário, criado por Stanley Surrey em seu clássico Pathaways toTax Reform.
Em linhas gerais, Surrey descobriu que muitas das normas tributárias em vigor “erodiam” a arrecadação tributária, concluindo que regras legítimas de tributação eram, na realidade, formas obscuras de transferir recursos públicos a determinado grupo de particulares, motivo pelo qual defendeu que deveriam ser claramente previstas na proposta orçamentária o valor gasto com cada norma de benefício tributário para serem comparadas com as demais despesas públicas, criando o conceito de gasto tributário.
Tal conceito foi introduzido pela Constituição de 1988, ao definir em seu artigo 165, parágrafo 6º, que “o projeto de lei orçamentária será acompanhado de demonstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decorrente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza financeira, tributária e creditícia”.
Este conceito foi utilizado pela Lei de Responsabilidade Fiscal em seu artigo 14, ao definir que “a renúncia compreende anistia, remissão, subsídio, crédito presumido, concessão de isenção fiscal."
Portanto, o conceito de renúncia de receita está diretamente ligado ao conceito de benefício fiscal, na medida em que o primeiro conceito é tão somente o enunciado quantitativo dos efeitos financeiros acarretados pelo segundo. Tal conceito exclui a anistia de juros e multas constantes no Refis, uma vez que não prevê qualquer redução de tributos, mas apenas de juros e multa, os quais não são enquadrados no conceito de benefício fiscal.
Destacamos também que a Lei de Responsabilidade Fiscal trata do equilíbrio financeiro do ano corrente, em outras palavras, procura fornecer ferramentas para que não ocorra o chamado desequilíbrio fiscal em determinado exercício financeiro.
Do conceito constitucional e da lei complementar pode-se extrair que juridicamente o artigo 14 da Lei Complementar nº 101/00 (Lei de Responsabilidade Fiscal) em que diz “Art.14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias...” (grifos nossos) deixa margem a uma interpretação mais genérica onde se entende que se houver concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária obrigatoriamente deva existir a estimativa de impacto orçamentário, no entando, podemos fazer 3 observações quanto ao texto da Lei:
I – A parte onde diz “... da qual decorra renúncia de receita” impõe uma condição de que se houver algum prejuízo ao ano corrente deve existir o tal estudo de impacto, e se não houver, não necessita.
II – Quanto à necessidade da estimativa de impacto prevista na Lei de Diretrizes Orçamentárias no que consta a parte que diz “... em que deva iniciar sua vigência...” é algo condicionado ao exercício financeiro da LDO. Como o Programa de Parcelamento Incentivado trata dos débitos dos exercícios anteriores e não do ano corrente, não há que falar em estimativa de impacto, haja vista o Programa versa sobre débitos já inscritos em Dívida Ativa dos exercícios passados. Do mesmo modo o artigo 165 da CF/88 em seu §6º prevê que a LDO deverá constar o efeito gerado nas receitas decorrentes de isenções, anistias, remissões e etc, entretanto, tal ato só se fundamenta em caso de previsão negativa da receita, o que não acontece no presente caso.
III – O §1º do referido artigo salienta que renúncia compreende: anistia, remissão, subsiídio ou isenção de caráter não geral que implique redução discriminada de tributos. Ora, isso não ocorre no presente caso, pois o programa trata apenas da redução das chamadas penalidades pecuniárias (juros e multa) que não se confunde com o tributo propriamente dito. Portanto, por não haver disposição de receita tributária por parte do Município. É importante ressaltar também que o benefício é de caráter geral, ou seja, não faz discriminação.
Através de métodos de interpretação, chega-se à conclusão que o referido artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal prescreve um evento futuro e incerto, vez que o legislador ao colocar no “caput” a palavra decorra frisa que caso não ocorra a chamada renúncia de receita, não há o que se falar em estudo de impacto financeiro nesta hipótese.
Além disso, a multa e os juros têm caráter de sanção, sendo assim, não devendo ser confundido com o tributo devido. Nessa linha, o próprio Código Tributário Nacional nos dá o conceito de tributo em seu artigo 3º em que diz “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”
Segundo o tributarista Ricardo Lobo Torres, o tributo e a penalidade (multa e juros) pecuniária são inconfundíveis, porque aquele deriva da incidência do poder tributário do Estado, já a segunda tem o condão de resguardar a validade da ordem jurídica por meio coercitivo, ou seja, a sanção propriamente dita.
De acordo com Luciano Amaro “A infração enseja a aplicação de remédios legais, que ora buscam repor a situação querida pelo direito (mediante execução coercitiva da obrigação descumprida), ora reparar o dano causado ao direito alheio, por meio de prestação indenizatória, ora punir o comportamento ilícito, infligindo um castigo ao infrator.”
Conclui-se que o chamado refis tem natureza de transação tributária e não viola o artigo 165 da Carta Magna e o artigo 14 da Lei Complementar n°101/200.
Destarte, como concluiu o professor da FD-USP Dr. Fernando Facury Scaff[1], referido instituto somente pode ser enquadrado no conceito jurídico de transação:
“Entendo que resta apenas uma hipótese em todo o sistema normativo tributário que permite enquadrar os diversos Refis, aqui incluídos os estaduais e municipais, que é a da extinção do crédito tributário pelatransação, fórmula prevista pelo artigo 171 do CTN, que, pedindo paciência ao leitor, abaixo transcrevo e analiso:
Artigo 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e consequente extinção de crédito tributário.
Observe-se que a transação é uma mescla de vários dos institutos acima mencionados, o que se caracteriza pela expressão “concessões mútuas” a serem firmadas entre os “sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária”, cujo objetivo é a “determinação do litígio” visando a “extinção do crédito tributário”. Claro, sob a égide da reserva legal, o que é pressuposto e está contemplado nos diversos Refis, consoante as leis acima mencionadas.”.
Assim, a natureza jurídica das penalidades inscritas em dívida ativa, por não ensejarem ao município a expectativa de executar sua política pública, em vista da incerteza de seu recebimento, não pode ser considerada o PI uma renúncia de receita, sendo certo que parte deste valor não será objeto de pagamento.
A anistia, de modo semelhante à remissão, consiste no perdão do pagamento de importância pecuniária decorrente da incidência de uma norma sancionatória relativa a questões tributárias.
Nesse sentido, a norma de anistia possui a natureza de perdão de dívida, sendo dotada da mesma estrutura da norma de remissão, tendo como único traço distintivo o fato de que a obrigação perdoada não se origina da incidência de regra matriz tributária, mas sim de uma norma sancionatória.
Quanto à forma, tem-se que a anistia pode ser geral, limitada ou condicional. A geral é concedida a todos que se encontrem na mesma situação, sem qualquer condição. Nesse caso, o seu reconhecimento dependerá de prova do preenchimento das condições e do cumprimento dos requisitos previstos em lei para a sua concessão.
Nesse sentido, como visto acima, a relação do instituto da anistia com o do gasto tributário também pode ser questionada, uma vez que o caput do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal restringe o conceito para a “concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária”, não se aplicando aos benefícios relativos às penalidades. Assim, não há uma norma de referência quanto às normas que descrevem penalidades, na medida em que elas não objetivam, em princípio, a arrecadação de receitas.
Por fim, cumpre ressaltar que o STJ já reconheceu os Refis ou PPIs como uma espécie de transação em pelo menos dois julgados (Relator Ministro Castro Meira, REsp. 739.037/RS; e Relatora Ministra Eliana Calmon, REsp 499.090/SC).
Conclui-se, portanto, que o Parcelamento Incentivado se enquadra no conceito jurídico de transação, e não de benefício fiscal, uma vez que este implica a redução direta ou indireta de tributos. De outro modo o Refis não visa esse objetivo, motivo pelo qual não acarreta renúncia de receita nos termos da Constituição Federal e da Lei de Responsabilidade Fiscal.