Credibilidade da vítima e a violência sexual de gênero: O peso do patriarcado nos julgamentos da sociedade.


03/05/2024 às 15h59
Por Ana Carolina Leite

Credibilidade da vítima e a violência sexual de gênero: O peso do patriarcado nos julgamentos da sociedade.

Ana Carolina Almeida Leite

Economista – Estagiária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo – UNIDADE  GRANDE ABC - Santo André - Graduanda em Direito – UNINOVE/SP.

I. Introdução

A credibilidade da vítima em casos de violência sexual de gênero é um tema de extrema relevância nos estudos jurídicos contemporâneos. A análise desse aspecto dentro do contexto dos julgamentos é fundamental para compreender como o patriarcado influencia o sistema judiciário e afeta a busca por justiça pelas vítimas.

Acredita-se que a credibilidade da vítima seja determinante para o desfecho de um processo judicial relacionado à violência sexual. No entanto, essa credibilidade muitas vezes é questionada e desafiada, especialmente em casos que envolvem a subordinação de gênero e o poder patriarcal.

A violência sexual de gênero, incluindo relações íntimas, casamento forçado, estupro conjugal, abuso sexual infantil, tráfico sexual e assédio sexual no local de trabalho, é uma violação dos direitos humanos e uma manifestação clara da desigualdade de gênero. Ela afeta mulheres, homens e pessoas LGBTQIA+ em todo o mundo, deixando cicatrizes emocionais e físicas que podem durar uma vida inteira.

O objetivo deste texto é fornecer informações relevantes e reflexões sobre a associação entre a condição de mulher, como gênero, sua credibilidade enquanto pessoa, até aspectos que vão desde questões existenciais e sua capacidade, historicamente dominada por homens.

Destaca-se, também, o assédio enfrentado por mulheres em todos os ambientes e o impacto desse processo em suas escolhas e trajetórias, contribuindo para a criação de subjetividades femininas dóceis, submissas e, em alguns casos, levando-as a negar a existência da violência sexual de gênero.

II. O patriarcalismo jurídico e seus impactos

A análise da Teoria Feminista revela a presença de mecanismos de proteção das relações patriarcais em diversas esferas de produção do direito. Segundo Sabadell (2017), o direito desempenha um papel fundamental na integração e legitimação das relações de gênero de cunho patriarcal, contribuindo para sua perpetuação. Por esse motivo, há uma considerável resistência em aceitar mudanças que possam questionar esses valores, mesmo quando normas jurídicas são estabelecidas para proteger os direitos das mulheres. É comum observar que mudanças legislativas que visam incluir direitos das mulheres são enfrentadas com resistência ou até mesmo sabotadas pela doutrina e/ou jurisprudência.

A autora desenvolve o conceito de "patriarcalismo jurídico" para destacar as profundas contradições presentes no próprio sistema jurídico. Esse termo permite avaliar até que ponto o sistema jurídico está comprometido com uma cultura patriarcal da qual ele se origina. Essa dominação, evidente na elaboração de normas, na doutrina e na prática jurídica, resulta na violação dos direitos fundamentais das mulheres.

De acordo com a doutrina jurídica, a falta de credibilidade da vítima está intrinsecamente ligada aos estereótipos de gênero arraigados na sociedade. O patriarcado, como sistema social no qual os homens detêm o poder, influencia diretamente a percepção e o tratamento dispensado às vítimas nos tribunais.

O texto objetiva explorar como o "patriarcalismo jurídico" se manifesta em um caso específico, baseando-se em estereótipos de gênero para desacreditar a palavra da vítima e esperar uma reação heroica que evitasse a violência contra ela. Na posição de ré, a vítima é quem é efetivamente julgada: suas ações e reações são submetidas a um escrutínio moral, questionando o que poderia ter feito para evitar o incidente e em que medida contribuiu para a violência praticada contra ela.

Essa desconfiança é amplificada quando a vítima não se enquadra no padrão de comportamento socialmente aceito para mulheres, como no caso de mulheres que usam roupas consideradas provocativas ou que têm uma vida sexual ativa.

Além disso, a estrutura do sistema judiciário, historicamente construída sob a ótica masculina, muitas vezes não leva em consideração as nuances das experiências das vítimas de violência sexual. Os procedimentos legais, as perguntas dos advogados e a postura dos juízes podem refletir preconceitos de gênero, o que dificulta a obtenção de um julgamento justo e imparcial. (SABADELL, 1999; 2017; PIMENTEL; SCHRITZMEYER; PANDJIARJIAN, 1998; CAMPOS; CASTILHO, 2020).

Para desconstruir o peso do patriarcado nos julgamentos e garantir a credibilidade das vítimas de violência sexual, é necessário um esforço conjunto. Isso inclui a reforma de leis e políticas que protejam os direitos das vítimas, a implementação de programas de capacitação para profissionais do direito e a conscientização da sociedade sobre a gravidade e a complexidade da violência de gênero.

 

 

III. Credibilidade da vítima: um desafio nos processos judiciais

A questão de gênero emerge como um dos temas mais pertinentes na agenda dos direitos humanos neste século, representando uma das principais reivindicações pelo direito à diversidade. Essa perspectiva contesta a naturalização da sexualidade e reitera a importância das construções socioculturais na formação da identidade dos indivíduos e na definição de suas expressões de gênero e afetividade, que não estão rigidamente determinadas pela biologia (Butler, 2017, p. 63).

A violência contra a mulher é um fenômeno histórico e amplamente aceito socialmente em todo o mundo. Esse processo se inicia com a própria definição da mulher como tal: "as mulheres não podem senão tornar-se o que elas são" (Bourdieu, 2014, p. 41), indicando que desde o nascimento, aquelas identificadas como femininas são submetidas a normas que perpetuam a superioridade masculina e o exercício de controle sobre seus corpos e vidas. Elas são relegadas a posições de silêncio, obediência e cuidado, tanto dentro da família quanto na sociedade em geral. Mitos como "mulheres inventam acusações de estupro por vingança" e "homens não podem ser estuprados" prejudicam a credibilidade das vítimas e perpetuam a impunidade dos agressores.

Assim, a subjetivação da psiqué feminina ocorre sempre ancorada em valores masculinos (Zanella; Pedrosa, 2016, p. 6), levando a mulher a se perceber como incapaz, inferior e, frequentemente, merecedora da violência sofrida, uma vez que sua formação é moldada pela visão e pelos valores do dominador, embora, ocorram brilhantes atuações do Ministério Público.

Por sua vez, a defesa argumenta pela atipicidade da conduta ao questionar a versão apresentada pela vítima, sugerindo que ela teria consentido com o "ato libidinoso", por mais que contenham, em quase sua totalidade, conjunção carnal forçada.

Acrescentam ainda a atipicidade de conduta, alegando que o ato de ameaçar com prática violência pura e direta, não tem relação direta, à materialidade da conduta. É preciso demonstrar o dolo. A necessidade de observância ao princípio in dubio pro reo, garante, ao final, a absolvição do acusado.

Entre as diversas formas de reação a um ato covarde como o estupro, a "ausência" de reação da vítima é frequentemente descrita pela doutrina, associada a diversos fatores. Isso inclui a percepção de um dever sexual em relação ao homem, como no caso do estupro marital, o constrangimento social decorrente da divulgação do ato (a vítima seria "mal falada"), a crença de que sua versão não será credibilizada pelas autoridades estatais ou ainda a compreensão de que é uma luta perdida e que qualquer tentativa de resistência pode resultar em maior violência por parte do agressor (Sabadell, 1999; MacKinnon, 1989; Bustos; Larrauri, 1993).

Grupos minoritários impactados por violências estruturais, como de gênero e raça, enfrentam maior vulnerabilidade, o que pode dificultar a comunicação do crime. A naturalização e aceitação social podem alterar a percepção do próprio indivíduo sobre a agressão sofrida como violência, assim como das autoridades judiciárias em compreender a conduta como um fato típico (Paiva, 2022).

Por outro lado, em muitos casos em que há um vínculo social ou afetivo entre o agressor e a vítima, esta pode não ter a possibilidade (seja objetiva ou subjetiva) de reagir fortemente. Quando a vítima, ao ser questionada, relata não ter gritado com medo de que membros de sua pequena comunidade ficassem sabendo que ela foi vítima de violência sexual, isso demonstra outro tipo de coação, desta vez de natureza moral, que afeta subjetivamente sua capacidade de buscar ajuda. Para configurar o constrangimento, necessário para o enquadramento do crime de estupro, basta que a vítima expresse sua recusa ou que, mediante a análise das circunstâncias do crime, fique evidente que o agressor agiu contra a vontade da vítima (Virgílio, 1997, p. 66-67).

Diante de perigo iminente e risco de vida, a falta de reações mais enérgicas capazes de resistir à violência praticada contra ela é entendida por Mackinnon como um mecanismo de "submissão para sobreviver" (Mackinnon, 1989, p. 177). Além disso, uma das reações mais comuns ao terror e à ansiedade diante de uma ameaça grave é o estado de paralisia do indivíduo, causado por mecanismos intrínsecos à psique humana.

IV. A desconstrução do patriarcalismo jurídico- Necessidade de reformas legais

A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006), implantada no Brasil com o propósito de salvaguardar a mulher contra todas as formas de violência doméstica, garante integralmente às mulheres, independentemente do estado civil ou da coabitação com parceiros, "condições para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária" (art. 3º da Lei), assegurando-lhes "viver sem violência, preservar sua saúde física e mental, e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social" (art. 2º da Lei). Essa legislação, desde sua promulgação em 2006, representa uma conquista na defesa dos direitos das mulheres, possibilitando que violências historicamente toleradas contra a mulher sejam denunciadas e punidas.

O avanço seguinte na proteção da integridade da mulher na legislação brasileira só ocorreu quase uma década após a promulgação da Lei Maria da Penha, com a introdução do crime de feminicídio pela Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. O termo "feminicídio" foi cunhado na década de 70 pela socióloga Diana Russel com o intuito de contestar a neutralidade da expressão "homicídio", que negligenciava a vulnerabilidade específica das mulheres diante das violências cometidas por homens contra elas pelo simples fato de serem mulheres, carregando consigo atributos femininos. Abordaremos essa questão com mais detalhes no próximo tópico.

Durante a pandemia, foram implementadas diversas medidas protetivas para mulheres em situação de violência doméstica, conforme estabelecido pela Lei nº 14.022, de 7 de julho de 2020. Esta lei determina que o poder público deve garantir o atendimento presencial de mulheres, idosos, crianças ou adolescentes em situação de violência, mesmo durante a pandemia.

Além disso, foram introduzidas duas outras importantes medidas protetivas. Uma delas é a Lei nº 14.188, de 28 de julho de 2021, conhecida como Lei do Sinal Vermelho, que incentiva mulheres a denunciarem situações de violência doméstica através de um X desenhado na palma da mão, em locais públicos, para receberem acolhimento e atendimento especializado, além de outras disposições que serão detalhadas posteriormente.

Outra medida protetiva é a Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher em espaços relacionados ao exercício de seus direitos políticos e funções públicas. Essa legislação garante a participação segura das mulheres em debates eleitorais e trata dos crimes de divulgação de informações falsas durante o período de campanha eleitoral. O objetivo dessas novas leis é criminalizar a violência política contra a mulher e melhorar as condições da disputa eleitoral, como será detalhado adiante.

Conclusão

A análise da situação da mulher no Brasil deve ser fundamentada na sistemática e estrutural violência de gênero no país. Desde as concepções naturalizadas até a exclusão dos espaços de poder, observamos a subalternização feminina em diversas dimensões: física, psicológica, patrimonial, normativa e intelectual.

Essas premissas de inferioridade e passividade conduzem a comportamentos violentos que reforçam a suposta superioridade masculina. Isso resulta em práticas concretas que prejudicam a integridade intelectual das mulheres e perpetuam um ciclo de sub-representação política, mantendo assim o status social atual. É crucial uma abordagem séria desses padrões e comportamentos socialmente estabelecidos para que políticas públicas eficazes sejam desenvolvidas e implementadas, visando modificar essa realidade normativa, institucional e cultural.

A falta de credibilidade da vítima em processos judiciais é um reflexo do patriarcalismo jurídico enraizado em muitas sociedades. Para combater esse problema, é necessário não apenas reformar as leis e políticas, mas também desafiar ativamente os estereótipos de gênero e garantir que as vítimas sejam ouvidas, respeitadas e apoiadas em sua busca por justiça

Em suma, as violências contra a mulher no Brasil são reflexo de uma sociedade marcada por desigualdades de gênero. Para combater essa forma de violência e promover uma sociedade mais justa e igualitária, é fundamental investir em políticas públicas voltadas para a proteção das mulheres e o fortalecimento de sua participação mais ativa na sociedade.

A burocracia legal, muitas vezes não permite que a garantia de direitos, à todos os gêneros, plenamente reconhecidos, o que pode dificultar a denúncia e a busca por justiça.

Promover a conscientização e a educação sobre as diversidades das identidades de gênero é fundamental para combater o preconceito e a discriminação.

O Estado deve coletar dados específicos sobre a violência de gênero para entender a extensão do problema e criar políticas públicas mais eficazes.

A proteção contra a violência motivada pelo gênero deve ser universal e abranger todas as mulheres, independentemente de sua identidade de gênero. Para alcançar esse objetivo, é fundamental combater o preconceito, sensibilizar a sociedade e reformar as leis que ainda perpetuam a discriminação de gênero.

 

 

 

 

 

 

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kuhner. 12. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014.

BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA. A violência contra a mulher. Cíntia Liara Engel. Brasília, 2020. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/retrato/pdf/190215_tema_d_a_violenca_contra_mulher.pdf. Acesso em 22 de abril de 2024.

BRASIL. Lei no  11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher [...] e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em22 de abril de 2024.

BRASIL. Lei no 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio [...]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2015/lei/l13104.htm. Acesso em 22 de abril de 2024.

BRASIL. Lei no 12.845, de 1o de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20112014/2013/lei/l12845.htm. Acesso em22 de abril de 2024.

BRASIL. Lei no  14.022, de 7 de julho de 2020. Altera a Lei no

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BRASIL. Lei no 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher [...]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14188.htm. Acesso em 22 de abril de 2024.

 

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Tradução: Renato Aguiar. Revisão Técnica: Joel Birman. 13. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017

MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989. PAIVA, Lívia. Feminicídio: discriminação de gênero e sistema de justiça criminal. São Paulo: Revista das Tribunais, 2022.

SABADELL, Ana Lucia. A problemática dos delitos sexuais numa perspectiva de direito comparado. Revista brasileira de ciências criminais. v. 7, n. 27, p. 80–102, jul./set., 1999

SABADELL, A. L. Manual de Sociologia jurídica: Introdução a uma leitura externa do direito. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

ZANELLA, Valeska; PEDROSA, Mariana. Visibilidade da violência contra as mulheres na saúde mental. Revista Psicologia: teoria e prática. Brasília, v. 32, 2016, p. 1-8.

 

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Ana Carolina Leite

Estudante de Direito - Santo André, SP


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