Política de religião: uma combinação desastrosa


02/10/2018 às 15h55
Por Thiago Vasconcelos Pereira

"Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus".

Nada melhor que uma frase bíblica para defender a laicidade do Estado, não é mesmo? Diante do que temos visto e experimentado enquanto sociedade e há poucos dias de novas eleições, esta discussão parece pertinente.

É impressionante. A fusão e confusão existente entre política e religião sempre existiu. Acredito que desde que se definiu a existência de um Estado minimamente organizado, essa junção se fazia presente.

Do antigo Egito até os dias atuais, muita coisa aconteceu. Diversos foram os períodos memoráveis, bem como sombrios da história da humanidade. E desde de que o homem resolveu se organizar em sociedade, a presença da religião na política, bem como a celeuma advinda desta relação, de fato, já se mostrava presente.

Ainda hoje precisamos discutir este fato e é, justamente isso que me proponho agora.

Pois bem.

O homem, por natureza, é um ser político – conforme determina Aristóteles -, na medida em que necessita viver em coletividade. Todavia, esta convivência é naturalmente conflituosa e não poderia deixar de ser, ao passo em que cada um possui em si, valores intrínsecos que, não necessariamente, confundem-se com os valores do próximo.

É neste contexto que surge a política. Através do Estado, como o leviatã descrito por Hobbes, a política surge como mediador social. Se manifesta como artifício de controle e pacificação do homem, trazendo ordem ao caos.

Lado outro, a religião tem papel similar. Contudo, se manifesta de forma diversa.

A religião surge, a meu ver, da necessidade do homem em entender manifestações as quais não são atribuídos pensamentos lógicos. Situações da natureza, do cotidiano.

Talvez a religião tenha o papel fundamental de dar ao homem um sentido para a sua existência. A crença no divino é reconfortante. Acreditar numa força, numa entidade maior, num Deus, traz à nossa existência um propósito. Pelo menos o afago de acreditar que a existência não é um acaso e, portanto, não é vã.

Neste sentido, a religião também ocupa papel de mediador social, mas por outra razão. Os conceitos trazidos pela religião determinam comportamentos. Bem e mal; céu e inferno; Deus e Diabo, conflitos existentes, aparentes e que, por si só, acabam por limitar ações e ensejar crenças.

Todo este contexto transforma a religião num importante movimento de controle social e, portanto, aquele que detém conhecimentos religiosos e “controla” a religião, acaba por influenciar, controlar e, por vezes, até determinar o pensamento daquele que o segue.

É aí que mora o problema. Explico.

Pelo que foi acima dito, fica fácil perceber que política e religião tem traços muito comuns, mas uma diferença muito importante: Enquanto a fé cuida do divino (leis de Deus) de forma particular e, portanto, encontra-se no âmbito privado de cada um; a política se preocupa com o profano, com as leis mundanas (leis do homem) e é, justamente por isso global, universal e, portanto, atinge a todos, independente da sua vontade.

Sem sombra de dúvidas foi visando a solução para este conflito que a nossa Constituição acabou por adotar a laicidade do Estado. Vejamos.

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público".

Quero aqui deixar claro que, dizer que o Estado é Laico, não significa dizer que o Estado é Ateu. Pelo contrário. A laicidade do Estado garante, em verdade, a liberdade religiosa. Permite que num país gigantesco como é o nosso e, completamente plural - como não poderia deixar de ser -, seja garantida a liberdade de crenças e credos e manifestações religiosas ou a própria ausência de religião.

Pois bem. Avancemos ao problema. E o dividirei em duas etapas. A primeira, denominarei (campanha) e a segunda (ativismo).

A primeira etapa (campanha), perpassa pelo momento em que a religião é utilizada como palanque eleitoral.

Em verdade, o que se vê são candidatos utilizando a fé e, portanto, a dominação que ela pode causar, para angariar votos para a sua campanha, sob o argumento de ser “cristão” - Sobre isso, o próprio Ministério Público já se manifestou -.

Não são raras estas situações. O candidato utiliza a fé, o místico para induzir aquele que acredita em suas palavras a dar-lhe o voto.

Particularmente, fora o fato de ser completamente ilegítimo e nocivo, penso que em muitos destes casos, estes candidatos apenas utilizam isso de forma demagógica, retórica, hipócrita e indevida. Me parece que o falso moralismo impera.

Ademais disso, o verdadeiro problema aqui nesta etapa, é o desequilíbrio que estas ações causam. Utilizar a fé como palanque eleitoral, pode gerar um “benefício” do ponto de vista prático para aquele que o faz, já que o põe em vantagem diante dos seus concorrentes diretos ao cargo que pleiteia.

Como se já não bastasse o problema criado na campanha; existe ainda o problema criado na segunda etapa (ativismo), quando este candidato que, após eleito, passa a buscar, através de ativismo político, a incorporação de sua ideologia e crença para toda uma população. Explico.

Todos nós já nos deparamos com alguma manifestação religiosa em qualquer repartição pública, correto? Frases que citam Deus na nossa Moeda e ainda a citação de Deus no próprio Preâmbulo da Constituição – ainda que não possua força normativa -.

Parecem coisas pequenas, não é verdade? De fato, a meu ver o são. Todavia, estas pequenas coisas acabam por abrir precedente para situações muito mais complexas e preocupantes como a crescente chegada de líderes religiosos ao Congresso Nacional e a verdadeira criação de uma bancada religiosa.

O problema não é o fato de que estas pessoas tem se candidatado e sido eleitas a estes cargos, afinal, estamos em uma democracia. O problema surge quando estas pessoas não estão lá defendendo a laicidade do Estado e, portanto, a possibilidade de sua livre manifestação de crença e credo em seu âmbito privado, mas estão sim levantando bandeiras de cunho particular e tentando impor à toda uma sociedade aquilo que acham ser o certo (ativismo).

A verdade é que estas bancadas tem tentado impor seus dogmas em um país completamente plural, gigantesco e laico. Em outras palavras, o que tem tentado estas pessoas é a imposição de uma interpretação de Lei Divina (portanto, lei esta que somente diz respeito ao âmbito privado de cada um, no caso, para aqueles que em Deus acreditam), para que estas passem a reger nossa sociedade, aplicando dogmas religiosos naquilo em que não é competência da religião.

Veja, eu não estou aqui dizendo que a religião não tem seu papel. Tem e é fundamental, por diversos fatores, inclusive para a manutenção de certa ordem. Contudo, a partir do momento em que dogmas religiosos são utilizados como molde para o legislador ou para o controle do que é legislado, temos um problema. E isso não é nenhum exagero.

Os exemplos são vários: Desde a possibilidade do ensino de religião em escolas públicas – ainda que ao argumento de ser facultativo, plural e etc.- (não acho que funcione); discussão acerca do aborto; dos avanços e conquistas sociais a casais do mesmo sexo, dentre outros.

A verdade é que tais bancadas religiosas têm freado, através de seus preceitos religiosos, pleitos de diversas ordens, que buscam verdadeiros avanços sociais e que são pautados na própria democracia. Ao mesmo tempo, em que a mesma bancada religiosa levanta as suas próprias bandeiras – demasiadamente conservadoras, é necessário dizer -.

O que parece é que, enquanto a própria bancada religiosa acusa outros movimentos de buscarem “privilégios”, na verdade são estes os privilegiados.

A realidade, é que estas bancadas religiosas não estão ali defendendo a laicidade do estado e a sua livre manifestação em seu âmbito particular. Estas bancadas estão ali querendo impor seus dogmas e o pior é que vem conseguindo. E isso é MUITO grave.

Nós somos um povo plural, com diversos credos, crenças, onde o sincretismo, verdadeiramente, se faz presente. A imposição de determinados conceitos ou este “freio de mão puxado” para determinados temas que precisam ser discutidos, é que me parecem algo muito prejudicial à esta sociedade e a esta democracia.

Como disse anteriormente, a religião é algo muito pessoal. As crenças são de cunho particular. Tentar impor a uma coletividade situações advindas de crenças pessoais, religiosas não parece algo razoável. Da mesma forma que não permitir, por conta destas mesmas crenças, que avanços sociais sejam atingidos. Tudo isto é, verdadeiramente, prejudicial à coletividade.

É fato. Precisamos evoluir enquanto sociedade. Mas precisamos desenvolver esta capacidade evolutiva através do diálogo, acomodando sincretismos e lançando mão, sobretudo, do bom senso.

É por este motivo que digo que a laicidade do Estado está em perigo. Ora, todas as vezes que alguém se utilizou do místico para fazer política e, portanto, ter duas esferas de poder a seu favor, só tivemos um resultado: DESASTRE.

Digo isso baseado em fatos. Para não ser aqui prolixo e estender ainda mais este pensamento, deixo apenas dois exemplos: Inquisição e Estado islâmico.

Quando afirmo que a nossa laicidade está em perigo, não quero ser radical. Quero apenas alertar para o que vem sendo feito e o que eu vejo como afronta à política, à democracia e, portanto, à própria laicidade do Estado.

Se você é seguidor de algum dogma religioso. Ótimo, pratique seus costumes em âmbito privado, pois a laicidade do estado lhe garante isto. Mas não tente impor suas crenças à coletividade. Historicamente isto nunca deu certo e, certamente, não será agora o case de sucesso.

A verdade é que precisamos diferenciar, de fato, o que é Estado (política) do que é fé (religião) e, para isso, precisamos eleger pessoas capazes de pensar e fazer isso. Do contrário, estaremos indo de encontro ao estado democrático de direito e indo com tudo em direção a um horizonte novamente totalitário – sob o pretexto da fé, moral e bons costumes -, reeditando histórias de vários séculos atrás, em pleno século XXI.

O que acredito é que o homem é livre, pensante e, portanto, dotado de livre-arbítrio. Fazer ou deixar de fazer algo é uma decisão pessoal de cada um. Se algo é tido como moralmente errado para uma sociedade, ainda assim cabe ao homem decidir faze-lo ou não, sob pena de recair sob as leis do homem.

Sobre estas mesmas leis, acredito que estas devam ser criadas baseadas na democracia, de forma plural, de maneira que o dissenso existente se torne consenso. E para isso não se deve levar em consideração qualquer dogma do ponto de vista religioso. (Utopia? Provavelmente).

Para aqueles que creem em Deus, como eu, esta peneira do certo e errado possui, ainda outro nível. O moral, baseado nas Leis de Deus. Neste ponto, específico, é levado em consideração a análise particular de cada um. Fazer ou deixar de fazer algo, porque segundo as leis de Deus, isto está errado.

Mas veja, este segundo nível é particular, privado e, portanto, não deve ser imposto a ninguém. Hoje, não temos mais espaço para imposições de qualquer natureza, tampouco temos espaço para que freios religiosos atravanquem o desenvolvimento social. Devemos, ao contrário, buscar discussões, diálogo. Imposições já se mostraram falhas.

Assim, é simples conceber que não há outra alternativa senão a completa e absoluta cisão entre política e religião. Não podemos aceitar, enquanto sociedade, que os dogmas de qualquer religião sejam utilizados como molde para legislar ou utilizados como controle da legislação que é elaborada.

Se a democracia ainda não atingiu o que esperávamos, devemos buscar sua evolução, consertar os erros que cometemos e aperfeiçoa-la. Jamais ir contra esta marcha, sob pena de incorrermos, novamente, em erros anteriormente cometidos.

Portanto, sejamos lúcidos, já que somente assim atingiremos a justiça a ponto de “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, sem impor nada a ninguém e garantindo a evolução social que buscamos.

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Thiago Vasconcelos Pereira

Advogado - Irecê, BA


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