PREVIDÊNCIA COMPLEMENTAR: INSPIRAÇÃO PARA O SUCESSO DE UM SISTEMA MISTO FACE À PEC Nº 06/2019


02/06/2021 às 17h29
Por Marcos Nelson

RESUMO

Este artigo apresenta uma discussão teórica acerca da tentativa de introdução do sistema financeiro de capitalização na legislação previdenciária brasileira ante a Proposta de Emenda Constitucional 06/2019, tomando por base a existência da Previdência Complementar como exemplo de sistema de capitalização na constituição de reservas para garantir o benefício previdenciário.

 

Palavras-chave: Previdência Complementar, capitalização, PEC 06/2019.

 

 

1.      INTRODUÇÃO

 

O presente artigo científico propõe uma discussão teórica à luz da Proposta de Emenda Constitucional nº 06/2019, que, entre diversas mudanças, propôs a implementação do sistema de capitalização como forma de conter o déficit financeiro da Previdência Social. Nesse sentido, cabe realizar um aparte histórico sobre a evolução da Previdência Complementar como subsistema da Seguridade Social, traçando um paralelo que contempla a dura realidade dos trabalhadores brasileiros e a necessidade de construir uma Seguridade Social que realmente atenda ao interesse público. Para tanto, é necessário analisar a ideia do sistema de capitalização sob a óptica da Previdência Complementar como uma forma de autofinanciamento da aposentadoria pelo contribuinte, movimento que vem ganhando força nos últimos tempos.

 

 

2.      CONTEXTO HISTÓRICO

A Previdência Complementar emerge no ordenamento jurídico brasileiro em 1988, com a promulgação da Constituição Federal brasileira, sendo prevista no art. 201, § 7º. No entanto, a Emenda Constitucional 20/1988 alterou o conteúdo original, destinando o art. 202 da CF ao dispor sobre a Previdência Complementar. O dispositivo constitucional prevê que a Previdência Social manterá um seguro coletivo, sendo este de natureza complementar, e a adesão a critério do contribuinte.

            A criação desse subsistema de Seguridade Social tem o cunho de obrigar o Estado a fomentar uma rede de proteção social que possibilite aos cidadãos ter acesso às garantias inerentes aos direitos da personalidade, capaz de realmente atender as necessidades de todos. Entretanto, para entender a importância da Previdência Complementar como modelo inovador de financiamento de benefícios no direito brasileiro, é importante caracterizar o sistema previdenciário brasileiro.

            Inicialmente, Bertrand leciona que: “Quando um homem primitivo, nas brumas da pré-história, guardou um naco de carne para o dia seguinte depois de saciar a fome, aí estava nascendo a previdência”.[1]

            Seguindo essa lógica, a Previdência Social (latu sensu) foi criada para garantir proteção estatal ao trabalhador que atinge a velhice, e não pode mais exercer suas funções[2]. Considerando que um curso de vida natural leva o ser humano a atingir a velhice, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, era necessária a intervenção estatal, criando assim um modelo em que de alguma forma fosse garantido os rendimentos dos indivíduos que compõem a massa trabalhadora no país.

            Segundo o doutrinador Rômulo Pereira Amaro[3], o sistema de previdência brasileiro está apoiado em três mecanismos, quais sejam: no nível da subsistência (que é a proteção social organizado pelo Estado, e que abarca todos os trabalhadores); no nível do bem-estar próprio da classe média (que se verifica através do mecanismo de previdência privada que proporcione benefício complementar ao do sistema de previdência social); no nível do conforto (para os mais abastados, a formação de poupança individual, além da observância dos outros mecanismos de previdência).

            Destarte, a Constituição Federal obriga o Estado a garantir o mínimo existencial aos trabalhadores, contudo, a prestação do benefício pelo Ente não necessariamente representará o que foi contribuído pelo segurado, visto que os recursos obtidos pelo Estado para financiar os benefícios partem justamente dos contribuintes.

            Aí, então, encontra-se a importância da Previdência Complementar como forma de manutenção de padrão de vida após a inatividade no trabalho. Segundo consta no site oficial da Previdência, o Regime de Previdência Complementar (RPC) funciona da seguinte forma:

No RPC o benefício de aposentadoria será pago com base nas reservas acumuladas ao longo dos anos de contribuição, ou seja, o que o trabalhador contribui hoje formará a poupança que será utilizada no futuro para o pagamento de seu benefício. Esse sistema é conhecido como Regime de Capitalização.[4]

 Ao instituir o Regime de Previdência Complementar em 1988, o Estado brasileiro sinaliza que a proteção por ele concedida, apesar de permanente, por vezes pode significar diminuição do padrão de vida do segurado, além de causar grande impacto nos cofres públicos. Logo, a instituição de um regime privado estimula os contribuintes a aderirem a um modelo de previdência que não comprometa os cofres públicos, e ainda traga um retorno satisfatório ao segurado.

 

3.      ESTÍMULO ESTATAL PARA A CAPITALIZAÇÃO

Desde a promulgação da Constituição Federal, o sistema previdenciário sofreu bruscas mudanças, o que, pelas medidas tomadas, provocam risco à eficiência do Regime de Repartição no ordenamento jurídico brasileiro.

Destacam-se medidas como o estabelecimento de um teto nominal relativamente baixo para contribuições/benefícios previdenciários e a uniformização do teto entre os dois regimes públicos (RGPS e RPPS). Resta, assim, ao servidor com salário acima do teto do RGPS optar pelo benefício previdenciário complementar, vinculando-se ao fundo de pensão fechado do funcionalismo, votado no segundo mandato do presidente Lula, mas efetivamente regulamentado e implementado na gestão Dilma Rousseff. Ambas as medidas são estratégicas para impulsionar a adesão ao regime de capitalização aberto, ainda incipiente e cuja demanda, embora em alta, parece aquém do que esperaria o mercado. Isso se deve certamente à força do INSS como instituição, que tem o apoio e a confiança da maioria da sociedade brasileira.[5]

As práticas dos governos pós-Constituição de 1988 levam a crer que o objetivo do Estado é modificar o sistema previdenciário para que cada vez menos os segurados sejam dependentes do modelo de repartição, e sejam estimulados a procurar planos de Previdência privada, com vistas a manter o padrão de vida.

Nesse sentido, Fazio[6] esclarece que “Ao contrário das receitas, as despesas previdenciárias tendem a não diminuir, pois os benefícios são definidos em lei e aqueles já concedidos são irredutíveis, mesmo na hipótese de alteração da legislação”.

Ademais, a forma de financiamento da receita destinada ao pagamento dos benefícios de ordem pública é contestada por depender de alguns fatores sociais que estão se alterando. O financiamento ocorre pelo notoriamente conhecido “pacto entre gerações” que, em suma, é a aplicação prática do princípio da solidariedade, no caso, com os segurados da ativa financiando os benefícios dos segurados inativos.

 

Até o ano de 1996, as contribuições de empregadores e de trabalhadores garantiram o pagamento dos benefícios previdenciários do RGPS, sem a necessidade de aportes adicionais da União. A partir de 1997, tais contribuições sozinhas não mais cobriram as despesas previdenciárias, situação que passou a ser denominada de “déficit” do sistema, transmitindo à sociedade a mensagem de que as despesas seriam superiores aos recursos disponíveis para o pagamento.[7]

 

Isso ocorre, pois a Previdência Social se sustenta no modelo de pirâmide etária, isto é, considerando que a maioria da população está economicamente ativa e sustentando a parte inativa. Como explicado, essa lógica se sustentou por certo período, porém logo após a promulgação da Constituição de 1988, o modelo começou a apresentar suas falhas.

Com o aumento da população e da expectativa de vida do brasileiro, e com a proporcional diminuição do número de nascimento de brasileiros ao longo dos anos, a pirâmide etária que sustenta a Previdência começou a sofrer abalos em sua estrutura.

 

Com os resultados da fecundidade apontados pela PNAD, projetou-se que a população brasileira poderá atingir o seu pico em 2030, com um contingente de aproximadamente 206,8 milhões de pessoas. 4 Espera-se para 2040 um contingente menor, 204,7 milhões (Gráfico 3). Esse contingente é resultado, principalmente, da dinâmica da fecundidade e da mortalidade, em curso ao longo do século XX e início do XXI. Ou seja, a diminuição da mortalidade acompanhada pela queda na fecundidade. Comparado à experiência europeia, o movimento de passagem de um estágio de taxas de mortalidade e de fecundidade elevadas a um de mortalidade e fecundidade baixas estaria acontecendo no Brasil em velocidade acelerada.[8]

 

Destarte, a alteração demográfica na sociedade brasileira contribui para o déficit na Previdência, gerando a busca por outros modelos de financiamento, como, no caso, o regime de capitalização, e as previdências privadas. Em contrapartida, o regime de repartição visa garantir o mínimo de suporte do Estado para os cidadãos, o que apenas cumpre o comando constitucional.

 

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta constituição.[9]

 

A Constituição Federal garante o acesso à Previdência Social, de modo que a prestação estatal quanto a essa questão não há como ser retirada, ou alterada de forma que prejudique os cidadãos a receberem o mínimo de garantia de uma aposentadoria justa. Logo, a mudança de regime passa a ser uma opção viável para combater o déficit programado da Previdência, inspirado nos modelos de previdência privada que existem no país.

 

A alteração da forma como se gera o financiamento dos benefícios no país segue um caminho natural, mas é ainda mais impulsionado pelas últimas trocas de governo, que vislumbra ideologias de Estado Mínimo, se posicionando a favor do Regime de Capitalização e de uma reforma na área previdenciária.

 

Nesse sentido, nos últimos anos uma reforma da previdência se tornou iminente, apenas necessitando discutir em quais termos a reforma se daria, vez que o tudo indica que o sistema de proteção social vigente seria substituído. Assim então, como evolução da PEC nº 287 do Governo Temer, surge a PEC nº 06/2019, de iniciativa do Governo Bolsonaro.

A PEC nº 06/2019 tem como principal característica a defesa da privatização do sistema de previdência, nos seguintes moldes:

 

Trata-se da substituição paulatina (e um tanto camuflada), do sistema de proteção social vigente no Brasil desde as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs), de corte bismarkiano e calçado na solidariedade social, pelo sistema privado de capitalização individual, aos moldes das conhecidas cadernetas de poupança. [10]

 

Assim, foi proposta a alteração de alguns dispositivos constitucionais, para que esses pudessem incluir o Regime de Capitalização de forma obrigatória no texto constitucional. O art. 201-A da Constituição Federal, por exemplo, mediante a proposta inicial apresentada na Câmara dos Deputados teria a seguinte redação:

 

Art. 201-A. Lei complementar de iniciativa do Poder Executivo federal instituirá novo regime de previdência social, organizado com base em sistema de capitalização, na modalidade de contribuição definida, de caráter obrigatório para quem aderir, com a previsão de conta vinculada para cada trabalhador e de constituição de reserva individual para o pagamento do benefício, admitida capitalização nocional, vedada qualquer forma de uso compulsório dos recursos por parte de ente federativo.[11]

 

E não só o Regime Geral foi contemplado com a mudança de regime, mas também o Regime Próprio de Previdência Social, que está regulado no art. 40, § 6º da CF, com a proposta de alteração de redação:

 

§ 6º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão para o regime próprio de previdência social o sistema obrigatório de capitalização individual previsto no art. 201-A, no prazo e nos termos que vierem a ser estabelecidos na lei complementar federal de que trata o referido artigo.[12]

 

Veja que, diferentemente da Previdência Complementar, cujo regime adotado também é o de capitalização, a PEC nº 06/2019 visa tornar o regime obrigatório, deixando aos contribuintes a responsabilidade de produzirem os próprios fundos de aposentadoria.

 

4.      CAPITALIZAÇÃO X PROTEÇÃO SOCIAL

 

O Regime de Capitalização para conter o “rombo” da Previdência, defendido pelo atual governo, proporciona alterações nas garantias estatais, inspirado em regimes já colocados em prática em outros países, em especial, o modelo chileno de capitalização privada, desenvolvido e aplicado durante o governo ditatorial de Pinochet, em 1981.

 

Historicamente, tem-se que o governo chileno na época se aliou aos Estados Unidos no que concerne ao liberalismo econômico, que, em sua essência, não vislumbram em primeira ratio a proteção social nos moldes atuais do direito brasileiro. No Brasil, por sua vez, o alinhamento ideológico sempre se deu pela proteção estatal, garantindo através do princípio da solidariedade o cumprimento das garantias previstas acerca dos direitos sociais, previstos na Constituição. Ainda assim, mesmo em governos anteriores, cuja bandeira era a defesa dos direitos dos cidadãos, em especial da classe trabalhadora de baixa renda, houve uma movimentação para estimular a adesão de planos de Previdência Privada, como forma de desafogar os cofres públicos, contudo sem ainda falar em total privatização do sistema.

 

Sobre esse prisma, o fenômeno da privatização da Previdência Social nos países latino-americanos ocorreu por dois fatores preponderantes. Em primeiro lugar, a crise econômica que resultou na falta de capital, e a dependência demasiada dos fluxos de capital estrangeiro para financiar o crescimento. Diante disso, os sistemas previdenciários com o regime de repartição passaram a ser apontados como limitador da estabilidade macroeconômica, configurando uma das principais causas da perda de poupança, o que culmina na necessidade cada vez maior de subsídios para cobrir os gatos entre contribuintes e beneficiários.

 

No Chile, por exemplo, a mudança de sistema ocorreu da seguinte forma:

 

Em 1974, o então governo chileno implantou a cartilha neoliberal e deu início à privatização da previdência social, criando um fundo único para administrar os benefícios previdenciários, fixando um mecanismo geral de reajustamento de benefícios e novos critérios para a concessão desses e, principalmente, reduzindo as taxas de cotização a partir de 1975, com o Decreto-lei nº 2.448, retirando a participação do Estado e dos empregadores, de forma que os trabalhadores passaram a ter a responsabilidade de cotizar o correspondente a 10% de seus rendimentos mensais, através de depósitos em contas individuais de poupança administradas por fundos privados. [13]

 

O modelo adotado retira, de certa forma, a tutela estatal dos pagamentos de benefícios, o que, ainda que não sendo a intenção, culmina na retirada da proteção social, visto que passa a exigir da população uma mentalidade previdente, além de não cobrir situações de dificuldades financeiras que prejudicam as contribuições. Contudo, para os cofres públicos a medida se provou eficiente em um primeiro momento.

 

A reforma da previdência chilena retirou a Seguridade Social como instrumento de redistribuição de renda, obrigação que ficou para o sistema tributário. Com a medida, aos cidadãos chilenos foi atribuída grande responsabilidade acerca da escolha de adesão dos planos de previdência. Para o Estado, entretanto, a vantagem foi enorme:

 

Os reflexos dessas políticas nas contas públicas foram quase imediatos, já que a mudança teve o efeito de reduzir de 34% para 22% o gasto público em relação ao PIB do país. Esse panorama serviu como incentivo para a implementação dos ideais neoliberais em outros países da América Latina e foi aclamado por Milton Friedman como um “milagre econômico”. E, nessa esteira, o caso chileno foi referência para rediscutir o setor e, inclusive, influenciou as recomendações do Banco Mundial, conforme relatório “World Bank”, de 1994.[14]

 

O exemplo chileno foi utilizado como parâmetro inicialmente ainda na década de 1990, quando importantes Emendas Constitucionais foram aprovadas, a mais marcante delas, a Emenda Constitucional nº 20/1998[15], instituindo regras de transição e outras alterações que tiveram, e ainda têm, grande impacto no sistema previdenciário brasileiro. Mais de vinte anos após, o modelo chileno é trazido pela atual equipe econômica do governo brasileiro como um exemplo de sucesso para uma reforma previdenciária visando migração para o regime de capitalização.[16]

 

Todavia, para os cidadãos chilenos a realidade não era tão confortável assim. Segundo dados de organizações independentes, publicados em 2008, grande parte da população sequer participava do sistema, sobretudo em áreas rurais, não realizando os depósitos mensais corretamente, resultando em um número assombroso, indicando que um em cada dois chilenos não teria direito à pensão mínima em 2030.[17]

 

Com o crescimento da economia informal, a instabilidade no emprego e a baixa adesão dos autônomos, que podiam optar por contribuir ou não, o resultado da reforma da previdência do Chile foi equivalente a um tremor de terra. Metade da mão de obra ativa ficou sem nenhum tipo de cobertura. De 18 AFPS, o mercado concentrou-se em seis. O patrimônio das AFPS alcança hoje 40% do PIB. O acesso à aposentadoria ficou restrito a apenas 60% da população adulta, criando uma faixa de cidadãos excluídos do benefício na velhice, isto é, aquela universalidade prometida pelos promotores da privatização de forma alguma foi alcançada pelo novo sistema.[18]

 

O modelo chileno extremamente neoliberal deixou os cidadãos completamente a mercê da proteção estatal, devendo estes, ainda que muitas vezes com pouca escolaridade, ter a total responsabilidade de administrar seus fundos de aposentadoria, através da adesão individual de planos privados. Em decorrência disso houve um crescimento da desigualdade no país, além do aumento da pobreza, visto que grande parte da população de inativos não possuía fundos, e não recebia qualquer assistência estatal.

 

Diante desse contexto, o governo chileno teve que agir para combater a nova crise no sistema previdenciário que pairou sobre o país no início do novo século, resultando na criação de contrarreformas ao sistema. Em 2002, por exemplo, ocorreu a criação de fundos para os filiados voluntários e obrigatórios, utilizando a proporção do investimento realizado por esses na caderneta de poupança. Contudo, a grande reforma da previdência ocorreu em 2008, com a publicação da Lei nº 20.255, modificando o sistema que privatizou por completo a previdência, e retirou a proteção estatal. A reforma trouxe a criação de um sistema de pensões solidário, e aumentou a cobertura de grupos vulneráveis, além de proteger melhor o sistema de capitalização individual.[19]

Ante ao exposto, tem-se que o extremismo na adoção do neoliberalismo quanto ao sistema previdenciário provocou danos equivalentes aos existentes nos sistemas em que o Estado detém toda a obrigação de gerir o pagamento dos benefícios. Félix resume bem a situação vivenciada pelos chilenos:

 

Há ainda dois graves problemas com essa história do Chile. O primeiro é que o Estado foi obrigado a absorver um custo enorme para arrumar a casa e impedir um aumento ainda maior da pobreza. Isso significa déficit e coloca as contas públicas em situação tão difícil quanto antes da privatização da previdência. O pior é que muitos economistas consideram essa segunda reforma “normal”, “um ajuste necessário”, e respondem a isso com um “tudo bem”. Eles ignoram completamente as consequências sociais que o país absorveu desde a privatização da previdência.[20]

 

Diante do exemplo chileno é possível concluir que a simples mudança de sistema para o regime de capitalização não resolverá todos os problemas da Nação. Muito embora a princípio seja algo vantajoso para os cofres públicos, a longo prazo é comprovado que os únicos reais beneficiados serão os administradores dos fundos de pensão e aposentadoria privados, o que foge completamente da proposta de proteção social aos trabalhadores.

 

5.      SISTEMA MISTO COMO SOLUÇÃO

 

Embora no presente artigo tenha sido exposta a fracassada tentativa chilena de total privatização da previdência através do regime de capitalização, não necessariamente a capitalização do sistema está vinculada a privatização do sistema, ou sequer modificar a previdência para estruturá-la em contas individuais. De fato, o regime de capitalização pode ser interessante aos segurados, se feita da forma correta.

 

Inicialmente, é possível observar duas vantagens imediatas do regime de capitalização aos segurados. A primeira vantagem, por sua vez, é a exigência de um número bem menor de contribuições no regime de capitalização comparado ao regime de repartição. A segunda vantagem já foi mencionada nesse artigo, que é o fato de o pagamento dos benefícios não depender de novos contribuintes, que através das suas contribuições por integrarem o RGPS financiariam os fundos para pagamentos de benefício. Na verdade, no regime de capitalização ocorre justamente o contrário. O benefício do segurado é financiado por ele mesmo, através de reservas acumuladas por ele e por seu empregador, além dos resultados de sua aplicação financeira.

 

Quanto à aplicação financeira, esse é o maior risco existente na previdência sob o regime de capitalização, visto que, diferentemente do que ocorre no regime de repartição (onde as contribuições são utilizadas no momento em que são arrecadadas), as reservas no regime de capitalização são aplicadas em fundos de investimento, correndo o risco natural das operações financeiras e do mercado. Ainda assim, o risco de investimento pode ser pequeno, dependendo das aplicações escolhidas.

 

Se a carteira de investimento for composta apenas por títulos de Tesouro Nacional, o risco assumido pela previdência capitalizada será equivalente à possibilidade de não haver o pagamento dos benefícios do RGPS. Afinal, em ambos os casos, trata-se do risco de a União não honrar seus compromissos (risco de solvência do Estado brasileiro). Se na composição da carteira, com vistas a rentabilidades mais elevadas, houver aplicações outras que não os títulos públicos federais, o risco da previdência capitalizada será maior do que no atual RGPS. Hoje, o risco financeiro das previdências capitalizadas brasileiras (os Regimes Próprios de Previdência Social - RPPS, organizados em regime de capitalização coletiva, e os fundos de pensão) é relativamente baixo, pois as respectivas carteiras de investimento são quase totalmente compostas por títulos da dívida da União, que são as opções menos arriscadas disponíveis no país.[21]

 

Nesse sentido, ainda é possível visualizar duas formas de definir como será o valor das aposentadorias recebidas em momento posterior. Por meio da Contribuição Definida (CD), que é baseada em contas individuais, o valor do benefício não é conhecido inicialmente, sendo calculado somente na data de concessão mediante o saldo de uma conta individual de titularidade do segurado.

 

Já o Benefício Definido (BD), é um benefício estipulado na legislação, organizado de forma mutualista, tendo seu valor ou nível estipulado no momento da inscrição do segurado. Tem como característica também o financiamento de forma solidária pelos segurados que cobrem o custo previdenciário.

 

Tais formas diferenciam a capitalização individual da capitalização coletiva, quando estas se colocam à prova dos riscos sociais presentes na previdência capitalizada. Tais riscos são decorrentes de eventos como invalidez ou morte ocorrida durante o período de atividade do segurado, ou até mesmo um maior tempo de sobrevida do mesmo após a concessão da aposentadoria, e a possibilidade de fracasso nos resultados da aplicação financeira escolhida. Diante disso, ainda assim é possível vislumbrar a capitalização coletiva como mais segura aos segurados.[22]

 

Para resumir o impacto dos riscos citados em cada caso, este ocorre da seguinte forma. Na modalidade de Benefício Definido (capitalização coletiva), o sistema que mantém a reserva garantidora é quem tratará de suavizar os riscos para seus filiados. Em caso de necessidade de majoração de contribuições para cobrir os gastos, o aumento será arcado por todos os segurados, pelos empregadores e pelo próprio Estado. Já na modalidade de Contribuição Definida (capitalização individual), os impactos são arcados de forma individual pelo segurado. Logo, se por acaso o período de pagamento superar o previsto, ou houver prejuízo na aplicação financeira, como o benefício é diretamente condizente com o saldo em conta, pode ocorrer de o segurado não ter fundos suficientes para usufruir de sua aposentadoria.

 

São notórios os riscos que a completa capitalização do sistema traz para a sociedade, vez que os segurados estarão sujeitos aos percalços que uma relação negocial com empresas privadas podem proporcionar, além do fato de que muitos simplesmente não possuem recursos para aplicar em fundos de investimento. Ainda assim, a questão demográfica e o déficit apresentado nos últimos anos não permitem que se exclua do sistema previdenciário a possibilidade da criação de fundos de investimento de aposentadoria para os segurados, assim como ocorre com as atuais previdências complementares.            

 

Os regimes de repartição e de capitalização são distintos, possuindo características próprias, vantajosas e prejudiciais tanto para o Estado que os regula, como para os contribuintes. É nesse sentido que Wladimir Novaes Martinez leciona:

 

Assim, frequentemente, o regime de capitalização é o próprio do neoliberalismo, enquadrado como poupança individual e disponível, da iniciativa privada, para o plano do tipo contribuição definida, com baixo nível de solidariedade, hodierno e com tendência a se universalizar. Bom para as prestações programadas. Por outro lado, o regime de repartição simples, ideologicamente seria social-democrático, técnica previdenciária, de iniciativa estatal, para o plano do tipo benefício definido, com elevada solidariedade, ultrapassado no tempo e com tendência a desaparecer. Própria das prestações programadas.[23]

 

É necessário sempre levar em consideração o contexto social vivenciado pelos contribuintes brasileiros, assim como a dificuldade em muitos casos de estipular um limite para a atuação estatal face às garantias previstas em texto constitucional, de modo que não onere os cofres públicos, e não deixe os cidadãos desamparados. O extremismo na forma de encarar o sistema previdenciário sempre será prejudicial, seja pelo lado dos defensores da proteção social, seja pelo lado dos neoliberais. Portanto, a junção dos dois regimes pode ser a solução.

 

A grande questão previdenciária que é discutida hoje se encontra na manutenção dos regimes de repartição. Algumas correntes postulam a conversão total para um regime de capitalização (tendo o Chile como paradigma), outras pugnam por um sistema misto; outras pela manutenção absoluta dos regimes de repartição. O grau de solidarismo do regime de repartição é patentemente maior em relação ao regime de capitalização. Por isso, ponderando-se de um a forma sociológica, o regime de repartição deverá sempre existir. Um regime, porém, não inviabiliza o outro; ao contrário, um complementa o outro.[24]

 

O Regime de Repartição traz o suporte necessário do Estado na garantia dos direitos sociais previstos na Constituição. O Estado, por força de lei, não pode se ausentar de cobrir os eventuais déficits previdenciários, porquanto há a responsabilidade com o provimento do mínimo necessário para que os beneficiários possuam uma vida digna. Ainda assim, pelos motivos expostos no presente artigo, as receitas podem não ser suficientes para cobrir as despesas dos segurados, e certamente, no cenário atual, não são suficientes para garantir aos segurados o mesmo padrão de vida gozado por esses enquanto ativos.

 

Mediante isso, os planos de previdência privada e os regimes de financiamento pelo próprio segurado contribuem muito para que a Previdência Social cumpra seu papel como protetora dos cidadãos, ao mesmo tempo em que os proporciona liberdade de mercado para gerir suas aposentadorias da forma que melhor lhes sirvam. Essa mistura de regimes é vantajosa para todos os segurados, independente da classe por eles ocupada.  

 

Ao se aposentar, principalmente aqueles que desfrutam de um padrão sócio-econômico médio/elevado deparam-se com uma defasagem entre o salário ou vencimentos que recebiam, e os que passam a receber da Previdência Social. Diante desse quadro chega o trabalhador à velhice e se vê compelido a permanecer em atividade a fim de, pelo menos, manter o equilíbrio econômico-social de sua vida, deixando de usufruir o merecido lazer que constitui um dos prismas inerentes à espécie humana e garantido constitucionalmente. A solução para esse quadro é a complementação pelo sistema de Previdência Privada do benefício estatal insuficiente.[25]

                                     

Por todos os lados que se observe a questão previdenciária, resta clara a importância de um sistema que proteja os segurados, e que ao mesmo tempo proporcione a possibilidade de obter fundos condizentes com um padrão de vida digno, condizente com o vivenciado na época ativa.

 

CONCLUSÃO

 

Ante ao exposto no presente artigo, é possível concluir que a realidade previdenciária brasileira depende do equilíbrio entre a proteção social e a liberdade econômica. A segurança proporcionada pelo Estado deve ser simultânea aos riscos de uma operação financeira privada a longo prazo, visto que só assim se garante os parâmetros de um investimento de sucesso, quais sejam, a existência de uma válvula de escape e o risco calculado.

 

Diante da análise histórica da implementação de previdências privadas em outros sistemas previdenciários, há a clara distinção das vantagens e desvantagens existentes e inerentes ao regime, que provocam extremos não contornáveis pelo Poder Público, resultando em gastos igualmente perturbadores. Destarte, a PEC nº 06/2019 deve utilizar os exemplos históricos e a realidade social brasileira para encontrar um cenário de atuação que vislumbre o cumprimento das garantias previstas em lei, assim como desafogue os cofres públicos.

 

Em tempos de tanto extremismo e polarização, é imprescindível que medidas sensatas e razoáveis sejam aplicadas, de modo que a balança que regula os interesses públicos e estatais esteja constantemente equilibrada e em harmonia. A Previdência Social está no primeiro patamar das áreas vitais que compõem as necessidades da sociedade, até mesmo superando o direito à saúde, visto que como trata das finanças de um contribuinte inativo, está diretamente ligada à saúde, à alimentação, à subsistência do segurado.

 

No caso, ambos os regimes amplamente citados devem coexistir na sociedade, assim não é possível proteger os cofres públicos dos déficits existentes, e ao mesmo tempo garantir a proteção social. Essa proteção social não pode vir com o risco iminente da falta de recursos afetar justamente o pagamento dos benefícios que protegem os segurados. Por outro lado, a capitalização pode provocar aos segurados uma insegurança jurídica, inerente das relações privadas que visam lucro.

 

Portanto, a chave para o sucesso do sistema previdenciário brasileiro passa pela análise do que foi feito até o momento em outros países e até mesmo no Brasil. As previdências complementares, por exemplo, são uma amostra de que a mistura de proteção social e liberalismo econômico geram frutos tanto para o Estado quanto para os contribuintes. Nesse sentido, é importante criar a consciência na população brasileira de que, muito embora o Estado tem o dever de garantir aos cidadãos os direitos sociais, a real dignidade só será alcançada com o investimento privado, servindo como válvula de escape a um Estado protetor dos interesses da coletividade.  

 

 

 

  • Previdência Complementar
  • Capitalização
  • PEC 06/2019

Referências

[1]RUSSEL, Bertrand. Ética e política na sociedade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p. 167, apud LEITE, Celso Barroso (Org.), Um século de Previdência Social: balanços e perspectivas no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983, p. 16, apud CAMPOS, Marcelo Barroso Lima Brito de. Regime próprio de Previdência Social dos servidores públicos. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 36.

[2]AMARO, Rômulo Pereira. Proposta de regra de reajuste: previdência complementar. 1º ed. Curitiba: Appris, 2016. p. 27

[3] Id. Ibid. p. 28

[4]MINISTÉRIO DA ECONOMIA.   O que é Previdência Complementar. Disponível em: <http://www.previdencia.gov.br/a-previdencia/previdencia-complementar/o-que-previdncia-complementar/>. Acesso em: 04 set. 2019.

[5]LAVINAS, LENA  e  ARAUJO, ELIANE DE. Reforma da previdência e regime complementar. Brazil. J. Polit. Econ. [online]. 2017, vol.37, n.3 [cited  2019-09-04], pp.615-635. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31572017000300615&lng=en&nrm=iso>.Acesso em: 04 set 2019

[6]FAZIO, Luciano. A Capitalização e o Regime Geral de Previdência Social: Elementos de Análise. 2018. Disponível em: <https://www.diap.orgb.br/images/stories/fazio-previdencia-capitalizada.pdf>. Acesso em: 04 set. 2019.

[7]Id, Ibid.                p. 2.

[8]IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Primeiras Análises: Tendências Demográficas.  Brasília: Ipea, 2010. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/101013_comunicadoipea64.pdf>. Acesso em: 05 set. 2019.

[9]BRASIL, 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: 1988.

[10]SERAU JUNIOR, Marco Aurélio; COSTA, José. Os pontos nefastos de ancoragem da nova Reforma Previdenciário-Assistencial (PEC 6/2019). In: Direito Previdenciário em Tempos de Crise. FERNANDES, Ana Paula; SANTOS, Roberto; SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Belo Horizonte: IEPREV, 2019. p. 29          

[11]BRASIL, 2019. Proposta de Emenda Constitucional nº 06/2019. Brasília: Câmara dos Deputados, 2019.

[12]Id. Ibid. 2019.

[13]BRAGA, Juliana Toralles dos Santos. Reforma previdenciária: neoliberalismo versus direitos sociais previdenciários. Qual caminho desejamos tomar? Curitiba: Juruá, 2018. p. 86.

[14] MESA-LAGO, Carmelo; MÜLLER, Katharina. Política e reforma da previdência na América Latina. In: A reforma da previdência social na América Latina. Vera Schatan Pereira Coelho (Org). Rio de Janeiro: FGV, 2003.

[15]A Emenda Constitucional nº 20/1998 modificou o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências. No que se refere ao RGPS, ela substituiu a opção “tempo de serviço” pelo “tempo de contribuição”; eliminou a aposentadoria proporcional; desvinculou os benefícios de valor superior ao salário mínimo da regra de indexação deste; e estabeleceu um teto nominal para os benefícios previdenciários, rompendo com a regra vigente do teto de 10 salários mínimos. Esta última medida foi estratégica para impulsionar a adesão ao regime de capitalização aberto, ainda incipiente e pouco demandado pela população.

[16]BRAGA, Juliana Toralles dos Santos. O modelo chileno de Capitalização individual pode servir de paradigma para o Brasil? In: Direito Previdenciário em Tempos de Crise. FERNANDES, Ana Paula; SANTOS, Roberto; SERAU JUNIOR, Marco Aurélio. Belo Horizonte: IEPREV, 2019. p. 349.                

[17]GIANINI, Tatiana. A reforma da reforma chilena. Revista Exame. São Paulo: Abril, 06 mar. 2008. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/revista-exame/edições/913/noticias/a-reforma-da-reforma-chilena-m0153428. Acesso em: 07 set. 2019.

[18]FELIX, Jorge. A previdência do Chile e o “exagero do neoliberalismo”. Revista Brasileiros. São Paulo: Brasileiros Editora Ltda. 02 de junho de 2016. Disponível em: <http://brasileiros.com.br/2016/06/previdencia-chile-e-o-exagero-neoliberalismo/. Acesso em: 07 set. 2019.

[19]BRAGA, Ibid.

[20]FÉLIX, Ibid.

[21] FAZIO, Luciano. A Capitalização e o Regime Geral de Previdência Social: Elementos de análise. 2019. Disponível em: <https://www.diap.org.br/images/stories/fazio-previdencia-capitalizada.pdf>. Acesso em: 08 set. 2019.

[22]FAZIO, Op. cit.

[23]MARTINEZ , Wladimir Novaes. Primeiras Lições de Previdência Complementar. São Paulo: LTr, 1996.

[24]WEINTRAUB, Arthur Bragança. Coexistência do Regime de Repartição com o Regime de Capitalização. São Paulo: 2002. Disponível em: <file:///C:/Users/Usuario/Downloads/67542-Texto%20do%20artigo-88964-1-10-20131125.pdf>. Acesso em: 09 set. 2019.

[25] BALERA, Wagner. Curso de Direito Previdenciário. 1 ed. Jutuaba-MG: 1988. Ltr. p. 140.


Marcos Nelson

Advogado - Cachoeiro de Itapemirim, ES


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