O PERIGO DA AMPLIAÇÃO DOS PODERES DO JUIZ POR MEIO DO INCISO IV, ARTIGO 139 DO CPC/2015


14/12/2016 às 11h03
Por Halex Assunção

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

2 DISCUSSÃO DOUTRINÁRIA

3 CASO DE REPERCUSSÃO NACIONAL

4 APLICAÇÃO DO INCISO IV, ARTIGO 139 DO CPC NO PROCESSO DE EXECUÇÃO

5 CONCLUSÃO

REFERENCIAS

INTRODUÇÃO

Com o advento do Novo Código de Processo Civil de 2015, os poderes do Juiz foram de certa forma, aumentados. Essa afirmação pode ser feita a partir de uma breve leitura do Art. 139, inciso IV, vejamos.

Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:

[...]

IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária. (Grifo nosso)

Como visto – especialmente através da leitura do inciso IV do artigo supramencionado – o dispositivo revela que, verdadeiramente passaram a ser grandes os poderes do juiz para tornar efetiva a ordem judicial, até mesmo em ações de cobrança pecuniária, como por exemplo, nas ações de execução de título executivo extrajudicial.

Ao determinar que possam ser tomadas todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias, o dispositivo legal autoriza que o magistrado faça juízo de valor sobre determinado caso concreto, uma vez que a intepretação desse dispositivo é ampla, não definindo quais são as medidas possíveis.

Não há necessidade de se debruçar sobre o tema para perceber que essa autorização possa tomar grandes proporções e inclusive vir a ferir direitos fundamentais que são protegidos pela Constituição Federal de 88, e aí está o grande problema. Diante disso, muitos doutrinadores defendem a inconstitucionalidade do inciso IV, artigo 139 do CPC/15.

2 DISCUSSÃO DOUTRINÁRIA

Parte da doutrina considera positiva a redação do inciso IV, art. 139 e defende que, através do novo dispositivo, o Juiz terá mais instrumentos para que se possa estabelecer comportamentos. Dessa maneira, o magistrado poderia, depois de esgotados os atos processuais regulares, executar tais medidas invulgares em defesa do cumprimento da obrigação, principalmente em se tratando de processo de execução, onde na maioria das vezes tornam-se frustradas todas as medidas executivas. Parte da doutrina alega, ainda, que esse instituto deve ser usado tão somente nos casos em que o devedor age de má fé com o intuito de atravancar a execução.

Mas a principal discussão doutrinária existente sobre o tema busca entender até onde podem ir esses poderes, já que a lei é clara em dizer que poderão ser tomadas TODAS as medidas. “Seria possível com base no artigo 139, IV do CPC/2015 restringir unilateralmente, a partir da visão utilitarista do magistrado, direitos individuais para obter a satisfação de obrigações pecuniárias como defendido pelos respeitáveis autores?”[1]

A partir disso, surge uma insegurança jurídica caraterizada pela possibilidade do emprego do juízo de valor do magistrado na decisão judicial.

Nessa esteira, Jorge Bheron Rocha, Bruno Campos Silva e Diego Crevelin de Sousa argumentam que “como o art. 139, IV, CPC, está grafado em termos genéricos, decisões nesses moldes são problemáticas porque não fornecem critérios para orientar quando são aplicáveis e quais medidas devem ser aplicadas.” [2]

Vários são os exemplos apresentado pela doutrina para justificar a inconstitucionalidade do Artigo 139, especialmente seu inciso IV. Trazendo aqui, um exemplo de como isso poderia ser aplicado no caso concreto, pode se imaginar uma situação hipotética em que uma empresa devedora, ao não cumprir uma decisão que a determinou que pagasse quantia em pecúnia, teve suspenso o seu direito de participar de licitações, até que se cumpra a decisão. Certamente essa medida complicaria ainda mais a situação da empresa, uma vez que a impediria concorrer com as outras empresas e isso poderia afetar até mesmo a sua arrecadação.

3 CASO DE REPERCUSSÃO NACIONAL

Dentro desse contexto, e fazendo uso do Artigo 139, inciso IV do Novo CPC, uma decisão judicial, da 2ª Vara Cível do Foro regional de Pinheiro na cidade de São Paulo – SP, tomou repercussão nacional, justamente por sua arbitrariedade.

Na decisão, a Juíza Andrea Ferraz Musa, deferiu o pedido de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, bem como determinou a apreensão do passaporte do executado até que fosse cumprida a obrigação de pagar a dívida.

A decisão veio confirmar a insegurança jurídica do artigo 139, apontada pela doutrina, uma vez que vários juristas entenderam que tal decisão reflete a perigosa ampliação de poderes que o dispositivo trouxe aos magistrados e fere o direito de ir e vir do executado.

A própria magistrada em sua decisão menciona que “A novidade trazida pelo Novo Código de Processo Civil no artigo supracitado amplia os poderes do juiz, buscando dar efetividade à medida, garantindo o resultado buscado pelo exequente”.[3]

Diante disso, a Juíza sustentou que deve ser empregado ao caso o inciso IV, art. 139, do novo CPC, uma vez que o processo tramita desde 2013 e o exequente não pagou qualquer valor. E disse, ainda, que “se o executado não tem como solver a presente dívida, também não recursos para viagens internacionais, ou para manter um veículo, ou mesmo manter um cartão de crédito”.

Em tal caso, tem-se que a aplicação de sansão como essa, inegavelmente, fere o direito de locomoção do executado que não poderia nem mesmo dirigir veículos automotores.

Cabe ressaltar que a decisão foi recorrida e que, por meio de habeas corpus[4], o TJ de São Paulo deferiu o pedido liminar do devedor para conceder o afastamento da suspensão do direito de dirigir, bem como a devolução de seu passaporte.

Na mesma linha de pensamento da doutrina majoritária, o relator Marcos Antônio de Oliveira Ramos, ao julgar o habeas corpus, entendeu que deve haver um limite no momento da aplicação do inciso IV do artigo 139, e que, por mais que ele dê ao magistrado ampla interpretação, tal dispositivo não pode, e nem deve, ir de encontro aos preceitos fundamentais estabelecidos pala Carta Magna de 88. Senão vejamos a fundamentação do relator:

"Em que pese a nova sistemática trazida pelo art. 139, IV, do CPC/2015, deve-se considerar que a base estrutural do ordenamento jurídico é a Constituição Federal, que em seu art. 5º, XV, consagra o direito de ir e vir.

Ademais, o art. 8º, do CPC/2015, também preceitua que ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz não atentará apenas para a eficiência do processo, mas também aos fins sociais e às exigências do bem comum, devendo ainda resguardar e promover a dignidade da pessoa humana, observando a proporcionalidade, a razoabilidade e a legalidade.

Por tais motivos, concedo a liminar pleiteada". (30ª Câmara de Direito Privado, Habeas Corpus, Autos n°2183713-85.2016.8.26.0000)

Os Juristas, Lenio Luiz Streck e Dierle Nunes[5], ao defenderem a inconstitucionalidade do artigo 139, fazem analogia ao polêmico habeas corpus 45.232, que foi julgado em 21/02/1968, onde Supremo Tribunal Federal – durante o período da ditadura militar – declarou inconstitucional o artigo 48 da Lei de Segurança nacional que determinava que, a mera admissão de denúncia ou de prisão em flagrante cominava ao acusado a pena de suspensão do direito de exercer emprego público ou mesmo privado. Diante disso, NUNES e STRECK ressaltam que:

"Basta ler o acórdão para ver a perigosa similitude com algumas medidas que estão sendo cogitadas para implementar o artigo 139, IV do CPC. Afinal, ao que lemos, o devedor, ao não pagar, poderia inclusive perder a CNH ou seu passaporte. Ou ser proibido de prestar concurso público. Ou, ainda, outras restrições inconstitucionais".

4 APLICAÇÃO DO INCISO IV, ARTIGO 139 DO CPC NO PROCESSO DE EXECUÇÃO

De fato, o processo de Execução sempre foi falho, ao passo que, o executado na maioria das vezes usa de inúmeros mecanismos para “escapar’ da jurisdição. Não é segredo para ninguém, muito menos para os próprios magistrados, que devedores transferem bens de seus nomes para o nome de terceiros como forma de fraudar a execução.

A fraude à execução, definida por Fredie Didier como “a manobra do devedor que causa dano não apenas ao credor, mas também à atividade jurisdicional executiva”[6], por muito tempo vem tentando ser combatida, justamente por causar prejuízos ao judiciário, ensejando na morosidade dos processos em trâmite e acarretando uma enorme sobrecarga aos servidores, sem deixar de mencionar o transtorno ao credor que, frustrado, desacredita receber seu crédito. Tudo isso contribui para um judiciário sobrecarregado e cada vez mais desprestigiado.

Entretanto, ampliar os poderes do juiz para efetivar uma decisão como forma de garantir que a execução seja bem sucedida, em detrimento de direitos e garantias fundamentais, não resolve o problema. Não pode o magistrado tomar medidas a qualquer preço, sem observar direitos e garantias fundamentais, a fim de se efetivar a execução. Caso isso ocorra, estará o julgador indo contra a Constituição Federal de 88.

5 CONCLUSÃO

Diante do exposto e considerando os fatores de risco que a redação do inciso IV do artigo 139 do NCPC/2015 leva às partes, principalmente ao executado em sede de execução, conclui-se que há clara necessidade da imposição de limites aos poderes dados ao magistrado por meio de tal dispositivo.

Por conseguinte, caberia ao artigo 139 apresentar as medidas que não podem ser tomadas pelo juiz. Em outras palavras, o genérico e polêmico inciso IV, art. 139 do CPC/15 deve ser categórico ao definir as medidas que não podem ser adotadas pelo magistrado. Como bem descrevem ROCHA, SILVA e SOUSA, “a questão é saber os limites. Sem eles, corre-se o risco de o dispositivo ser superestimado (animando arbitrariedades mediante emprego de medidas excessivas) ou subestimado (...), podendo gerar colapso por ele ou dele, respectivamente”.

Assim, mesmo que o árbitro viesse a fazer uso do juízo de valor para impor medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias, não poderia fazê-lo de modo que venha a ultrapassar os limites estabelecidos na própria lei.

Desta maneira, a lei continuaria a cumprir seu papel primordial que é o de estabelecer limites ao poder do Estado ao mesmo passo que defende os direitos e garantias individuais.

O que se busca com isso é a garantia de maior segurança jurídica, impedindo que decisões arbitrárias e que ferem direitos constitucionais – como a do caso em que foi determinada a apreensão do passaporte e suspensão da CNH – não sejam mais possíveis.

Notas

[1] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio#author> Acesso em: 18 out. 2016.

[2] ROCHA, Jorge Bheron; SILVA, Bruno Campos; SOUSA, Diego Crevelin de. Medidas indutivas inominadas: o cuidado com o fator Shylokiano do art. 139, IV, CPC. Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/medidas-indutivas-inominadas-o-cuidado-com-o-fator-shylokiano-do-art-139-iv-cpc-por-jorge-bheron-rocha-bruno-campos-silva-e-diego-crevelin-de-sousa/> Acesso em: 18 out. 2016.

[3] Juíza Andrea Ferraz Musa. Processo de Execução de Título Extrajudicial. Autos de n° 4001386-13.2013.8.26.0011. Comarca de São Paulo / Foro Regional de Pinheiros / 2ª Vara Cível.

[4] Relator Marcos Antônio de Oliveira Ramos. Habeas Corpus, Autos n°2183713-85.2016.8.26.0000. 30ª Câmara de Direito Privado. Disponível em https://esaj.tjsp.jus.br/cpo/sg/search.do?conversationId=&paginaConsulta=1&localPesquisa.cdLocal=-1&cbPesquisa=NUMPROC&tipoNuProcesso=UNIFICADO&numeroDigitoAnoUnificado=2183713-85.2016&foroNumeroUnificado=0000&dePesquisaNuUnificado=2183713-85.2016.8.26.0000&dePesquisaNuAntigo= Acesso em: 19 out. 2016.

[5] STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio#author> Acesso em: 18 out. 2016.

[6] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Vol.5, 3ª ed., Salvador: JusPODIVM, 2011.

  • <http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-inc
  • < http://emporiododireito.com.br/medidas-induti
  • < http://emporiododireito.com.br/execucao-ha-es
  • <http://www.conjur.com.br/2014-dez-17/dierle-nu
  • < http://beatrizgalindo.com.br/afinal-devedor-p

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,DF: Senado, 1988.

BRASIL. Lei Nº 13.105, de 16 de Março de 2015. Dispõe o Código de Processo Civil. Brasília,DF: Senado, 2015.

DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Vol.5, 3ª ed., Salvador: JusPODIVM, 2011.

GALINDO, Beatriz. Afinal? Devedor pode ter passaporte confiscado? Disponível em: < http://beatrizgalindo.com.br/afinal-devedor-pode-ter-passaporte-confiscado/> Acesso em: 18 out. 2016.

NUNES, Dierle. Novo CPC promove equilíbrio entre magistrados e advogados. In: <http://www.conjur.com.br/2014-dez-17/dierle-nunes-cpc-promove-equilibrio-entre-juizes-advogados> acesso em 21/6/2016.

PERES, Quitéria. Execução: há esperança! (NCPC, art. 139, IV). Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/execucao-ha-esperanca-ncpc-art-139-iv-por-quiteria-peres/#_ftn1> Acesso em: 17 out. 2016.

ROCHA, Jorge Bheron; SILVA, Bruno Campos; SOUSA, Diego Crevelin de. Medidas indutivas inominadas: o cuidado com o fator Shylokiano do art. 139, IV, CPC. Disponível em: < http://emporiododireito.com.br/medidas-indutivas-inominadas-o-cuidado-com-o-fator-shylokiano-do-art-139-iv-cpc-por-jorge-bheron-rocha-bruno-campos-silva-e-diego-crevelin-de-sousa/> Acesso em: 18 out. 2016.

STRECK, Lenio Luiz; NUNES, Dierle. Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio#author> Acesso em: 18 out. 2016.


Halex Assunção

Advogado - Pompéu, MG


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