Com o nítido avanço científico da sociedade, especialmente após a segunda guerra mundial, um dos setores da atividade humana que mais se desenvolveu foi, sem dúvida, o de transportes.
Nesse prisma, o transporte tornou-se instrumento primordial para o cumprimento das funções econômicas e sociais na atualidade.
O mestre Sérgio Cavalieri Filho, em sua obra Programa de Responsabilidade Civil, aduz que “de todos os contratos, nenhum terá maior relevância social e jurídica na atualidade do que o contrato de transporte”.
Inúmeras pessoas são transportadas diariamente de casa para o trabalho e vice-versa, principalmente nas grandes metrópoles, produzindo um grande número de problemas sociais e jurídicos. À guisa de exemplos, citase a superlotação nas estações rodoviárias, vendas de passagens em quantidade acima da permitida para capacidade legal dos passageiros e acidentes de trânsito.
Por sua vez, de acordo com o artigo 730 do vigente Código Civil, pode-se definir contrato de transporte como aquele em que “alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas”.
Além disso, todo contrato de transporte possui, implicitamente, uma cláusula de incolumidade. Em suma, entende-se por cláusula de incolumidade o dever que tem o transportador de conduzir o passageiro, são e a salvo até o lugar de destino.
Isso quer dizer que o transportador de pessoas não é somente obrigado a tomar as providências e cautelas necessárias para o bom êxito acerca do quanto pactuado com o passageiro, mas obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom sucesso no cumprimento do avençado entre as partes.
Nesse contexto, extrai-se que a finalidade precípua desse contrato não é exclusivamente transportar um passageiro, mas sim executar uma obrigação de resultado, isto é, o ônus que tem o transportador de entregar o contratante/viajante no local de destino combinado, de forma segura e incólume.
O rompimento desta obrigação impõe o reconhecimento da responsabilidade objetiva do transportador, o qual deverá indenizar o passageiro independentemente de ter agido ou não com dolo ou culpa (devendo está presente apenas a conduta, o resultado danoso e o nexo de causalidade), pois realiza uma atividade de consumo, motivo pelo qual se aplicam as normas do Código de Defesa do Consumidor - CDC.
Nesse aspecto, ponderam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, que “(...) o transportador assume uma obrigação de resultado – e isso também serve para o transporte de pessoas – (...)”. Continuando, aduzem: “(...) veio previsto pelo Código de Defesa do Consumidor, que prevê a responsabilização objetiva do fornecedor de serviço (art. 14), facilitando, desta maneira, a compensação devida à vítima”.
Não bastasse a incidência do CDC, o transportador de passageiros desenvolve, indiscutivelmente, uma atividade de risco, aplicando-se assim, as regras da responsabilidade sem culpa, conforme dispõe o parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002, in litteris: “Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”.
Baseado nessas premissas, Sérgio Cavalieri Filho, assevera que “a melhor doutrina e jurisprudência evoluíram no sentido de reconhecer a responsabilidade objetiva ao transportador, fundada na teoria do risco”.
Dito isso, ocorrido algum acidente (conduta do transportador) que lesionou o passageiro/viajante (dano), estará configurada a responsabilidade objetiva do transportador, tendo em vista a aplicação do CDC e a incidência da teoria do risco, únicos institutos compatíveis com a cláusula de incolumidade e segurança, implícita no contrato de transporte.
Entrementes, quando falamos em transporte puramente gratuito, vulgarmente denominado de carona, não será aplicado as normas do contrato de transporte propriamente dito.
É o que reza o art. 736 do Código Civil de 2002 assevera: “não se subordina as normas do contrato de transporte o feito gratuitamente, por amizade ou cortesia”.
Dessarte, na dicção do preceptivo legal alhures mencionado, puramente gratuito é o transporte que é feito no exclusivo interesse do transportado, por mera cortesia ou amizade do transportador.
Neste caso, havendo acidente e dano causado ao tomador da carona, a doutrina majoritária aponta para aplicação das regras da responsabilidade aquiliana ou extracontratual.
Isso quer dizer que o juiz, deverá, nos termos do art. 186 do Código Civil de 2002, apurar a culpa (em sentido lato) do condutor para efeito de impor-lhe a obrigação de indenizar o passageiro/viajante.
Aliás, o STJ já tem um posicionamento firmado quanto a esta questão, o qual se encontra exteriorizado pela Súmula 145, in verbis: “no transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave”.
Contudo, esse entendimento é rechaçado pelos mestres Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Para esses renomados civilistas, essa Súmula deve ser repensada, “sobretudo pelo fato de o novo Código Civil não estabelecer essa restrição”.
Noutro vértice, há autores que consideram o transporte puramente gratuito em um contrato atípico. Outros entendem tratar-se de um contrato benéfico, em que o transportador, a quem o contrato não favorece, em caso de inadimplemento responde somente por dolo, nos moldes do art. 392 do Código Civil de 2002.
Na realidade, quando alguém transporta outrem por mera cortesia, não tem a menor intenção de solenizar um contrato. As circunstâncias que envolvem o fato não caracterizam uma relação negocial, nem configuram vínculo jurídico convencional. Há simples e tão somente ato de liberalidade.
Dessa forma, a solução jurídica mais equânime, à evidência, é a aplicação dos princípios da responsabilidade aquiliana ao ilícito decorrente do transporte puramente gratuito, posto que este não configura, na espécie, contrato de transporte, tampouco contrato benéfico passível de enquadramento previsto no art. 392 do Código Civil de 2002.
Portanto, o transporte puramente gratuito não deve ser encarado como um negócio jurídico, e sim como ato de simples liberalidade por parte do transportador/condutor do veículo.
Dessa forma, o motorista que oferece uma carona a um amigo, e momento depois o veículo tomba ou colide com outro, só poderá ser compelido a indenizar os danos causados se for comprovada sua conduta dolosa ou culposa, aplicando-se, in casu, as regras da responsabilidade civil aquiliana.
FONTE: JORNAL DIREITOS - Link: http://www.jornaldireitos.com/ver_artigos.php?artigo=245