Cláusula de não concorrência na visão do CADE.


29/09/2015 às 21h59
Por Eduardo Alvares

Cláusula de não concorrência na visão do CADE.

Eduardo Octavio Teixeira Alvares[1].

I – Introdução.

Busca-se neste breve arrazoado examinar a incidência da cláusula de não concorrência, instrumento típico do direito empresarial, no âmbito do direito antitruste. É dizer se tal restrição, pactuada rotineiramente nos contratos de trespasse[2], tem assento nas relações reguladas, sobretudo, pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade[3].

Mais: é tentar atenuar a aparente tensão existente entre o princípio da autonomia da vontade versus o da livre concorrência, imiscuindo-se nas competências do Cade para interferir nas relações privadas sujeitas à regulação da citada autarquia federal.

Para tanto, apresentar-se-á, de início, uma visão geral acerca da cláusula de não concorrência, que é prevista no art. 1.147 do Código Civil. Em seguida, o presente estudo, sempre guiado pelos ensinamentos doutrinários e jurisprudenciais, fará um exame mais detido sobre a jurisprudência do Cade acerca da incidência de tal dispositivo nas relações regidas no âmbito do direito concorrencial.

Não se pretende aqui, obviamente, estabelecer uma regra matemática sobre a questão, mas sim oferecer mínimos subsídios para a intelecção do aparente conflito de normas que envolvem a temática.

II – Do trespasse e da cláusula de não concorrência.

O Código Civil, por seu art. 1.147, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro, de forma expressa, o que a doutrina empresarial denomina de cláusula de não concorrência. Confira-se:

“Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subsequentes à transferência.

Parágrafo único. No caso de arrendamento ou usufruto do estabelecimento, a proibição prevista neste artigo persistirá durante o prazo do contrato”. (Grifos não presentes no texto original).

Tal dispositivo está inserido no estudo do direito das empresas, mais especificamente na celebração de contratos que têm como objetivo a alienação, o usufruto ou arrendamento de estabelecimentos empresariais[4], denominados de contratos de trespasse.

Numa leitura bem didática o trespasse nada mais é do que a transferência onerosa do estabelecimento empresarial, considerando, pois, o estabelecimento empresarial com sendo um complexo de bens ao qual se atribui certa organização, é variável o objeto da cessão (trespasse)”[5].

Em abono, Marlon Tomazette esclarece que “tratando-se de uma universalidade de fato, é certo que o estabelecimento pode ser alienado com um todo, como uma coisa coletiva é o que recebe na doutrina a denominação de trespasse”[6].

Nesse contexto, portanto, é que se insere a cláusula de não concorrência, na medida em que o artigo 1.147 veda, inexistindo cláusula expressa em sentido contrário, ao alienante do estabelecimento empresarial fazer concorrência àquele que adquiriu o seu empreendimento no período de cinco anos[7] subsequentes ao negócio de compra e venda entabulado entre as partes[8].

De pronto, a conclusão a que se chega, a despeito da literalidade do dispositivo, é a de que havendo acordo de vontades entre as partes, a concorrência, em regra, vedada pela norma, passa a ser permitida. Nesse ponto, o Código Civil demonstra sua íntima e inequívoca atração pelo princípio da autonomia da vontade, que, em ligeira síntese, garante às partes a liberdade de contratar e a liberdade de estabelecer as regras do contrato.

A propósito, sobre a autonomia da vontade, Elpídio Donizetti e Felipe Quintella explicam que:

“A liberdade de contratar ou não se consubstancia na ideia de que ninguém é forçado a contratar. A liberdade de escolher com quem contratar possibilita ao sujeito negociar apenas com quem ele bem entender. A liberdade de dispor sobre o conteúdo do contrato significa que os sujeitos, ao contratarem, traçarão as cláusulas do ajuste como melhor lhes convier. Por fim, a liberdade de exigir o cumprimento do contrato se traduz na faculdade de recorrer ao poder Judiciário, caso não ocorra o cumprimento voluntário, para se requerer que o sujeito inadimplemento cumpra sua obrigação, vez que o “contrato faz lei entre as partes””[9]

Nesse caminho, André Ramos destaca que:

“A autonomia da vontade, conforme veremos no capítulo VI, é princípio fundamental que preside todas as relações contratuais, nos termos do art. 421 do Código Civil. Esse princípio assegura às partes a liberdade de contratar (faculdade de realizar ou não realizar um determinado contrato) e a liberdade contratual (faculdade de estabelecer livremente o conteúdo do contrato)”[10].

Lançadas tais ideias, importante, agora, perquirir qual o objetivo da norma que se extrai do art. 1.147 do Código Civil, isto é, o que o legislador pretendeu com sua inclusão no ordenamento jurídico.

De saída, a principal contribuição que se observa foi positivar um entendimento jurisprudencial firmado no sentido de que “na ausência de cláusula contratual expressa, o alienante tem a obrigação contratual implícita de não fazer concorrência ao adquirente do estabelecimento empresarial”[11].

Na verdade, a obrigação de não fazer concorrência ao adquirente é um consectário lógico do princípio da boa-fé objetiva, que proíbe tal comportamento. A positivação promovida pelo Código Civil veio, em bom tempo, colmatar uma lacuna legislativa, evitando a concorrência desleal, caracterizada pelo desvio de clientela, por aquele que detém toda a expertise do negócio que alienou.

Mostram-se oportunas, aqui, as lições extraídas da obra de Marlon Tomazette. Confira-se:

“Com o Código Civil (art. 1.147), adota-se a orientação do direito italiano, estatuindo legalmente a proibição de concorrência pelo prazo de cinco anos, salvo disposição expressa em sentido contrário.

De imediato, é oportuno esclarecer que não se trata de uma proibição do exercício da mesma atividade anteriormente desenvolvida, mas sim de uma proibição de concorrência entre alienante e adquirente. O alienante pode continuar desenvolvendo a mesma atividade empresarial, desde que não faça concorrência ao adquirente do estabelecimento.

Trata-se de uma proteção do aviamento, que não viola qualquer liberdade constitucional, na medida em que limitada no tempo tal proibição. Caso se tratasse de uma proibição por prazo indeterminado, não haveria dúvida da inconstitucionalidade desta. Todavia, com a limitação de cinco anos, se restringe uma liberdade para tutelar outra, sem destruir nenhuma das duas. Não se limita a liberdade de concorrência, mas evita a concorrência desleal.

Ora, a pessoa que adquire um estabelecimento em operação, ao invés de constituir um estabelecimento partindo do nada, o faz em virtude da expectativa de lucro decorrente do estabelecimento. Quem adquire um estabelecimento paga um valor a mais por essa expectativa – o aviamento -, que na maioria dos casos está ligada a relações pessoais que o empresário mantém com a clientela. Assim sendo, nada mais justo e lógico do que assegurar ao adquirente o gozo desse aviamento, proibindo o alienante de lhe fazer concorrência, roubar-lhe a clientela e, consequentemente, se enriquecer indevidamente”[12].

Em abono à tese desenvolvida pelo ilustre jurista, o Superior Tribunal de Justiça – STJ, reconhecendo a validade da cláusula de não concorrência, firmou o entendimento da abusividade da cláusula de não concorrência caso seja firmada por prazo indeterminado. Confira-se:

“RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL, CIVIL E EMPRESARIAL. ACÓRDÃO ESTADUAL DEVIDAMENTE FUNDAMENTADO. INEXISTÊNCIA DE MALFERIMENTO AOS ARTS. 165, 458, II E III, E 535, II, DO CPC. "CLÁUSULA DE NÃO RESTABELECIMENTO". AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AOS ARTS. 166, II E VII, E 421 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRAZO INDETERMINADO DA REFERIDA CLÁUSULA. ABUSO. LIMITAÇÃO TEMPORAL. NECESSIDADE. PRAZO DE 5 ANOS.

CRITÉRIO DO ART. 1.147 DO CC/2002. NÃO CARACTERIZAÇÃO DE INFRAÇÃO À ORDEM ECONÔMICA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMOSTRADO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

1. Rejeita-se a alegada violação aos arts. 165, 458, II e III, e 535, II, do CPC, uma vez que o acórdão recorrido está devidamente fundamentado.

2. É válida a cláusula de "não restabelecimento" no tocante ao seu objeto, rejeitando-se a alegada violação ao art. 166, II e VII, do Código Civil de 2002, pois é regra comum nos negócios jurídicos que envolvem transmissão de direitos sobre estabelecimentos, amplamente utilizada no cotidiano empresarial. Insta mencionar que o CC/2002 inovou ao trazer expressamente, no seu art. 1.147, a "cláusula de não restabelecimento".

3. O art. 421 de CC/2002 positivou o princípio da função social dos contratos como limitador da liberdade de contratar, inexistindo violação a essa norma, no estabelecimento da cláusula de "não restabelecimento", usual na realidade empresarial para coibir a concorrência desleal.

4. Mostra-se abusiva a vigência por prazo indeterminado da cláusula de "não restabelecimento", pois o ordenamento jurídico pátrio, salvo expressas exceções, não se coaduna com a ausência de limitações temporais em cláusulas restritivas ou de vedação do exercício de direitos. Assim, deve-se afastar a limitação por tempo indeterminado, fixando-se o limite temporal de vigência por cinco anos contados da data do contrato, critério razoável adotado no art.

1.147 do CC/2002.

5. A aludida cláusula não se incompatibiliza com os arts. 20, II e IV, e 21, IV, V e X, da Lei n. 8.884/94, pois para se configurar infração à ordem econômica é imprescindível que alguma das condutas elencadas no art. 21 ocasione, de forma efetiva ou potencial, efeitos previstos no art. 20, o que não ocorre no caso em exame.

6. Dissídio jurisprudencial não demostrado, uma vez que não houve indicação de dispositivo de lei federal que teria sido interpretado de forma divergente ao posicionamento firmado no paradigma.

7. Recurso especial parcialmente provido”[13].

De igual importância, André Ramos destaca que:

“(...) a norma do Código Civil não é inócua. A cláusula geral de boa-fé contratual, prevista no art. 422 do Código Civil, refere-se às fases de negociação, conclusão e execução do contrato, não mencionado, todavia, a fase pós-contratual. O art. 1.147, portanto, estende aplicação do princípio da boa-fé objetiva ao momento posterior ao contrato de trespasse, no intuito de assegurar ao adquirente a plena fruição do estabelecimento adquirido, mais especificamente no que diz respeito à clientela”.[14]

Dito isso, o presente arrazoado, até aqui, buscou trazer uma visão panorâmica acerca da cláusula de não concorrência no âmbito do direito empresarial. Assim sendo, a partir daqui o estudo avança no sentido de tentar explicar a incidência de tal cláusula no olhar do direito concorrencial, examinando eventual conflito entre o princípio da autonomia da vontade e o princípio da livre concorrência, com extrema ênfase na jurisprudência do Cade.

III – Da livre concorrência e a cláusula de não concorrência interpretada pelo Cade.

As normas que tratam de concorrência têm seu pressuposto de validade retirado da Constituição Federal, na medida em que a livre concorrência foi erigida a um dos fundamentos da ordem econômica, conforme se extrai do texto constitucional. Confira-se:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII - busca do pleno emprego;

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. (grifos não originais).

Nesse tanto, sobre a livre concorrência, Eugênio Rosa de Araújo explica que:

“Trata-se de um desdobramento do princípio da livre iniciativa, complementando-o com sua ponderação e, para garanti-la o legislador constituinte, no § 4ª do art. 174, dispôs que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”[15].

Esse, portanto, é o campo de atuação do Cade, qual seja reprimir o abuso do poder econômico, representado aqui, no que interessa, na concorrência desleal danosa à ordem econômica.

Com efeito, qualquer ato que venha a prejudicar a livre concorrência, nos termos do art. 36, I, da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, constitui infração de ordem econômica. Observe-se:

“Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa”.

Importante destacar, ainda, o campo de alcance da citada lei. Observe-se:

“Art. 31. Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal”.

Observa-se, pois, que a citada lei tem como escopo prevenir e reprimir as infrações contra a ordem econômica, buscando, em última análise, a proteção do mercado e o seu livre funcionamento.

Dessa forma, parece-me perfeitamente compreensível à existência da cláusula de não concorrência no âmbito de direito antitruste, desde que tal limitação não ocasione nenhuma infração de ordem econômica. Há, assim, de se encontrar uma mediação entre a autonomia da vontade e a livre concorrência.

Como dito no início, não se pretende aqui apresentar uma fórmula matemática capaz de equacionar a questão. O melhor caminho, a meu ver, é o enfrentamento do caso concreto por parte da autoridade judiciária competente para examinar eventual conflito.

Nesse sentido, a jurisprudência do Cade, conforme destaca André Ramos, vem admitindo a cláusula de não concorrência, fornecendo ao aplicador do direito parâmetros para a sua aplicação, quais sejam: a) sejam medidas auxiliares ao negócio principal; b) sirvam de garantia da viabilidade negocial; e c) submetam-se a parâmetros relacionados aos limites material, territorial e temporal da cláusula[16].

Em abono, seguem importantes precedentes[17] daquele colegiado. Confira-se:

“AC 08012.009679/2007-50.

Relator: Conselheiro Olavo Zago Chinaglia.

Data do Acórdão: 30.10.2009.

DECISÃO: (...) Aprovação condicionada a adequação de abrangência geográfica da cláusula de não concorrência, em consonância com pareceres da SECRETARIA DE ACOMPNHAMENTO ECONÔMICO – SEAE, SECRETARIA DE DIREITO ECONÔMICO – SDE E PROCURADORIA DO CADE – ProCADE”.

“AC 08012.002397/2008-11.

Relator: Conselheiro Fernando de Magalhães Furlan.

Data do Acórdão: 16.02.2009.

DECISÃO: (...) Isto posto, voto pela aprovação da operação condicionada à adequação da dimensão geográfica da cláusula de não concorrência aos estados de Pernambuco e Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas, nos termos apresentados acima, no prazo de 30 (trinta) dias, adotando como fundamento, no que couber, os argumentos e conclusões apresentadas nos pareceres da SEAE, SDE e ProCade”.

“AC 08012.008939/2008-51.

Relator: Conselheiro Fernando de Magalhães Furlan.

Data do Acórdão: 16.03.2009.

DECISÃO: A cláusula de não concorrência, no que tange à sua extensão geográfica, não se encontra em consonância com entendimentos anteriores do plenário do CADE, que limita os efeitos desse tipo de cláusula à área afetada pela operação. (...) Voto pela aprovação do ato, condicionada à adequação da dimensão geográfica da cláusula de não concorrência à região metropolitana de São Paulo/SP”.

“AC 08012.007166/2008-95.

Relator: Conselheiro Fernando de Magalhães Furlan.

Data do Acórdão: 16.02.2009.

DECISÃO: Conforme ressaltado pela Secretaria, referida cláusula se encontra em desacordo com entendimentos recentes do plenário do CADE, no que tange à sua dimensão geográfica, uma vez que abrange uma área maior que ado mercado relevante”.

“AC 08012.005779/2008-98.

Relator: Conselheiro Olavo Zago Chinaglia..

Data do Acórdão: 15.10.2009.

DECISÃO: Tanto a SEAE quanto a SDE recomendaram a adequação de tal cláusula à jurisprudência do CADE: prazo de cinco anos e abrangência territorial igual à dimensão geográfica dos mercados relevantes, neste caso, o território nacional. (...) As cláusulas de não concorrência justificam-se quando ancilares ao negócio principal, sendo determinantes para a sua concretização possibilitando que as partes usufruam plenamente os bens tangíveis e intangíveis adquiridos (...). Considero a cláusula de não concorrência desnecessária para a viabilização da presente operação e, considerando a alta concentração do mercado e as escassas possibilidades de entrada de novos concorrentes, prejudicial ao ambiente competitivo ao impedir que pessoas com conhecimento do negócio possam voltar ao mercado, seja através de novos investimentos, seja associando-se como concorrentes já estabelecidos e com menos participação do mercado”.

“AC 08012.010218/2008-19.

Relator: Conselheiro Paulo Furquim de Azevedo.

Data do Acórdão: 22.05.2009.

DECISÃO: Voto pela aprovação da operação condicionada à alteração da cláusula de não concorrência, de modo que seja limitada a todos os trechos rodoviários, até uma extensão de 100 km, adjacentes a cada estabelecimento da rede Frango Assado”.

“AC 08012.005881/2008-93.

Relator: Conselheiro Luis Fernando Rigato Vasconcellos.

Data do Acórdão: 30.07.2008.

DECISÃO: Voto pela imposição de restrições, em conformidade com o parecer da ProCADE, de modo que a cláusula de não concorrência sela alterada para se restringir às regiões Sul e Sudeste do Brasil”.

“AC 08012.002813/2007-91.

Relator: Conselheiro Luis Fernando Rigato Vasconcellos.

Data do Acórdão: 08.08.2008.

DECISÃO: Há cláusula de não concorrência no Contrato de Compra e Venda e Outras Avenças referentes às operações, cuja abrangência geográfica é o território nacional. Tendo em vista que os mercados relevantes envolvidos nas operações têm dimensões geográficas diversas, acompanho o parecer da SEAE no sentido de que a cláusula de não concorrência seja adequada para abranger a área em o Grupo Ipiranga atuava antes das operações”.

Esse, também, é o entendimento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Confira-se:

EMBARGOS INFRINGENTES. DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO DE SOCIEDADE. AÇÃO ANULATÓRIA DE PARTE DO ACORDO FIRMADO ENTRE AS PARTES. CLÁUSULA DE NÃO CONCORRÊNCIA. Reconhecida a abusividade parcial da cláusula de proibição de concorrência, impõe-se sua adequação aos parâmetros que delimitam os aspectos: temporal, material e espacial. EMBARGOS INFRINGENTES DESACOLHIDOS. (Embargos Infringentes Nº 70055224042, Terceiro Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sergio Luiz Grassi Beck, Julgado em 02/08/2013).[18]

Em seu voto, o desembargador Relator, Dr. Sergio Luiz Grassi Beck, ao encampar os termos do Parecer PROCADE nº. 052/2009, apresenta precisas lições acerca dos requisitos firmados pelo Cade para a aceitação da cláusula de não concorrência nos casos submetidos àquele Colegiado. Confiora-se:

“Diante da inobservância dos critérios legais impõe-se a readequação da cláusula de não concorrência ao aspecto temporal, o limite material, e a questão do espaço, de acordo com a interpretação adotada na decisão ora embargada, cujos argumentos transcrevo a seguir para que façam parte do voto, a fim de evitar desnecessária tautologia:

(...), é de suma importância para a análise da cláusula de não concorrência, trazendo a interpretação mais adequada no sentido de prevenir e apurar abusos de poder econômico, sobre a matéria concorrencial.

Neste sentido, para melhor elucidação e compreensão acerca do assunto, se mostra necessário transcrever parte do parecer do PROCADE n. 052/2009 da Procuradoria Geral do CADE, acerca de caso análogo:

(...)

19. No entanto, para que uma cláusula de não concorrência não prejudique o ambiente concorrencial, cumprindo estritamente a sua definição legal, devem ser observados limites materiais, espaciais e temporais.

20. Quanto ao aspecto temporal, a exceção de situações específicas verificadas no caso concreto, vem reiteradamente decidindo ser o prazo de 5 (cinco) anos um período razoável e incapaz de prejudicar a livre concorrência. No caso dos autos a cláusula foi fixada em prazo inferior a 5 (cinco) anos, razão pela qual esta adequada à iterativa jurisprudência desta autarquia.

21. No tocante aos limites materiais, deve-se entender que a cláusula de não-concorrência pactuada deve se restringir ao setor de atividade envolvido na operação. No presente caso, verifica-se que a obrigação de não competitividade está limitada à área de atuação da System Plast, razão pela qual não destoa do entendimento do CADE.

22. Quanto ao espaço, tem-se entendimento de que a cláusula contratual deve-se restringir à área de atuação da empresa adquirida na operação. Da leitura do Contrato de Aquisição, depreende-se que a área geográfica compreendida na área de não-concorrência guarda relação com a atuação da System Plast, razão pela qual também não se vislumbra problema concorrencial quanto a este ponto.

(...)

Feita tais considerações, analiso a cláusula terceira do acordo celebrado entre as partes quanto ao aspecto temporal, o limite material e a questão do espaço.

ASPECTO TEMPORAL

Apesar de inexistir norma específica e regular da cláusula de não concorrência do sócio retirante, aplica-se, por analogia, o artigo 1.147, caput, do CC, in verbis:

Art. 1.147. Não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência.

(...)

Como se observa no artigo supracitado, o objetivo principal da Lei consagrado na cláusula de não concorrência é vedar a concorrência desleal, para a proteção do estabelecimento empresarial.

Assim, a adoção do prazo temporal de 5 anos para proteção do estabelecimento empresarial, se mostra mais justo e adequado, a fim de repelir qualquer restrição temporal que extrapole os limites da normalidade e do bom senso.

Dessa forma, entendo que o prazo estipulado de 10 anos previsto na cláusula terceira do acordo firmado entre as partes, se mostra abusivo, razão pela qual merece ser readequado para 5 anos.

LIMITE MATERIAL

Quanto ao limite material, entendo que deve ser reconhecida a abusividade, tão somente quanto à restrição dos familiares do autor, de qualquer grau de parentesco, a praticar concorrência ou explorar o mesmo ramo de atividade da sociedade em questão.

A redação contida na cláusula de não concorrência no que diz respeito à obrigação de não competitividade, na qual restou limitada ao “mesmo ramo de atividades” e às “áreas de atuação da empresa COBRA CORRENTES BRASILEIRAS LTDA., apesar de conter conceitos amplos, o objeto social da sociedade define e restringe ao setor de atividade efetivamente envolvido na operação. Por tais razões, não há falar em abusividade quanto a este aspecto.

Por outro lado, pela leitura da Cláusula Terceira, foi acordado entre as partes que “o vendedor fica expressamente proibido de por si, seu cônjuge, seus ascendentes, descendentes, herdeiros e colaterais de qualquer grau, praticar concorrência ou explorar o mesmo ramo de atividades da sociedade COBRA CORRENTES BRASILEIRAS LTDA., ou ainda, prestar consultoria nas áreas de atuação da empresa antes mencionada.”.

De fato, a limitação imposta pela referida cláusula, abrangeu de forma muito ampla e extremamente exagerada a restrição estabelecida, no sentido de proibir os familiares da parte apelante, de qualquer grau de parentesco (cônjuge, ascendentes, descendentes, herdeiros e colaterais de qualquer grau), de praticar concorrência ou explorar o mesmo ramo de atividades.

Por tais razões, reconheço a abusividade do acordo, para extirpar da cláusula de não concorrência as referências “seu cônjuge, seus ascendentes, descendentes, herdeiros e colaterais de qualquer grau” e “prestar consultoria nas áreas de atuação da empresa antes mencionada”, ficando restrita tal proibição somente ao apelante, em atenção aos dispositivos constitucionais tuteladores dos direitos e garantias individuais previsto no artigo 5º, XIII e artigo 6º, ambos da Constituição Federal.

LIMITE ESPACIAL

Por fim, da leitura da cláusula terceira, de fato inexiste qualquer referência quanto ao limite espacial, razão pela qual não se pode verificar qual área territorial é compreendida na área de não concorrência (estadual, nacional e/ou internacional). É sabido, que a cláusula contratual deve-se restringir à área geográfica de atuação da empresa adquirida na operação.

Assim, inevitável a sua readequação para o fim de se limitar o espaço geográfico efetivo de não concorrência, razão pela qual entendo que tal limitação deve se abranger tão somente no âmbito estadual do Estado do Rio Grande do Sul.

Portanto, diante da abusividade da proibição de concorrência estabelecida no acordo firmado entre as partes, a cláusula terceira deve ser enquadrada dentro dos limites temporais, materiais e espaciais, conforme os parâmetros antes referidos, a fim de fixar em 5 (cinco) anos o prazo para que o autor/embargado retorne ao mercado a exercer suas atividades normais; excluir a parte a que se refere “seu cônjuge, seus ascendentes, descendentes, herdeiros e colaterais de qualquer grau” e “prestar consultoria nas áreas de atuação da empresa COBRA CORRENTES BRASILEIRAS LTDA., restringindo a proibição somente ao sócio retirante; delimitar o espaço geográfico efetivo de não concorrência para o âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, nos exatos termos do acórdão recorrido (fls. 504-511v.)”.

Estas, portanto, são as diretrizes firmadas pelo Cade a respeito da cláusula de não concorrência no âmbito do direito antitruste, as quais, sem embargo, podem ser interpretadas e aplicadas nas relações jurídicas guiadas pelo direito empresarial, a depender da comprovação, no caso concreto, de que tal cláusula, de alguma maneira, venha a prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa, constituindo assim, nos termos da legislação concorrencial, infração da ordem econômica.

IV – Da conclusão.

Pois bem, como dito no início deste trabalho, a grande questão acerca do reconhecimento da cláusula de não concorrência no âmbito do direito antitruste é o conflito que sobressai entre a autonomia da vontade e o princípio da livre concorrência.

Por um lado, tem-se que a cláusula de não concorrência é plenamente aceitável na medida em que exterioriza a vontade das partes. De outra banda, porém, a livre concorrência proporciona ao Estado o direito de intervir nas relações contratuais na busca de evitar infrações na ordem econômica. Não se pode olvidar que a livre concorrência é um direito fundamental que dá suporte à ordem econômica.

Não se desconhece também que o Cade, autarquia federal, é uma entidade imbuída legalmente de prevenir e reprimir infrações contra a ordem econômica, observando os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, sendo certo que suas restrições à adoção da cláusula de não concorrência possuem fundamento legal.

Não obstante, parece-me que o caminho mais acertado é o enfrentamento do caso concreto, uma vez que os requisitos firmados pelo Cade, se aplicados indistintamente, podem gerar decisões, no mínimo, injustas.

De um lado, é plenamente aceitável que o adquirente de um estabelecimento empresarial não sofra concorrência direta daquele que detenha todas as informações do seu negócio. Mais: que contenha relação de todos os seus clientes. Também é plenamente aceitável a intervenção do Cade, primando sempre pela livre concorrência, como fundamento da ordem econômica.

Contudo, a intervenção do Cade, a meu ver, deve ser adstrita àquelas situações em que haja, de fato, algum risco à livre concorrência, caso contrário, a cláusula prevista no art. 1.147 do Código Civil deve ser respeitada em sua plenitude.

  • Direito da regulação
  • Concorrência desleal

Referências

V – Referências Bibliográficas.

ARAÚJO. Eugênio Rosa de. DIREITO ECONÔMICO & FINANCEIRO. Niterói, RJ: Impetus, 2013.

DONIZETTI. Elpídio; Felipe Quintella. CURSO DIDÁTICO DE DIREITO CIVIL. São Paulo: Atlas, 2014.

MAMEDE. Gladston. DIREITO EMPRESARIAL BRASILEIRO: EMPRESA E ATUAÇÃO EMPRESARIAL. São Paulo: Atlas, 2013.

RAMOS. André Luiz Santa Cruz. DIREITO EMPRESARIAL ESQUEMATIZADO. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014.

TOMAZETTE. Marlon. CURSO DE DIREITO EMPRESARIAL: TEORIA GERAL E DIREITO SOCIETÁRIO, Volume I. São Paulo: Atlas, 2014.

[1] Advogado. Aluno do curso de Pós-Graduação em Direito Empresarial e Contratos do Centro Universitário de Brasília – Uniceub.

[2] O Código Civil não adotou esta nomenclatura, sendo esta encontrada na Lei nº 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. (Art. 50, VII).

[3] “O Conselho Administrativo de Defesa Econômica - Cade é uma autarquia federal, vinculada ao Ministério da Justiça, com sede e foro no Distrito Federal, que exerce, em todo o Território nacional, as atribuições dadas pela Lei nº 12.529/2011.

O Cade tem como missão zelar pela livre concorrência no mercado, sendo a entidade responsável, no âmbito do Poder Executivo, não só por investigar e decidir, em última instância, sobre a matéria concorrencial, como também fomentar e disseminar a cultura da livre concorrência”. Disponível em: http://www.cade.gov.br/Default.aspx?7bbb7c84888686a4b0.

[4] Art. 1.144. O contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial.

[5] MAMEDE. Gladston. DIREITO EMPRESARIAL BRASILEIRO: EMPRESA E ATUAÇÃO EMPRESARIAL. São Paulo: Atlas, 2013, p. 200.

[6] TOMAZETTE. Marlon. CURSO DE DIREITO EMPRESARIAL: TEORIA GERAL E DIREITO SOCIETÁRIO, Volume I. São Paulo: Atlas, 2014, p. 116.

[7] Não se desconhece o conteúdo do enunciado da Súmula nº 490 do CFJ: “Art. 1.147: A ampliação do prazo de 5 (cinco) anos de proibição de concorrência pelo alienante ao adquirente do estabelecimento, ainda que convencionada no exercício da autonomia da vontade, pode ser revista judicialmente, se abusiva”. Disponível em: http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf .

[8] Sobre a cláusula de não concorrência, André Ramos narra interessante caso que remete, ao que parece, à origem da discussão sobre o tema. Confira-se:

“O estudo da mencionada cláusula os remete ao célere litígio entre a Companhia de Tecidos de Juta contra o Conde Álvares Penteado e a Companhia Paulista de Aniagem. O caso é famoso no seio da comunidade jurídica não apenas por se tratar de leading case acerca do tema em foco, mas, sobretudo, por ter proporcionado uma brilhante batalha jurídica entre dois dos maiores juristas brasileiros. Advogando em nome dos interesses da Companhia de Tecidos de Juta figurava Carvalho de Mendonça. No outro polo da demanda, defendendo os interesses do Conde e da Companhia de Aniagem, encontrava-se ninguém menos do que Rui Barbosa, que passou a atuar no processo quando este já se encontrava no Supremo Tribunal Federal. No processo em referência, discutia-se, em síntese, se a cessão de clientela era considerada algo inerente ao próprio contrato de transferência do estabelecimento. Isso porque o Conde Álvares Penteado, acionista majoritário da Companhia Tecido de Juta, bem como seus parentes, acionistas minoritários, alienaram sua participação societária a terceiros, os quais passaram a explorar aquele empreendimento. Efetivada a transação, entretanto, o Conde constituiu nova sociedade empresária, a Companhia Paulista de Aniagem, com atuação no mesmo ramo de atividade de sua antiga companhia, ou seja, passou o Conde a fazer concorrência aos terceiros que adquiriram seu antigo estabelecimento empresarial. A Companhia de Tecidos Juta, sentindo-se prejudicada em função da concorrência praticada pelo novo empreendimento, ingressou com ação judicial na qual pleiteava a devolução dos valores pagos a título de aviamento pelo antigo estabelecimento do Conde. Em decisão final, datada de 12 de agosto de 1914, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a cláusula de não se considerava implícita no negócio firmado entre os litigantes”. O autor registra, ainda, que a jurisprudência do STF evoluiu no sentido contrário, isto é, a cláusula de não concorrência estaria implícita nos negócios de compra e venda de estabelecimentos empresariais em reverência ao princípio da boa-fé. É verdade que tal discussão perdeu sua relevância com a positivação constante no art. 1.147 do Código Civil, no entanto vale o registro histórico da matéria. RAMOS. André Luiz Santa Cruz. DIREITO EMPRESARIAL ESQUEMATIZADO. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, pp. 105/106.

[9] DONIZETTI. Elpídio; Felipe Quintella. CURSO DIDÁTICO DE DIREITO CIVIL. São Paulo: Atlas, 2014, p. 450.

[10] RAMOS. André Luiz Santa Cruz. DIREITO EMPRESARIAL ESQUEMATIZADO. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 111.

[11] RAMOS. André Luiz Santa Cruz. DIREITO EMPRESARIAL ESQUEMATIZADO. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 106.

[12] TOMAZETTE. Marlon. CURSO DE DIREITO EMPRESARIAL: TEORIA GERAL E DIREITO SOCIETÁRIO, Volume I. São Paulo: Atlas, 2014, p. 126.

[13] (REsp 680.815/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 20/03/2014, DJe 03/02/2015). Disponível em: www.stj.jus.br.

[14] RAMOS. André Luiz Santa Cruz. DIREITO EMPRESARIAL ESQUEMATIZADO. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 107.

[15] ARAÚJO. Eugênio Rosa de. DIREITO ECONÔMICO & FINANCEIRO. Niterói, RJ: Impetus, 2013,  p.49.

[16] RAMOS. André Luiz Santa Cruz. DIREITO EMPRESARIAL ESQUEMATIZADO. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, pp. 107/108.

[17] Todos retirados do site www.cade.gov.br.

[18] (TJ-RS  , Relator: Sergio Luiz Grassi Beck, Data de Julgamento: 02/08/2013, Terceiro Grupo de Câmaras Cíveis). Disponível em: www.tj.rs.gov.br.


Eduardo Alvares

Advogado - Brasília, DF


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