A DIVULGAÇÃO NOMINAL DA REMUNERAÇÃO DOS SERVIDORES PÚBLICOS E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PUBLICIDADE E DA INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE E DA VIDA PRIVADA


14/05/2015 às 13h34
Por Camilla Santos Torrecillas de Almeida

Sumário: 1 Introdução; 2 Da Lei de Acesso à Informação e sua regulamentação; 3 A divulgação nominal da remuneração dos servidores públicos e os princípios constitucionais da publicidade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada; 3.1 Do princípio da publicidade; 3.2 Da inviolabilidade da intimidade e da vida privada; 3.3 Da regulamentação da Lei de Acesso à Informação e a colisão dos princípios constitucionais da publicidade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada; 3.4 Entendimento jurisprudencial; 4 Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO

A Lei n. 12.527/11, denominada Lei de Acesso à Informação, popularmente conhecida como Lei da Transparência, nasceu com o objetivo de proporcionar à população acesso simplificado a todos os dados e informações tutelados pela Administração Pública.

Importa anotar que muitos foram os normativos criados para regular a matéria, antes da edição da legislação em estudo. Em 1991, passou a vigorar a Lei n. 8.159/91, que dispôs sobre a política nacional de arquivos públicos e privados. Em 2005, a parte final do inciso XXXIII do art. 5º da CF/88 foi regulamentada pela Lei n. 11.111/05, que regulou o acesso a documentos públicos cujo sigilo fosse imprescindível à segurança da sociedade e do Estado, hoje revogada pela Lei 12.527/11. Além disso, inúmeras foram as normas setoriais expedidas com o objetivo de abarcar matérias ligadas ao acesso a informações públicas.

No âmbito federal, a Lei n. 12.527/11 foi regulamentada por meio do Decreto n. 7.724, de 16 de maio de 2012. No círculo estadual, alguns entes optaram pela criação de leis estaduais para o trato da matéria, tal como o Estado do Espírito Santo, nos limites da Lei Estadual n. 9.871/12. Outros, no entanto, fizeram-na valer através de decretos, assim como o Estado do Rio Grande do Sul, mediante Decreto n. 49.111/12 e o Estado de Minas Gerais, através do Decreto n. 45.969, de 24 de maio de 2012.

Muito embora a Lei da Transparência tenha amplificado o acesso à informação, é possível aferir, a partir de sua regulamentação, notadamente no âmbito federal, por meio do decreto supramencionado, no que diz respeito à sua aplicação, uma colisão entre princípios constitucionais da publicidade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada.

Sendo assim, o presente trabalho visa abordar, sob um prisma legal e prático, a pungente questão de se harmonizar os bens jurídicos em conflito, de forma a garantir a eficácia, aplicabilidade e permanência da Lei 12.527/2011 na ordem jurídica.

2 DA LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO E SUA REGULAMENTAÇÃO

De iniciativa da Câmara dos Deputados Federais, a Lei 12.527, publicada em 18 de novembro de 2011, popularmente conhecida como Lei da Transparência, objetivou regulamentar a gama de direitos inerentes ao acesso à informação pública, abarcados pela Constituição Federal, desde 1988.

Antes de adentrar no tema proposto, cumpre destacar que o texto constitucional assegura o amplo acesso às informações públicas. Além disso, a Carta maior conferiu legitimidade ao poder legislativo para tratar assuntos relacionados à matéria. O teor dos dispositivos abaixo transcritos demonstra isso:

Art. 5°. Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da Lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...]

§3°. A lei disciplinará as formas de participação do usuário a administração pública direta e indireta, regulando especialmente:

[...]

II. O acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no artigo 5°, X e XXXIII. (BRASIL, 1988).

Por fim, o § 2º do art. 216 da Constituição Federal de 1988 aduz o seguinte:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

[...]

§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. (BRASIL, 1988).

Com o advento da Lei de Acesso à Informação, a regra passou a ser a publicidade dos dados resguardados pela Administração Pública, conforme se verifica:

Art. 3° Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:

I - observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;

II - divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações;

III - utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação;

IV - fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública;

V - desenvolvimento do controle social da administração pública. (BRASIL, 2011).

Da análise da Lei 12.527, pode-se aferir que os procedimentos assentados no texto normativo devem ser observados não somente pela União, mas também pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, inclusive as Cortes de Contas, Judiciário e Ministério Público, autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração.

A mencionada Lei versa sobre vários assuntos, dentre os quais o dever de prestar orientação sobre os procedimentos para a consecução de acesso, bem como sobre o local onde poderá ser obtida a informação almejada. Assim, todos os órgãos e entidades públicos ficam obrigados a manter um Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), por meio do qual serão disponibilizadas informações relacionadas, principalmente, ao registro das competências e estrutura organizacional, endereços e telefones das respectivas unidades e horários de atendimento ao público, registro de qualquer repasse ou transferência de recursos financeiros, registro das despesas, informações concernentes a procedimentos licitatórios, inclusive os respectivos editais e resultados, e também todos os contratos celebrados.

E, para o cumprimento do texto em análise, é necessária a ingerência direta do órgão administrativo, propiciando o cumprimento efetivo da norma. Tal medida encontra respaldo no que preceitua o art. 84, inciso IV da CF/88, o qual determina ser de competência do Executivo a expedição de normas complementares, conforme se constata:

Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:

[...]

IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. (BRASIL, 1988).

Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello ensina que:

[...] caberá regulamento somente quando houver campo de atuação administrativa, isto é, quando o cumprimento da lei carecer de uma atuação desta ou de que lhe seja objeto a fim de oportunizar condições para a fiel execução das leis. Da mesma forma, nos casos em que inexistir liberdade administrativa a ser exercitada – discricionariedade –, não haverá razão de ser para regulamentos que sejam mera repetição da lei ou desdobramento do que nela constar sinteticamente. (MELLO, 2011, p. 354).

Ultrapassadas essas considerações, no que tange especificamente à publicidade de dados remuneratórios pessoais e à exposição individualizada de contracheques, nota-se que a Lei 12.527/2011, em momento algum, fez qualquer menção direta ao assunto, tendo resguardado, de forma expressa, o direito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades individuais:

Art. 31. O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.

§ 1o As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:

I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e

II - poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem. (BRASIL, 2011).

Entretanto, no plano federal, a Lei 12.527/11 foi regulamentada por intermédio do Decreto n. 7.724/12, o qual determinou, de forma direta, que os órgãos e as entidades do poder executivo federal pudessem assegurar o direito de acesso à informação, proporcionando, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão, todas as informações sobre remuneração e subsídios dos servidores, em todo o território nacional.

Dispõe o Decreto 7.724/2012:

Art. 3°. Para efeitos deste Decreto, considera-se:

[...]

V- Informação pessoal – informação relacionada à pessoa natural identificada ou identificável, relativa à intimidade, à vida privada, à honra e imagem;

Art. 7°. É dever dos órgãos e entidades promover, independentemente de requerimento, a divulgação em seus sítios na Internet de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas, observando o disposto nos artigos 7° e 8° da Lei 12.527, de 2011.

[...]

§3°. Deverão ser divulgadas, na seção específica de que trata o §1°, informações sobre:

VI – remuneração e subsídio recebidos por ocupante de cargo, porto, graduação, função e emprego público, incluindo auxílios, ajudas de custo, jetons e quaisquer outras vantagens pecuniárias, bem como proventos de aposentadoria e pensões daqueles que estiverem na ativa, de maneira individualizada, conforme ato do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. (BRASIL, 2012).

Depreende-se, assim, que a regulamentação da Lei 12.527/11, no âmbito do Poder Executivo, ultrapassou patamares maiores do que aqueles previstos pela própria legislação. Assim, importa discutir como fica o direito à privacidade diante do dever do Estado em publicar os salários de seus servidores nominalmente.

3 A DIVULGAÇÃO NOMINAL DA REMUNERAÇÃO DOS SERVIDORES PÚBLICOS E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA PUBLICIDADE E DA INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE E DA VIDA PRIVADA

Muito embora a Lei 12.527/11 não tenha disciplinado de forma clara a obrigatoriedade de se publicar a remuneração do servidor, nominalmente, o Decreto 7.724/2012, que regulamentou o diploma legal no âmbito federal, assim o fez.

O já citado artigo 37 da Constituição Federal de 1988 elenca, como um dos princípios norteadores da Administração Pública, a publicidade. Trata-se de princípio norteador de todos os atos praticados na atividade administrativa, e que, após a edição da legislação em estudo, traduziu-se no dever de colocar à disposição da população todas as informações e dados por ela produzidos.

Nesse sentido, o renomado doutrinador Celso Lafer assim se expressa:

[...] em uma democracia, a visibilidade e a publicidade do poder são ingredientes básicos, visto que permitem um importante mecanismo de controle ex-parte populi da consulta dos governantes. [...] Em uma democracia, a publicidade é a regra básica do poder, e o segredo, a exceção, o que significa que é extremamente limitado o espaço dos segredos de Estado. (LAFER, 1998, p. 243-244).

A Carta Magna Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5°, inciso X, o seguinte:

Art. 5°: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (BRASIL, 1988).

Por outro lado, também assegura o art. 5º, inciso XXXIII:

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. (BRASIL, 1988).

Como se observa, há um evidente conflito entre dois princípios constitucionais que podem e devem ser preservados. Há de se atentar para o fato de que mesmo que os dados relacionados às informações de domínio público-estatal devam ser submetidas ao controle da sociedade, sob pena de gerar lesão grave à ordem pública, não se pode permitir que a divulgação do nome do servidor com a remuneração atinja sua privacidade.

O direito à privacidade está diretamente relacionado à vida do servidor público enquanto indivíduo, uma vez que o servidor desempenha um papel fundamental na sociedade.

Nesse ponto, Sílvio Romero Beltrão assevera que o servidor:

[...] apresenta-se desprotegido perante os assaltos da liberdade de informação, que com o discurso do direito coletivo de ser informado todo fato, acontecimento ou situação com relevância pública e efeito na vida comunitária, desbanca a garantia constitucional à reserva da intimidade. Estado. (BELTRÃO, 2012, p.15).

No tocante à aplicação prática da Lei da Transparência, cabe apontar por questão analógica a doutrina de Alexandre de Moraes:

Encontra-se em clara e ostensiva contradição com o fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana, com direito à honra, a intimidade e vida privada, converter em instrumento de diversão ou entretenimento assuntos de natureza tão intima quanto falecimentos, padecimentos ou quaisquer desgraças alheias, que não demonstrem nenhuma finalidade pública e caráter jornalístico em sua divulgação. Assim, não existe qualquer dúvida de que a divulgação de fotos, imagens ou notícias apelativas, injuriosas, desnecessárias para a informação objetiva e de interesse público que acarretem injustificado dano à dignidade humana autoriza a ocorrência de indenização por danos materiais e morais, além do respectivo direito de resposta. (MORAES, 2006, p. 31).

Por tal motivo, a questão tratada pela Lei da Transparência avança limites que vão além da simples divulgação de um fato. Ela diz respeito à exposição da remuneração do servidor e suas informações pessoais.

3.1 Do princípio da publicidade

Inicialmente, destaca-se que a publicidade sempre foi tida como um princípio administrativo, vez que ao Poder Público é imposto o dever de agir sob a égide da transparência. Não pode haver um estado democrático de Direito, no qual o poder reside no povo, sem que haja divulgação de todos os atos por ele praticados.

O acesso à informação é garantido em várias passagens na Constituição da República, destacando-se, contudo, o art. 37, §3º, II, que preceitua:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

[...]

§ 3º A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente:

[...]

II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII. (BRASIL, 1988).

O art. 1º da Lei 12.527/11 apresenta-se como um regulamento ao dispositivo constitucional supramencionado e regula, também, o alcance dos seus efeitos, estendendo a aplicabilidade desta norma a todos os entes da federação:

Art. 1o Esta Lei dispõe sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3º do art. 37e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal.

Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei:

I - os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público;

II - as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios. (BRASIL, 2011). (Grifos nossos).

Desta forma, constata-se que as normas expostas se complementam no sentido de garantir o direito de ser informado, fundamental para a manutenção do Estado Democrático de Direito. Por outro lado, há de se considerar que a publicidade, na esfera administrativa, também comporta suas exceções, devendo o sigilo ser resguardado quando “imprescindível à segurança da Sociedade e do Estado”, consoante estabelece redação do artigo 5°, inciso XXXIII, acima colacionado.

Além disso, a partir da interpretação do artigo 5°, inciso X, da Constituição, apreende-se que a divulgação pública das informações e dados de domínio estatal está condicionada à preservação da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas. Desse modo, o tratamento dos dados, informações públicas e sua divulgação devem ter como metas a transmissão de uma informação de interesse público ao cidadão, desde que inexista vedação constitucional ou legal.

3.2 Da inviolabilidade da intimidade e da vida privada

A garantia à inviolabilidade da intimidade e da vida privada tem por objetivo fundamental resguardar a própria dignidade da pessoa humana, principio basilar da República Federativa do Brasil, preservando do conhecimento de terceiros os fatos que envolvam sua existência privada, inclusive nos aspectos concernentes à sua intimidade. Isto significa que Carta Magna não admitiu qualquer exceção ou violação do princípio em referência.

Destarte, em face do regime constitucional instituído com o finco de proteger a dignidade da pessoa humana, sua intimidade e vida privada, entende-se que as informações pessoais têm seu acesso restrito, independente da classificação de sigilo e podem ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros somente mediante previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referem.

Da análise do teor da Lei n. 12.527/2011, constata-se que a definição de informação pessoal está diretamente relacionada à pessoa natural identificada ou identificável, relativa à intimidade, vida privada, honra e imagem.

Assim, num primeiro momento, há se de considerar que a Administração Pública não tem disponibilidade absoluta na divulgação ou publicidade dos dados remuneratórios de seus servidores, vez que tais matérias relacionam-se diretamente ao direito à intimidade, à vida privada e ao sigilo dos dados pessoais dos respectivos servidores.

Além disso, deve-se levar em conta que a remuneração ou o subsídio dos servidores é depositado em conta corrente no sistema financeiro, e a exibição dos respectivos contracheques implicaria, por dedução lógica, violação prévia e indireta, do sigilo bancário, igualmente protegido pelo art. 5º, inc. XII, da Constituição Federal.

Deve-se observar ainda que se o servidor possuir como única fonte de renda os recursos recebidos da Administração Pública, sua divulgação, de forma abrupta, implicaria violação de seu sigilo fiscal. Frisa-se que essas informações são as mesmas que abastecem a declaração de imposto de renda e são acobertadas pelo sigilo fiscal, espécie do gênero dados pessoais e espécie do direito à privacidade, também resguardados pela Constituição.

Assim, os dados pessoais devem ser objeto de um tratamento leal e lícito, e serem divulgados para finalidades determinadas, explícitas e legítimas. A Administração Pública, ao produzir e custodiar informações, é responsável pelos dados pessoais e sigilosos constantes nos contracheques, não devendo fornecê-los a ninguém, salvo nos casos previstos em lei. A divulgação ex officio, fora das hipóteses legais, conforme se depreende, viola o direito ao sigilo de tais dados.

A Lei n. 12.527, dispõe, no art. 3º, que os procedimentos previstos em seu texto “destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública.”

Os atos de divulgação e publicidade da administração pública não podem, portanto, se revestir de caráter pessoal, isto é, não podem ser elaborados tendo em vista o indivíduo, de maneira específica, seja ele servidor ou administrado. O princípio da impessoalidade está relacionado ao princípio da finalidade, que, por conseguinte, se traduz na busca da satisfação do interesse público, sem prejudicar, injustificadamente, interesses particulares.

O interesse público e geral reside em saber dos valores despendidos com cada categoria funcional e não em saber quanto ganha, mês a mês, este ou aquele servidor. Isso pode atender a uma curiosidade gratuita e mal intencionada de alguns, servindo apenas para saciar a curiosidade de quem acessa, ultrapassando, assim, a ideia de colocar à disposição da sociedade o poder de controlar e fiscalizar os gastos públicos.

Se na vida pública o direito à informação deve ser acessível e imperioso, na vida privada o direito à intimidade é também inviolável. No âmbito privado protege-se a intimidade como atributo personalíssimo inalienável, sobre o qual não cabe a publicidade, já que esta busca satisfazer uma mera curiosidade pública, sem propósitos de informação legítima.

Ainda que haja interesse público ou geral justificável, os dados sensíveis não podem, de modo algum, serem divulgados, pelo excessivo caráter intrusivo, sob pena de atingir o núcleo essencial desse direito fundamental.

3.3 Da regulamentação da Lei de Acesso à Informação e a colisão dos princípios constitucionais da publicidade e da inviolabilidade da intimidade e da vida privada

Conforme exposto, sabe-se que a Lei de Acesso à Informação não disciplina acerca da obrigatoriedade de se publicar a remuneração do servidor de forma nominal. Entretanto, regulamentando a matéria, o Decreto 7.724/12 determinou a identificação nominal do beneficiário, como se depreende da análise dos artigos alhures citados.

Conforme já explanado, neste trabalho, há dois bens jurídicos constitucionalmente tutelados em conflito, o direito à publicidade e o direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada da pessoa. É de conhecimento notório que obedecer aos ditames constitucionais, mesmo que entre eles haja conflito, é o ponto chave para dirimir qualquer questão no âmbito jurídico.

Nesse sentido, ensina Konrad Hesse:

Todos os interesses momentâneos – ainda quando realizados – não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que sua observância revela-se incômoda. Aquilo que é identificado como vontade na Constituição deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático. (HESSE, 1991, p.15).

A identificação nominal, como se pode aferir, ultrapassa a finalidade da norma, ou seja, dar publicidade aos gastos do governo e à forma como este rege a sua política de recursos humanos. Publicidade não pode ser equiparada a curiosidade, já que seu objetivo primordial é garantir a fiscalização da Administração Pública pela sociedade.

Assim, tudo aquilo que exceder o caráter informativo, invade a esfera privada do servidor, afronta a Constituição e anula a eficácia da aplicabilidade do princípio da inviolabilidade da intimidade e da vida privada e, ainda, deixa de salvaguardar o princípio da unicidade da Carta Maior.

O acesso à informação não pode determinar a publicação individualizada da remuneração dos servidores, vez que deverá também proteger a informação de caráter pessoal, em observância ao disposto no inciso X do artigo 5° da Constituição Federal. Qualquer interpretação da lei acerca desse aspecto não pode descuidar do fato de que as normas que restringem direitos interpretam-se, sempre, de forma restritiva.

Desse modo, em que pesem os ditames insculpidos pelo artigo 3°, inciso V, do Decreto 7.724/12, entende-se que a divulgação da informação pessoal deverá ser balizada de forma a expor as informações, sem, no entanto, identificar o servidor. A publicidade restaria alcançada em sua plena finalidade pela publicação dos salários com a identificação por matrícula do servidor, ou ainda pelo cargo ocupado, preservando a privacidade do beneficiário, sem indicar seu nome.

3.4 Entendimento jurisprudencial

Desde o advento da Lei 12.527/11, inúmeras ações judiciais têm questionado a publicação, em sítios da Internet, da remuneração individualizada dos servidores públicos, com a identificação nominal do beneficiário e o valor total recebido.

A Justiça Federal, principalmente, tem recepcionado inúmeras ações judiciais tendo em vista as determinações do Decreto 7.724/12. Em alguns pontos, a jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais, é divergente quanto à possibilidade de divulgação nominal da remuneração. Transcrevem-se, como exemplo, duas decisões do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que representam a divergência que tem se instalado:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES RELATIVAS À REMUNERAÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS, NOMINALMENTE IDENTIFICADOS. LEI 12.527/2011. Ainda que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Suspensão de Segurança 3.902 (Rel. Min. Ayres Brito), ocorrido em 09.06.2001, se tenha pronunciado pela constitucionalidade da divulgação da remuneração dos servidores públicos de forma individualizada, nominalmente identificados, supervenientemente foi editada a Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, a Lei de Acesso à Informação, firmando regulamentação sobre a matéria mais protetiva à privacidade dos servidores do que aquela sustentada na decisão do STF. Com efeito, a lei prevê disciplina específica para o trato das informações pessoais dos servidores, que se deve dar com respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais, inclusive tipificando e sancionando a divulgação indevida dessas informações pessoais e prevendo a responsabilização do ente público pelos danos daí decorrentes. Portanto, em sede de antecipação de tutela, considerando-se a possibilidade de eventuais danos à privacidade dos servidores e, sob o prisma da União, eventual dever de indenizá-los, impõe-se a vedação da disponibilização da remuneração dos servidores, nominalmente identificados, na página oficial do órgão público na Internet, até o julgamento da demanda. Até porque o entendimento do STF quanto à questão constitucional não está consolidado, haja vista a decisão proferida no ARE 652777 RG, em 29.09.2011 (acórdão publicado em 12.04.2012), posteriormente ao julgamento da mencionada Suspensão de Segurança, quando os Ministros decidiram reconhecer a repercussão geral da questão, mas não reafirmar a jurisprudência dominante sobre a matéria, que deverá ser reapreciada pelo Plenário. Agravo desprovido. (TRF4. AG 5013290-28.2012.404.0000, RS., Rel. Cândido Alfredo Silva Leal Júnior. Em 07/03/2013). (BRASIL, 2013).

EMENTA: ADMINISTRATIVO. LEI DE ACESSO À INFORMAÇÃO (N. 12.527/2011). DISPONIBILIZAÇÃO DE DADOS PESSOAIS DE AGENTES PÚBLICOS. REMUNERAÇÃO. VINCULAÇÃO NOMINAL EM SÍTIO ELETRÔNICO. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, À INTIMIDADE E À SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. Provimento da apelação da União Federal e da remessa oficial. (TRF4. Recurso Extraordinário 504368-72.2012.404.7100, RS., Rel. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Em 21/02/2013). (BRASIL, 2013).

Por sua vez, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a matéria recebeu os primeiros contornos no julgamento da Suspensão de Segurança n. 3.902, manejada pelo Município de São Paulo/SP contra decisões liminares do Tribunal de Justiça paulista, as quais suspenderam o ato de divulgação nominal da remuneração bruta mensal de cada servidor municipal em sítio eletrônico na internet, denominado “De olho nas contas”, de domínio da municipalidade.

Naquele momento, o Pretório Excelso manifestou-se a favor da divulgação nominal da remuneração dos servidores daquele município, não reconhecendo violação aos princípios da privacidade, da intimidade e da segurança do servidor, em acórdão assim ementado:

EMENTA: SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃOS QUE IMPEDIAM A DIVULGAÇÃO, EM SÍTIO ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO. DEFERIMENTO DA MEDIDA DE SUSPENSÃO PELO PRESIDENTE DO STF. AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO APARENTE DE NORMAS CONSTITUCIONAIS. DIREITO À INFORMAÇÃO DE ATOS ESTATAIS, NELES EMBUTIDA A FOLHA DE PAGAMENTO DE ÓRGÃOS E ENTIDADES PÚBLICAS. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA. NÃO RECONHECIMENTO DE VIOLAÇÃO À PRIVACIDADE, À INTIMIDADE E À SEGURANÇA DE SERVIDOR PÚBLICO. AGRAVOS DESPROVIDOS. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral, expondo-se, portanto, a divulgação oficial, sem que a sua intimidade, a sua vida privada e a sua segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado, nem a do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados, objeto da divulgação em causa, dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmo; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo ‘nessa qualidade’ (§ 6º do art. 37). Quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte, é a cidadania mesma que tem o direito de ver a sua Estado republicanamente administrado – o ‘como’ se administra a coisa pública a preponderar sobre o ‘quem’ administra, falaria Norberto Bobbio –, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República, o olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos. (STF. SS 3.902 SP, Rel: Gilmar Mendes, dj. em 08/07/2009, p. em 04/08/2009). (BRASIL, 2014).

A decisão do Egrégio Supremo Tribunal Federal foi proferida pelo plenário em 9 de junho de 2011, anteriormente à Lei 12.527/11, que data de novembro do mesmo ano.

Não obstante o fato de aquela decisão ser anterior ao advento da nova lei de transparência, o Supremo Tribunal Federal tem reformado decisões de tribunais inferiores para fins de manter a divulgação nominal das remunerações:

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA TRANSPARÊNCIA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO À INTIMIDADE E À PRIVACIDADE. DISTINÇÃO ENTRE A DIVULGAÇÃO DE DADOS REFERENTES A CARGOS PÚBLICOS E INFORMAÇÕES DE NATUREZA PESSOAL. OS DADOS PÚBLICOS SE SUBMETEM, EM REGRA, AO DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À INFORMAÇÃO. DISCIPLINA DA FORMA DE DIVULGAÇÃO, NOS TERMOS DA LEI. PODER REGULAMENTAR DA ADMINISTRAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – O interesse público deve prevalecer na aplicação dos Princípios da Publicidade e Transparência, ressalvadas as hipóteses legais. II A divulgação de dados referentes aos cargos públicos não viola a intimidade e a privacidade, que devem ser observadas na proteção de dados de natureza pessoal. III – Não extrapola o poder regulamentar da Administração a edição de portaria ou resolução que apenas discipline a forma de divulgação de informação que interessa à coletividade, com base em princípios constitucionais e na legislação de regência. IV – Agravo regimental a que se nega provimento. (STF. RE: 766390 DF, Rel: Min. RICARDO LEWANDOWSKI, dj. 24/06/2014, p. em 15/08/2014). (BRASIL, 2014).

Recentemente, ao analisar o Mandado de Segurança (MS) 31.580, interposto pela Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES) contra ato expedido pelo CNJ, que determina a divulgação nominal da remuneração dos servidores, o ministro Luiz Fux concluiu, que, ao contrário do alegado pela Recorrente, o ato praticado é legal e corrobora com o entendimento firmado pelo STF no julgamento da suspensão de segurança n.° 3.902, conforme abaixo colacionado:

MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. ATO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. ACESSO À INFORMAÇÃO. EFEITOS CONCRETOS DA RESOLUÇÃO 151/2012 DO CNJ. DIVULGAÇÃO NOMINAL DA REMUNERAÇÃO DOS MAGISTRADOS NA INTERNET. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AO DIREITO À INTIMIDADE E À PRIVACIDADE. INEXISTÊNCIA. PRECEDENTE: SS 3.902-AgR, Rel. Min. Vice-Presidente, Pleno. DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA. 1. Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo nessa qualidade (§ 6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O como se administra a coisa pública a preponderar sobre o quem administra falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos.”In casu, verifico que o ato impugnado (Resolução CNJ n. 151/2012) reveste-se de legalidade e há de ser mantido em seus termos. Ex positis, denego a segurança, ficando prejudicado o exame do pedido de liminar. Admito o ingresso da União no feito, devendo a Secretaria proceder às anotações pertinentes. Publique-se. Intime-se. Brasília, 30 de setembro de 2014. Ministro Luiz Fux - Relator. Documento assinado digitalmente. (STF. MS 31580 DF, Rel: Min. Luiz Fux, dg. 30/09/2014, p. em 03/10/2014). (BRASIL, 2014).

O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região adota uma postura de preservação das questões relativas à vida privada dos indivíduos em geral, conforme se demonstra:

Dano moral. Divulgação na íntegra do contracheque de servidor público. Lei n. 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação). CF, art. 5º, XXXIII. Conflito entre os princípios da publicidade e moralidade administrativa (CF, art. 37) e da vida privada, intimidade, honra e imagem (CF, art. 5º, X). Limitação das informações acessíveis ao público apenas aos cargos, funções e vencimentos. A Lei de Acesso à Informação (Lei n. 12.527/11) regulamenta o acesso pelo público às informações sobre os gastos decorrentes da gestão pública, de acordo com os princípios da moralidade e da publicidade. Não há interesse público na divulgação de outras informações constantes do contracheque do servidor, relativas à sua vida íntima e privada, como empréstimos consignados e pensão alimentícia, por exemplo, e por isso, resguardados do acesso ao público (Lei n. 12.527/11, art. 31, parágrafo 1º, I e II). A divulgação de dados particulares do servidor público, que refogem ao âmbito de incidência da Lei de Acesso à Informação, transborda os limites do interesse público, e deságua em exposição indevida da imagem do servidor, que se traduz em dano moral. (TRT 2 RO: 00019860720135020372 SP 00019860720135020372 A28, Relator: RAFAEL EDSON PUGLIESE RIBEIRO, SP, p. em 18/03/2014). (São Paulo, 2014)

No Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais o entendimento segue a mesma linha adotada pelo Supremo Tribunal Federal:

CONSTITUCIONAL - MANDADO DE SEGURANÇA - DECADÊNCIA - DIVULGAÇÃO, EM PORTAL ELETRÔNICO OFICIAL, DE INFORMAÇÕES FUNCIONAIS DE SERVIDORES PÚBLICOS PERTENCENTES AO GRUPO DE ATIVIDADES DE TRIBUTAÇÃO, FISCALIZAÇÃO E ARREDAÇÃO DO ESTADO, INCLUSIVE A RESPECTIVA REMUNERAÇÃO - ACESSO À INFORMAÇÃO - DIREITO FUNDAMENTAL DE QUARTA GERAÇÃO - PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE ADMINISTRATIVA - LEI N. 12.527/2011 - LEGALIDADE - RESOLUÇÃO CONJUNTA SEPLAG/CGE N. 8.676/2012 - SEGURANÇA DENEGADA. Inocorre decadência do prazo para a impetração do mandado de segurança quando se tratar de ato continuado cujo prazo decadencial previsto no art. 23 da Lei n. 12.016/2009 se renova a cada mês por meio da divulgação da remuneração do impetrante em portal eletrônico. O direito à informação constitui direito fundamental de quarta geração, sendo a publicidade dos atos administrativos - aqui consubstanciada na divulgação dos nomes e respectiva remuneração de servidores públicos - uma das formas de efetivação dessa garantia constitucional, motivo pelo qual não há de se falar em ato abusivo e ilegal e, via de consequência, em direito líquido e certo a ser protegido pela via mandamental. Não extrapola o exercício do poder regulamentar a Resolução que apenas indica a forma de como será efetivada a Lei de Acesso à Informação. (TJMG. Mandado de Segurança: 10000130238009000 MG, Relator: Edilson Fernandes, dj: 13/08/2013, p. em 23/08/2013). (MINAS GERAIS, 2013).

4 CONCLUSÃO

Conforme demonstrado, o debate sobre a questão é, seguramente, mais abrangente do que se apresenta neste trabalho. Muito embora o STF tenha reconhecido a repercussão geral da controvérsia em face de múltiplos recursos extraordinários, nota-se que a busca maior tem sido no sentido de se harmonizar os princípios em colisão, resguardando o mínimo de privacidade àqueles que se dedicam diariamente ao serviço público e à sociedade.

Restou explicitado, ao longo do presente trabalho, que a nova Lei de Acesso à Informação não determina a publicação individualizada da remuneração dos servidores, inclusive, respeita a intimidade e a vida privada, em atenção ao comando contido no inciso X do artigo 5º da Constituição Federal.

Assim, por meio deste estudo, apreende-se que a Lei n. 12.527/11, além de não estabelecer regras de divulgação nominal da remuneração dos agentes públicos, também não autoriza futuras regulamentações a fazê-lo.

Analisando o caráter impositivo do Decreto n. 7.724/12 e de todos os demais atos normativos que estabelecem a forma nominal de divulgação dos salários, verifica-se um excesso de poder regulamentar, ao se considerar que, por meio de Decreto, não se pode inovar na ordem jurídica e muito menos restringir direitos fundamentais.

Por todo exposto, constata-se que a divulgação da remuneração dos agentes públicos de forma nominal, consoante determina o Decreto Federal, ultrapassa a finalidade da norma, em total afronta à mínima proteção à intimidade e à vida privada.

  • DIREITO ADMINISTRATIVO

Referências

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei n. 8.159/91, de 8 de janeiro de 1991. Dispõe obre a política nacional de arquivos públicos e privados e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 1º de set. 2014.

BRASIL. Lei n. 11.111/05, de 5 de maio de 2005. Regulamenta a parte final do disposto no inciso XXXIII do caput do artigo 5° da Constituição e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 1º set. 2014.

BRASIL. Decreto n. 7.724/12, de 16 de maio de 2012. Regulamenta a Lei no 12.527, de 18 de novembro de 2011, que dispõe sobre o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do caput do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição. em: . Acesso em: 27 ago. 2014.

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ESPÍRITO SANTO. Lei Estadual n. 9.871/12, de 9 de julho de 2012. Regula o acesso a informações previsto no inciso II do § 4º do artigo 32 da Constituição do Estado do Espírito Santo. Disponível em: . Acesso em: 1º de set. 2014.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. 20. ed. traduzido por Luís Afonso Henck.  Porto Alegre: Fabris, 1991.

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. 1. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 1988.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

MINAS GERAIS. Decreto n. 45.969, de 24 de maio de 2012. Altera o artigo 1° do Decreto n.° 45.969, de 24 de maio de 2012, que regulamenta  o acesso a informação no âmbito do poder executivo . Disponível em: . Acesso em: 31 ago. 2014.

MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Mandado de Segurança n. 10000130238009000 MG, Relator: Desembargador Edilson Fernandes. Diário do Judiciário de Minas Gerais, 23 de agosto de 2013.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

RIO GRANDE DO SUL. Decreto n. 49.111/12, de 16 de maio de 2012. Regula o acesso à informação, cria o Serviço de Informação ao cidadão – SIC e a Comissão Mista de Reavaliação de Informações – CMRI/RS no âmbito da Administração Pública Estadual. Disponível em: . Acesso em: 1º set. 2012.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo n. 5013290-28.2012.404.0000. Rel. Cândido Alfredo Silva Leal Júnior. Diário Eletrônico da Justiça Federal da 4ª Região, 07 de março de 2013.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Recurso Extraordinário n. 504368-72.2012.404.7100. Rel. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz.  Diário Eletrônico da Justiça Federal da 4ª Região, 21 de fevereiro de 2013.

 SÃO PAULO. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Recurso Ordinário n. 00019860720135020372A28, Relator: Rafael Edson Pugliese Ribeiro. Diário Eletrônico do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região, 18 de março de 2014.



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