Juliana Rodrigues Barreto Cavalcante¹, Francisco Humberto Cunha Filho².
1. Universidade Federal da Paraíba - (GEPDC/UNIFOR/UFPB)
2. Universidade de Fortaleza- Pós-Doutorado - (GEPDC/PPGD/UNIFOR)
Resumo: A presente pesquisa tem por objetivo refletir sobre a possibilidade de concessão de benefício fiscal, qual seja, isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), a proprietários de imóveis culturais tombados no município de Fortaleza, por força do artigo 32, caput e § único, da Lei Ordinária no 9.347, de 11 de março de 2008, em detrimento da existência de processos judiciais, no âmbito da execução fiscal, tendo como objeto bens tombados. Quanto aos aspectos metodológicos, a pesquisa classifica-se como bibliográfica e documental, realizada a partir de leituras, e também mediante análise do portal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE). Concluiu-se, primeiramente, que não há filtragem específica na sistemática utilizada pelo Judiciário cearense para identificar quais bens culturais encontram-se como objeto de ação de execução fiscal. Além disso, tendo em vista ser o requerimento de isenção fiscal um ônus dos proprietários dos bens particulares, cabe aos interessados solicitarem o benefício na Secretaria Municipal específica e, sendo o bem alvo de processo de execução fiscal, há que se informar ao magistrado responsável pela análise do feito, sobre tal situação. Também se verificou a necessidade de os Tribunais considerarem em seus sistemas próprios, metodologias de busca e filtragem, seja por nome dos proprietários, seja por endereço e nomenclatura dos bens, ou por meio da criação de uma Curadoria específica para tratar da temática, tudo em consonância com o objetivo da legislação cultural.
Palavras-chave: Patrimônio cultural. IPTU. Município de Fortaleza.
Introdução
A Constituição de 1988 conferiu a todos os entes da Federação, com a colaboração da comunidade, o dever de proteção do patrimônio cultural brasileiro. De acordo com o artigo 216, §1o, do texto constitucional, os mecanismos acautelatórios disponíveis são “inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação, além de outras formas de acautelamento e preservação”, como, por exemplo, os instrumentos jurídico-processuais Ação Civil Pública e Ação Popular.
O tombamento é uma das modalidades mais antigas de proteção do patrimônio, disciplinado em 1937, por meio do DL no 25/1937, com o fim de reconhecer valorativamente os bens culturais, transformando-os em patrimônio oficial público e instituindo-lhes regime jurídico especial de propriedade, levando em consideração sua função social. Para José dos Santos Carvalho Filho (2018, p. 943), o “tombamento é a forma de intervenção na propriedade pela qual o Poder Público procura proteger o patrimônio cultural brasileiro”, interligando identidade, ação e memória (MAGALHÃES, 2019, p. 18). Partindo desse pressuposto, o proprietário do bem fica impedido de usá-lo e fruí-lo livremente se este representar interesse público de ordens histórica, artística e cultural.
Nesse contexto, por meio do tombamento ocorre a declaração de que o bem integra o patrimônio cultural brasileiro, que por sua vez, traz a público o conhecimento de que o bem possui valor cultural, além de possibilitar que seja resguardada a integridade do mesmo, devendo estes serem preservados pelos seus proprietários e pelo Estado (SOARES, 2009, p. 293).
No município de Fortaleza, capital do estado do Ceará, há 100 bens tombados, sendo 50 tombados definitivamente e 50 provisoriamente, sendo eles públicos e privados, conforme dados obtidos a partir da leitura da lista de bens fornecida pela Coordenação do Patrimônio Histórico-Cultural, da Secretaria Municipal de Cultura. Em Fortaleza, os órgãos competentes para tombar bens culturais são o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), a Secretaria Estadual da Cultura (Secult) e a Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza (Secultfor).
Além disso, para se observar todas as etapas pertinentes ao tombamento, utiliza-se a Lei Ordinária no 9.347, de 11 de março de 2008, que dispõe sobre a proteção do patrimônio histórico-cultural e natural do município de Fortaleza. Referida lei confere, em seu artigo 32, caput e § único, isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) ao beneficiário que permanecer, comprovadamente, preservando o bem tombado.
Ocorre que, ao verificar o Sistema de Automação Judicial (SAJ) do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), é possível detectar, no âmbito da execução fiscal, que não há qualquer filtragem referente aos processos envolvendo cobrança de tributos municipais e bens tombados, como no caso da Escola de Música Luiz Assunção (Sociedade Musical Henrique Jorge), imóvel tombado provisoriamente em 2006, e que é objeto de ação de execução fiscal com fundamento em Certidão de Dívida Ativa (CDA).
Desse modo, cabe refletir se a possibilidade de concessão de benefício fiscal conferido a proprietários de imóveis tombados no município de Fortaleza funciona, de fato, como forma de incentivo à preservação dos bens culturais ou se mostra ineficaz, tendo em vista o desuso da legislação municipal cultural tanto pelos proprietários quanto pelo Poder Judiciário.
Metodologia
Quanto aos aspectos metodológicos deste trabalho, as hipóteses foram investigadas por meio de pesquisa bibliográfica e também mediante análise do portal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE). Quanto aos objetivos, a pesquisa é descritiva, à medida que busca descrever, analisar e esclarecer o tema apresentado, e exploratória, procurando aprimorar as ideias por meio de informações sobre o problema em análise. Com relação à utilização dos resultados, é pura, à medida que tem como finalidade a ampliação dos conhecimentos e discussão de modo a verificar a eficácia do dispositivo normativo.
Resultados e Discussão
O DL no 25/1937 prevê três tipos de tombamento que podem recair sobre bens móveis e imóveis, sendo eles privados ou públicos: de ofício, que incide sobre bens públicos do próprio ente que realiza a proteção; voluntário, que recai sobre bens cujo tombamento foi pedido ou expressamente aquiescido pelo proprietário; e compulsório, que ocorre quando é necessário instaurar um processo em razão de o proprietário se recusar, de forma expressa ou implícita, a anuir à inscrição do bem.
Para que o tombamento dos bens culturais e históricos do município de Fortaleza ocorra é necessário observar todos os ditames previstos na Lei no 9.347/2008, envolvendo pedido formal com descrição e caracterização do local, delimitação da área proposta, justificativa, notificação do atual proprietário, além de documentos específicos e diversos prazos a serem cumpridos.
Com relação à possibilidade de isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), no caso de bens já tombados, garantida pelo art. 32 da Lei municipal no 9.347/2008, há que se destacar, inicialmente, a necessidade de o interessado suscitar seu direito administrativamente, ou seja, o locus preferencial não é a esfera judiciária, mas sim, administrativa, mediante requerimento de isenção de IPTU na Secretaria Municipal de Finanças, acompanhado de documentos de instrução, como: identificação do proprietário, matrícula do imóvel, comprovação de cadastro de IPTU no nome do requerente, comprovante do tombamento efetivo do bem e inexistência de outros tributos pendentes em nome do beneficiário. A partir da aprovação, em âmbito administrativo, deste pedido é que se pode gozar do benefício fiscal.
De acordo com Leandro Paulsen (2017, p. 269), a “isenção dispensa o contribuinte de apurar e de cumprir a obrigação tributária principal. Por outro lado, impede o Fisco de constituir o crédito pelo lançamento e de exigi-lo, seja administrativa ou judicialmente”. A propósito, a isenção é uma das formas de exclusão do crédito tributário, conforme
preconiza o art. 175, inc. I, do Código Tributário Nacional (CTB), e de acordo com o parágrafo único do art.176, do referido código, a isenção pode ser restrita a determinada região do território da entidade tributante, em função de condições a ela peculiares.
Isso ocorre no Município de Fortaleza, quando a própria legislação municipal enumera ruas específicas para conferir isenção parcial do IPTU dentro de perímetro previsto em lei, conforme art. 283 do Código Tributário do Município de Fortaleza, que fixa os percentuais de 50% (cinquenta por cento) para imóveis residenciais (art. 283, § 1o, inc. I) e 20% (vinte por cento) para os imóveis não residenciais (art. 283, § 1o, inc. II), ou seja, trata-se de isenção parcial para determinados imóveis situados nas ruas descritas no artigo.
Além disso, o dispositivo seguinte (art. 284 CTM) especifica que os imóveis que possuírem valor histórico e forem tombados pelo poder público, também poderão obter isenção de 30% (trinta por cento) do valor Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU), caso estejam localizados nas áreas descritas pelo art. 283, e se restarem comprovadas a restauração e a preservação de sua estrutura e fachada original. Ou seja, trata-se de redução cumulativa, benefícios fiscais que podem ser cumulados.
Voltando ao questionamento principal deste trabalho, se há previsão legal de isenção para imóveis tombados no âmbito cultural, por que a sistemática judiciária, incluindo a da Procuradoria Geral do Município (PGM), que é o órgão responsável pelo protocolo das demandas de execução fiscal, não oferece dispositivos de filtragem para estes casos?Uma situação que suscita tais questionamentos é o exemplo da Escola de Música Luiz Assunção (Sociedade Musical Henrique Jorge). Constatou-se, em pesquisa no Sistema de Automação Judicial (SAJ), que existem 4 (quatro) ações de execução fiscal protocoladas em desfavor da atual proprietária do imóvel, todas relativas a cobrança de débito de IPTU do imóvel tombado, situado à Rua Sólon Pinheiro, no 60, bairro: Centro, Fortaleza - CE, CEP: 60050-040: processos de nso 0173810-88.2011.8.06.0001, na 6a Vara de Execuções Fiscais (julgado em 2020), 0403075-10.2018.8.06.0001, na 3a Vara de Execuções Fiscais (julgado em 2019), 0404180-22.2018.8.06.0001, na 4a Vara de Execuções Fiscais (em andamento), 0076388-21.2008.8.06.0001, na 5a Vara de Execuções Fiscais (em andamento).
Analisando o caso concreto, verifica-se que a Escola de Música localiza-se à Rua Sólon Pinheiro, no 60, no centro da cidade de Fortaleza. Ou seja, não se enquadra em nenhuma das ruas descritas pelo art. 283 do Código Tributário Municipal. Porém ainda assim, pode ser abarcada pela previsão da Lei 9.347/2008, que também confere aos imóveis tombados o gozo à isenção de IPTU. Trata-se, portanto, de Lei Ordinária, aprovada pela Câmara Municipal de Fortaleza e sancionada pela, à época, prefeita da cidade, em detrimento de Lei Complementar no 159, que instituiu o Código Tributário do Município de Fortaleza, também aprovada pela Câmara Municipal de Fortaleza e sancionada pelo prefeito da cidade.
Aqui, é possível observar que a lei complementar não invade propriamente o âmbito material de validade da lei ordinária, sendo necessário se atentar ao que for mais benéfico ao bem cultural e a seu proprietário, tendo em vista que ao conferir o benefício da isenção, mesmo que parcial, o legislador objetivou a proteção do bem, pois condicionou o gozo do benefício fiscal à comprovação da preservação e da restauração do bem tombado.
Por mais que em nosso ordenamento exista hierarquia entre as normas jurídicas, no ápice da pirâmide kelseana ocupa a Constituição, de modo a promover o controle constitucional- jurisdicional (GONÇALVES, QUIRINO, 2018), e não há que se falar em obstacularização sob o viés da relação hierárquica entre as normas distintas, pois, no caso, se veicularmos a matéria de uma à outra, não há inconstitucionalidade formal detectada, mas apenas verifica-se um desígnio do legislador de conferir maior proteção ao bem tombado.
Por fim, verificou-se que a Escola de Música Luiz Assunção recebeu tombamento provisório no ano de 2006, porém, a não conclusão do processo definitivo impediu que reparos estruturais fossem feitos, colaborando, assim, para sua deterioração, razão pelo qual, em 2018, a estrutura comprometedora do imóvel fez com que fosse necessário encerrar as atividades da Escola de Música. Não há informações sobre pedidos de isenção, à época ou antes dos processos, contudo, também não houve menção da legislação cultural nos petitórios judiciais e no recebimento dos processos.
Tal análise não é suficiente para dizer se o benefício fiscal tem sido efetivo na luta pela proteção do patrimônio cultural, porém verifica-se, a partir da observação do Sistema de Automação Judicial, que não há filtragem específica na sistemática utilizada pelo Judiciário cearense e nem diálogo entre os órgãos componentes da Justiça, no que diz respeito à observância da legislação cultural em demandas de âmbito da execução fiscal, isso porque os bens culturais ainda são objeto de discussão em processos de dívida tributária, quando, na verdade, deveria ser considerada a isenção ao proprietário, de acordo com as especificidades legais, tendo em vista que sua efetivação contribui com a preservação da memória dos diferentes grupos formadores da sociedade.
Outro aspecto importante a se destacar é que há, de acordo com a lista de bens fornecida pela Coordenação do Patrimônio Histórico-Cultural, da Secretaria de Cultura do Município de Fortaleza,100 bens históricos tombados de forma definitiva e provisória na cidade, sendo eles tanto públicos quanto privados, e, como a solicitação de isenção fiscal deve ser realizada pelos proprietários dos bens particulares, compreende-se que tal requerimento administrativo é um ônus, ou seja, não ocorre automaticamente após o tombamento do bem, mas sim, cabe ao proprietário a incumbência de requerê-lo na Secretaria Municipal específica.
Desse modo, ressalta-se que tanto os órgãos administrativos quanto os judiciais trabalham com números e documentos protocolados, devendo ser informados pelos sujeitos interessados acerca do enquadramento de qualquer bem cultural nas hipóteses de isenção fiscal. Assim como nos casos de imunidade tributária para templos religiosos, onde os magistrados das Varas de Execuções fiscais comumente oportunizam às partes a se manifestarem acerca da nulidade do lançamento tributário tendo em vista a identificação de exequentes como “Igreja ou Templo”, alguma técnica ou palavra-chave também deveria ser utilizada para aquelas situações que discutem débitos fiscais de bens culturais, o que demandaria uma pesquisa mais profunda acerca da situação jurídica dos bens particulares tombados no município de Fortaleza ou a criação de Curadoria específica para tratar da temática em consonância com a legislação cultural.
Conclusão
Com o desígnio de incentivar aos proprietários de bens culturais tombados a melhor preservarem seus imóveis, o município de Fortaleza, no estado do Ceará, conferiu a isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), por meio do art. 32, caput e § único, da Lei Ordinária no 9.347, de 11 de março de 2008, que dispõe sobre a proteção do patrimônio histórico-cultural e natural do município de Fortaleza. Referida lei condiciona o deferimento do benefício à comprovação da preservação do bem, além do interesse do beneficiário em pleiteá- lo em esfera administrativa, na Secretaria de Finanças do Município.
Contudo, a partir da observação do Sistema de Automação Judicial (SAJ) do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE), detectou-se, no âmbito da execução fiscal, quatro demandas judiciárias relativas à cobrança de débito de IPTU de imóvel tombado, qual seja, a Escola de Música Luiz Assunção (Sociedade Musical Henrique Jorge). A partir da análise dos processos e da falta de citação dos dispositivos culturais existentes, concluiu-se, primeiramente, que não há filtragem específica na sistemática utilizada pelo Judiciário cearense para identificar quais bens culturais encontram-se como objeto de ação de execução fiscal. Também não se observou diálogo entre os órgãos componentes da Justiça, no que diz respeito à observância da legislação cultural, posto que o mesmo imóvel foi objeto de várias ações com fundamento em Certidão de Dívida Ativa (CDA).
Contudo, concluiu-se também que, dentre os 100 bens históricos tombados na cidade de Fortaleza, há bens públicos e privados, e, como o requerimento de isenção fiscal deve ser um ônus dos proprietários dos bens particulares, cabe aos interessados solicitarem o benefício na Secretaria Municipal específica e, sendo o bem alvo de processo de execução fiscal, há que se informar ao magistrado responsável pela análise do feito, sobre tal isenção.
Assim, o estudo não se mostrou suficiente para constatar se o benefício fiscal tem sido efetivo na luta pela proteção do patrimônio cultural ou não, porém, em que pese a temática ser atinente à esfera cultural, a intenção do legislador é positiva, mesmo que a máquina tributária seja acionada com base em inúmeros pressupostos, cabendo, por fim, à sociedade e aos segmentos do Judiciário analisarem as repercussões jurídico-legais da implementação legislativa, bem como os Tribunais considerarem em seus sistemas próprios, metodologias de busca e filtragem, seja por nome dos proprietários, seja por endereço e nomenclatura dos bens, ou por meio da criação de uma Curadoria específica para tratar da temática, tudo em consonância com o objetivo da legislação cultural.