REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA A DE ESCRAVO: A lei 10.803/03, que alterou o texto do tipo penal, restringiu o alcance do tipo? De quem é a competência: Justiça Federal ou Estadual?


07/04/2017 às 15h50
Por Karen Barros

Introdução

O presente trabalho tem como tema o art. 149 do Código Penal que trata do crime de redução à condição análoga a de escravo, que tem como finalidade o combate à “escravidão contemporânea” e como a alteração trazida pela lei 10.803/93 restringiu o alcance do tipo.

O problema da pesquisa relaciona-se com a problemática trazida devido à mudança na redação do tipo penal a partir da lei 10.803, que especificou a forma de execução do delito deixando-o mais restrito.

Após o advento da Lei n. 10.803/2003, há dúvidas se mencionada mudança enfraqueceu o caráter punitivo, pois tornou um crime de tipo fechado, o que pode levar, por um lado, a sua inaplicabilidade (legislação penal com caráter meramente simbólico) e, por outro, à sua aplicação seletiva, na medida em que a sua permeabilidade interpretativa pode induzir até mesmo a aplicações analógicas.

A partir dessas mudanças abriram-se novas discussões como, por exemplo, o questionamento sobre a competência para o julgamento do crime, se essa seria Federal ou Estadual. Em relação a esses questionamentos já há decisão formada pelo STF a qual será tratada ao desenvolver do artigo.

A temática foi escolhida, pois após de mais de 100 anos da escravatura, nossa realidade pouco mudou, sendo a diferença principal da “escravidão contemporânea” e a do século XIX no Brasil é que está estava ligada diretamente em função de raça e aquela não escolhe cor e está mais relacionada a condições econômicas das vítimas.

No primeiro capítulo, serão abordadas as principais diferenças entre o crime de plágio e o de redução análoga à condição de escravo. Mostrando assim que o bem jurídico de ambos são diferentes já que o primeiro não estava relacionado à liberdade da vítima como acontece no segundo.

No segundo capítulo, veremos como a lei 10.803, ao especificar o modus operandi, limitou o alcance do tipo, e gerou grandes discussões em relação à competência da ação penal.

No capítulo seguinte, é feita a análise de como o questionamento do bem jurídico tutelado causa divergência em relação à competência. Sendo um crime contra a liberdade a competência é da Justiça Estadual, pois esta é residual, porém há dúvidas se o bem jurídico tutelado não seria também a organização do trabalho, sendo neste caso competência da Justiça Federal, de acordo com a Constituição Federal.

 

 

1.              Diferenciação entre o crime de plágio e o Crime de redução à condição análoga a de escravo

 

Antes de qualquer consideração sobre o assunto, devemos fazer importantes diferenciações entre o tipo penal e o crime de plágio.

No Direito Romano, quando alguém conduzia a vítima, indevidamente, ao estado de escravidão, cometendo portanto o crime de plágio o bem jurídico a que pretendia proteger não era propriamente a liberdade do indivíduo, porém o direito de domínio que alguém poderia ter ou perder por meio da escravidão indevida, sendo chamado esse delito de plágio, portanto o Direito Romano punia a escravização do homem livre e a comercialização do escravo alheio.

Sendo assim, diferentemente do direito Romano em que a escravidão era permitida, contemporaneamente não se cogita a redução à escravidão, pressupondo a possibilidade legal do domínio do homem sobre o outro, e sim a condição análoga, ou seja, parecida com escravidão[1].

Quando ainda existia a escravidão no Brasil, o código penal de 1830, promulgado durante o império, punia o delito de redução a da pessoa livre a condição análoga a de escravo. Porém, após a abolição da escravatura, o código penal de 1890 não mencionou expressamente tal delito, que só retornou ao ordenamento jurídico com a promulgação do código de 1940, sendo alterado posteriormente pela Lei 10.803/03[2].

 

 

 

 

 

1.1           Status libertatis como bem jurídico protegido

 

No período em que a escravidão era permitida no Brasil, o escravo não tinha o direito à liberdade, estando sujeito ao seu senhor, como propriedade do mesmo, sendo, portanto considerado coisa, podendo inclusive ser vendido ou doado sem seu consentimento. Sendo assim, crime era o plágio que punia a escravidão da pessoa livre[3].

Diferentemente, no crime de redução à condição análoga a de escravo é justamente liberdade pessoal, em especial o status libertatis. Tendo em vista ser um crime personalíssimo é inalienável não podendo o indivíduo consentir o crime[4].

Alguns crimes acabam sendo absorvidos pela conduta do art. 149 do CP; é o caso da ameaça, do constrangimento ilegal, do cárcere privado. Assim, a retenção forçada do trabalhador, pelo agente, no local de trabalho, privando‐o de sua liberdade de ir e vir, em razão de dívida contraída, não configura o crime do art. 148, mas sim o delito mais grave previsto no art. 149 do CP, já que a restrição da liberdade da vítima foi realizada com o fim de reduzi‐la a condição análoga à de escravo.

 O que se visa proteger, na verdade, é a liberdade sob o aspecto ético-social, a própria dignidade do indivíduo.

Sendo assim, reduzir alguém a essa condição fere, acima de tudo o princípio da Dignidade humana, destruindo a própria dignidade do homem, anulando a sua personalidade e reduzindo-o a condição de coisa, assim como do escravo[5].

Ademais se faz necessário destacar que a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) proclama, em seu art. 6º, a proibição da escravidão e da servidão. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, do mesmo modo, proscreve-as em seu art. 8º[6].

Por fim uma ressalva deve ser feita, nas hipóteses em que o ofendido se põe em situação de servidão, sem qualquer iniciativa do acusado, dependendo das circunstâncias, o consentimento pode excluir o crime[7].

 

2.              A Lei 10.803/03 e a restrição ao alcance do tipo.

 

Anteriormente a lei 10.803/03, a conduta típica era mais ampla já que a conduta era reduzir alguém à condição análoga à de escravo sem especificar o modus operandi. Porém, com a sua vigência, o delito deixou de ser um crime de forma livre e passou a trazer uma infinidade de meios e formas de execução.

A nova tipificação do tipo penal vai de encontra a pretensão de seus autores, na medida em que limita o alcance do dispositivo, com isso, deixou de ser um crime comum, não exigindo qualquer condição ou qualidade especial do sujeito ativo, passando a ser crime especial quanto ao sujeito passivo, exigindo deste uma relação ou vínculo trabalhista com o sujeito ativo. O modo e a forma de execução que antes era livre, só poderão ser executados segundo as formas prevista no caput e §1º.

Sendo assim, tal mudança restringiu o alcance do tipo, transformando-o de forma vinculada na medida em que a lei resolveu tipificar expressamente as formas de realização da conduta criminosa, sendo elas: submissão a trabalhos forçados; submissão a jornadas exaustivas; condições degradantes de trabalho; restrição de locomoção em razão de dívidas contraídas[8].

Contrario o que diz alguns autores, André Estefan diz que a mudança ao tornar o tipo penal fechado, trouxe mais segurança à norma penal[9]:

“A modificação operada em 2003, sem dúvida, trouxe maior grau de segurança a norma penal em apreço, ao torna-la tipo penal fechado. O legislador acabou incorporando, no texto legal, a compreensão dada ao dispositivo pela doutrina e pela jurisprudência, nos mais de sessenta anos de vigência da norma.

3.              Bem jurídico tutelado como determinante para definir a competência.

Apesar de a Doutrina afirmar que o bem jurídico tutelado é a liberdade[10] e consequentemente a competência seria da Justiça Estadual, ainda há algumas discussões contrárias[11], no sentido de que a Competência seria da Justiça Federal por se tratar também de crime contra a organização do trabalho.

No que diz respeito à Justiça Federal, caberia a esta julgar matérias relacionadas a interesses federais, estabelecendo a Constituição Federal que compete a esta o julgamento das infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral (art.109, IV)[12].

A questão neste caso está relacionada ao questionamento se o delito descrito no art. 149 não seria também um crime contra organização do trabalho, sendo essa de competência da União, como descreve o art.109, VI da CF, in verbis[13]:

“Art.109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

...

VI-os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira.

 Em relação à Justiça Estadual, esta é residual, ou seja, o que não for de competência Federal ou da Justiça Eleitoral e Militar será da mesma[14].

Vale ressaltar que no caso de conflito entre crime federal e delito estadual, havendo conexão ou continência, aquela tem força atrativa sobre esta, ou seja, devem os delitos conectados devem seguir para a Justiça Federal.

 O STF já tem posicionamentos firmados a esse respeito, como veremos a seguir, prevalecendo, portanto, que cabe a Justiça Estadual processar e julgar tal delito.

 

3.1 Competências para julgamento ao crime de redução à condição análoga a de escravo.

Até 2006, os tribunais entendiam que a competência para julgar o crime estabelecido pelo art. 149 do CP era da Justiça Estadual. Porém em novembro de 2006, o STF mudou sua posição sobre o tema, passando a considerar que referido delito se encaixaria na hipótese contida no art. 109, VI, da CF, ou seja, seria um crime contra a organização do trabalho[15], uma vez que, segundo o Ministro Joaquim Barbosa, “viola não só o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também o homem trabalhador, atingindo-o nas esferas em que a Constituição lhe confere proteção máxima, enquadram-se na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto de relações do trabalho[16]”.

Em 2015, houve nova mudança no que diz respeito à competência, tornando-se, novamente, a Justiça Estadual competente para o julgamento do tema sob alegação de que se tratar de um crime contra a Liberdade pessoal e não contra a organização do trabalho como ficou entendido em 2006.

Tendo em vista se tratar de crime contra a liberdade pessoal, no que diz respeito à competência da Justiça Estadual o relator Ministro Cezar Peluso, no recurso extraordinário n° 459.510, entendeu que[17]:

“No caso, parece claro que o que a norma penal está a proteger não é a organização do trabalho, não obstante tenha a dignidade humana como um de seus princípios informadores. O tipo penal da conduta de redução à condição análoga de escravo não é tutelar a organização do trabalho como sistema ou ordem, mas evitar que a pessoa humana seja rebaixada à condição de mercadoria.”

 Indo de encontro à decisão do relator Ministro Cezar Peluso, no que diz respeito à competência ser da Justiça Federal, o Ministro Dias Toffoli, afirma que[18]:

“...não há dúvida de que o art. 149 visa a proteger a dignidade da pessoa humana e do cidadão, ao penalizar e tipificar o delito de redução à condição análoga à de escravo. Mas essa redução à condição análoga à de escravo também atinge a organização do trabalho. Por que atinge a organização do trabalho? Porque a organização do trabalho visa exatamente a consubstanciar o sistema social trazido pela Constituição Federal em seus arts. 7º e 8º, além de os princípios do art. 5º. Seu objetivo é, evidentemente, proteger a pessoa humana e proteger o trabalhador da usurpação de sua força de trabalho. E é obrigação do Estado, em sua organização social e trabalhista, proteger a atividade laboral do trabalhador.”

Neste caso concreto prevaleceu que a competência é da Justiça Estadual por se tratar de crime contra a liberdade da pessoa e não de crime contra a organização do trabalho.

Considerações Finais

Corroborando com que foi mencionado anteriormente, não podemos confundir, portanto, trabalho escravo com o crime tipificado no art. 149 do CP.

Porém, apesar de ter se passado mais de 100 anos da abolição da escravatura no Brasil, ainda assim existem indivíduos sendo submetidos a condições degradantes em seu ambiente de trabalho, sem que nenhuma precaução plausível seja tomada.

Anteriormente a lei 10.803/03, o tipo penal do Art.149 era mais amplo facilitando assim a sua aplicabilidade, já que não restringia o sujeito passivo podendo ser agente do crime qualquer pessoa, já que era um crime de tipo aberto. Sua restrição dificultou sua aplicação, pois se não houvesse uma condição de trabalho entre o agente passivo e ativo.

Com isso abriu-se novas discussões, já que após referida lei determinou o modus operandi, sendo esse determinado pela relação de trabalho entre as os agentes. Portanto, o bem jurídico tutelado pode ter sido ampliado após citada lei, abrangendo não somente a liberdade, mas também a organização do trabalho.

Neste sentido, os tribunais têm enfrentado questionamentos sobre a competência para julgamento do crime, pois, sendo este um crime contra a organização do trabalho seria de competência da Justiça Federal e não da Justiça Estadual. O STF teve varias mudanças de posicionamento, mas por fim, em 2015, decidiu que caberia a Justiça Estadual por se tratar de um crime contra a liberdade somente.

Em relação ao entendimento do STF, entendo que legislador, ao detalhar a forma de execução do crime supracitado, quis proteger tanto a liberdade do sujeito passivo quanto a organização do trabalho quando trouxe as expressões “trabalhos forçados”, “jornada exaustiva”, “condições degradantes de trabalho”, e principalmente quando mencionou “... quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”, e nessa situação a competência seria, logicamente, da Justiça Federal já que está tem força atrativa quando há conflito entre crime de competência Estadual e Federal.

 

[1] Bittencurt, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 2 :crimes contra a pessoa. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 459-460.

[2] Barros, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, v2: crimes contra a pessoa, crimes contra o patrimônio.2ed. São Paulo, Saraiva, 2009. p. 295.

[3] Estefan, André. Direito Penal, volume  2: Parte Especial (arts. 121 à 183). 3 ed. São Paulo, Saraiva, 2015.p.325

[4] Barros, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, v2: crimes contra a pessoa, crimes contra o patrimônio.2ed. São Paulo, Saraiva, 2009. p. 295-296.

[5] Bittencurt, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 2 :crimes contra a pessoa. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 462.

[6] Estefan, André. Direito Penal, volume  2: Parte Especial (arts. 121 à 183). 3 ed. São Paulo, Saraiva, 2015.p.325

[7] Barros, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, v2: crimes contra a pessoa, crimes contra o patrimônio.2ed. São Paulo, Saraiva, 2009. p.296

[8] Barros, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, v2: crimes contra a pessoa, crimes contra o patrimônio.2ed. São Paulo, Saraiva, 2009. p.298

[9] Estefan, André. Direito Penal, volume  2: Parte Especial (arts. 121 à 183). 3 ed. São Paulo, Saraiva, 2015.p.326

[10] Barros, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal v2: crimes contra a pessoa, crimes contra o patrimônio. 2ed. São Paulo.  Saraiva, 2009. p. 295-296

[11] Capez, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 2, parte especial: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos ( arts. 121 à 212). 15 ed. São Paulo. Saraiva, 2015.p

[12] Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo. Atlas, 2015.

[13] Brasil, Constituição da Repúbica Federativa do Brasil: Promulgada

[14] Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e execução. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.p

[15] Estefan, André. Direito Penal, volume  2: Parte Especial (arts. 121 à 183). 3 ed. São Paulo, Saraiva, 2015.p.330

[16] RE 398.041, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. em 30-11-2006, Informativo STF, n. 451.

[17] STF, Tribunal Pleno, RE 459510, Rel. Ministro Cezar Peluso, j. 26-11-2015. DJ. 12-04-2016.

[18] STF, Tribunal Pleno, RE 459510, Rel. Ministro Dias Toffoli, j. 26-11-2015. DJ. 12-04-2016.

  • Art.149
  • Redução à condição análoga a de escravo
  • Competencia

Referências

Barros, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, v2: crimes contra a pessoa, crimes contra o patrimônio.2ed. São Paulo, Saraiva, 2009. 483p

 

Bittencurt, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte especial 2 :crimes contra a pessoa. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2016. 558p

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p

 

Capez, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 2, parte especial: dos crimes contra a pessoa e dos crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos ( arts. 121 à 212). 15 ed. São Paulo. Saraiva, 2015. 688p.

 

Estefan, André. Direito Penal, volume  2: Parte Especial (arts. 121 à 183). 3 ed. São Paulo, Saraiva, 2015. 557p.

 

Nucci, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e execução. 5 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015

 

Oliveira, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo. Atlas, 2015.

 

RE 398.041, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. em 30-11-2006, Informativo STF, n. 451.

STF, Tribunal Pleno, RE 459510, Rel. Ministro Cezar Peluso, j. 26-11-2015. DJ. 12-04-2016.


Karen Barros

Advogado - Pelotas, RS


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