O USO PREVENTIVO DA FORÇA EM ESTADOS SOBERANOS POR RAZÕES HUMANITÁRIAS FRENTE ÀS LIMITAÇÕES PREVISTAS NA CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS


08/07/2020 às 22h20
Por Correspondente Jurídica Bianca Becker

Por: Bianca Aline Becker Fries e Roberto Carlos Bellini

 

1 INTRODUÇÃO

 

  • (...) because the end of this institution is the peace and defense of (…) all, and whosoever has right to the end has right to the means, it belongeth of right [to it] to be Judge both of the means of peace and defense, and also of the hindrances and disturbances of the same; and to do whatsoever he shall think necessary to be done, both beforehand, for the prevention of discord at home, and hostility from abroad; and when peace and security are lost, for the recovery of the same. (HOBBES, 1990, p.102) 

 

 O propósito deste artigo é analisar - mediante revisão bibliográfica - a possibilidade do uso preventivo da força por razões humanitárias frente às limitações previstas na Carta das Nações Unidas. Busca-se estimular reflexões sobre o tema em seu aspecto cognitivo nuclear que é a prevalência das obrigações assumidas pelos signatários no caso de conflitos entre as obrigações dos membros das Nações Unidas.

Tal análise mostra-se oportuna pois, embora a intenção da Carta e dos países que participaram das negociações que nela resultaram foi a manutenção da paz por meio da proibição do uso da força, não se pode olvidar que o contexto internacional mudou radicalmente com o decorrer dos anos e passou a ostentar novos contornos, emergindo-se a questão sobre o uso da força no Direito Internacional e as chamadas intervenções humanitárias.

Assim, inicialmente discorre-se sobre o uso preventivo da força na legítima defesa dos Estados, para, na sequência, se adentrar no objeto do presente estudo:  as intervenções humanitárias em face da responsabilidade de proteção dos indivíduos.

Ao final, será analisado o caso do Timor-Leste para demonstrar as implicações da falta de consenso em torno do uso preventivo da força nas intervenções humanitárias. Embora a análise se restrinja a apenas um caso, suas implicações se estendem a todos, porque o problema é recorrente nos demais. 

 

2 A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS E O USO DA FORÇA

 

A Carta das Nações Unidas proscreve a guerra e fenômenos variantes, estabelecendo, em seu art. 2º, § 4º, ipsis litteris:

 

  • Artigo 2
  • A Organização e seus membros, para a realização dos propósitos mencionados no artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: 
  • [...]
  • 4. Todos os membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.

 

Rezek (2016) destaca que a Carta teve a cautela de não se referir nominalmente à guerra, mas a algo bem mais amplo e abrangente: o uso da força e até a sua ameaça. Assim, dentro do sistema das Nações Unidas, o único emprego legítimo do uso da força é aquele com que certo país se defende de uma agressão, de modo imediato e efêmero. Ainda, em havendo o esforço armado singular, a própria organização deve dispor de meios para que o confronto não perdure.

Com efeito, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969, trouxe, em seu bojo, a definição de norma imperativa de Direito Internacional geral - Jus Cogens, nos seguintes termos:

 

  • Decreto nº 7.030/2009
  • Artigo 53
  • [...] Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza.

 

Nesse diapasão, afirma Mezzanotti (2007) que, sem exageros, o princípio insculpido na Carta da proibição de ameaça ou do uso da força é um dos principais e mais importantes pilares sobre os quais se assenta o Direito Internacional contemporâneo, considerado Jus Cogens. Demais, a soberania e a autodeterminação dos povos se destacam como princípios fundamentais assegurados no documento.

Contudo, o cenário internacional mudou radicalmente após os atentados de 11 de setembro de 2001. Platiau e Vieira (2006, p. 186) aduzem que, “pelo disposto na Carta, fica ambíguo se a legítima defesa preventiva seria permitida”. Segundo o direito costumeiro, ela estaria condicionada, tão somente, aos critérios de necessidade, proporcionalidade e iminência. 

Assim, enquanto a caracterização do direito de legítima defesa exige que haja um ataque efetivo por parte do inimigo, a legítima defesa preventiva está ligada à não ocorrência, no momento, de um ataque. Carvalho (2013) sustenta que ela se baseia na possibilidade e plausibilidade de um ataque futuro a ameaçar um Estado. Assim, não é possível identificar claramente quando, ou mesmo, se haverá o ataque, podendo ser a ameaça real ou apenas potencial, até mesmo poderá ser imaginária do possível agredido futuro.

Todavia, faria sentido para um Estado, estando ciente da iminência de ataque armado inimigo, esperar que sua integridade seja violada para que o direito de legítima defesa possa ser aplicado? Nesse diapasão, o uso antecipado do direito de legítima defesa é defendido com o objetivo de se evitar maior dor e destruição.

Não se pode olvidar que o recurso à guerra é ilícito, por outro lado a dificuldade de atingir denominadores comuns que possam abranger todas as questões discutidas no âmbito da Carta levou à inclusão de termos ambíguos e vagos em seu texto. Mezzanotti (2007) aduz que o alcance dos termos dependerá se a utilização for restritiva ou extensiva. Em decorrência, a legítima defesa antecipada poderia ter arrimo na Carta.

Nessa linha de pensamento, ao abordar as novas variáveis de agressão externa pós atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e suas formas de enfrentamento, Accioly, Silva e Casella (2017, p. 950) defendem que “a repressão ao terrorismo internacional, por ser questão intrinsecamente internacional, que, por definição, não respeita fronteiras de estados, não pode ser tratada como questão interna, exigindo tratamento internacional”. Assim, urge que se faça a regulamentação internacional, tipificando o delito com vistas a dar azo à legalidade das ações necessárias ao seu enfrentamento. Caso contrário, em não havendo resposta internacionalmente coordenada, pode-se ensejar guarida a duvidosos oportunismos.

Em paralelo aos casos de uso da força por legítima defesa em decorrência de agressão real ou potencial, com arrimo no art. 2º, § 4º da Carta, exsurge o instituto da intervenção humanitária, conjunção de dois institutos distintos: direitos humanos e intervenção, cujo substrato estaria presente no Capítulo VII da Carta.

Mezzanotti (2007, p. 88) esclarece que a doutrina da intervenção hu­manitária ascendeu em face das “violações aos direitos humanos e ao Direito Internacio­nal Humanitário ocorridas internamente à soberania de Estados em casos de limpezas étnicas, genocídio e tantas outras violações”. Cita como exemplo aquelas observadas na ex-Iugoslávia e na Ruanda. Assim, haveria a relativização da soberania alheia para fins de evitar tais violações ou pôr fim a elas. 

Nessa perspectiva, a questão da intervenção humanitária suscita uma série de problemas, sendo o primeiro deles a proibição em face do princípio da não-intervenção, considerado um dos mais importantes fundamentos do direito internacional e da ordem mundial.

Curial esclarecer que intervenções humanitárias não se confundem com o Direito Internacional Humanitário, posto que este “reveste-se de caráter de exceção, aplicável em situações de emergência porque qualificadas pelo conflito armado” (MEZZANOTTI, 2007, p. 65), e visa a proteger a vida das pessoas envolvidas no conflito. Contudo, o termo Intervenção Humanitária parte da definição legal constante das convenções internacionais de Direito Humanitário. De acordo com Oliveira (2009, p. 117, apud HOLZGREFE, 2003, p.18):

 

  • As intervenções humanitárias são a ameaça ou o uso da força por um Estado, para além de suas fronteiras (ou grupos de Estados) para a prevenção ou término de graves violações generalizadas dos direitos humanos fundamentais dos indivíduos que não sejam os seus próprios cidadãos. 

 

Com efeito, percebe-se a complexidade que é o tema das intervenções humanitárias, pois envolve questões como os direitos humanos e a soberania.

Em relação à soberania, Vergueiro (2016) defende que, em Estados soberanos, em havendo negligências internas na ação de proteger os seu cidadãos, seria permitido o uso de ação coletiva externa dirigida à proteção individual dos seres humanos contra os excessos estatais, balizada pelo Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. Assim sendo, “a defesa da soberania de um Estado agressor não deveria ser alegada como prerrogativa para a violação dos direitos humanos” (SOUSA, 2015, p.114, apud M. WALZER).

Sousa (2015) defende como critérios de ação militar justificada a perda de vidas em larga escala e a "limpeza étnica" em larga escala, desde que a intervenção produza a esperança razoável de que intervir irá restabelecer direitos básicos às pessoas.

Nesse sentido, a doutrina não se revela pacífica, pois há duas correntes: intervenções humanitárias autorizadas e não autorizadas. A primeira hipótese decorreria de autorização do próprio Estado objeto da intervenção, no intuito de assistir as autoridades locais a controlar a situação interna, enquanto a segunda dependeria de autorização da ONU (MEZZANOTTI, 2007). A segunda hipótese é controversa frente à dúvida da sua existência ou não no direito positivo internacional.

Ainda, “no contexto da discussão contemporânea sobre intervenções, há pelo menos três formas de conceber as “intervenções humanitárias”: (a) intervenção em defesa da democracia, (b) intervenção humanitária unilateral e (c) a responsabilidade de proteger” (SOUSA, 2015, p. 115). O jurista argumenta que a  responsabilidade de proteger não deve ser vista como uma intervenção humanitária unilateral e conclui que, em se tratando do emprego de força militar, a responsabilidade de proteger somente pode ser exercida pelo Conselho de Segurança da ONU (CSNU).

Rememorando o discurso à Assembléia Geral das Nações Unidas de 1999 do então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, no qual externa suas preocupações, Sousa (2015, p.116) destaca que:

 

  • A idéia de “intervenção preventiva” ou “responsabilidade de proteger” pressupõe uma cultura de intervenção humanitária, inclusiva e cooperativa. Este modo de pensar estaria mais de acordo com a intenção da Carta, que deveria se voltar mais para povos e não tanto para governos. “A Carta, diz Kofi Annan, “nunca representou uma autorização para que os governos negassem direitos humanos ou dignidade humana. Soberania sempre significou não apenas poder, mas responsabilidade.”


Kofi Annan tinha a percepção da possibilidade de o uso da força ser legítimo na busca da paz, porque há casos em que a diplomacia não é capaz de resolver conflitos. Nesses casos, a intervenção militar deve ser considerada apenas como parte de outras intervenções. Não se pode utilizar a responsabilidade de proteger no sentido de se permitir a guerra preventiva com interesses diversos.

Nesse diapasão, Lima Jr. (2008) aborda a contribuição teórica do polêmico Chomsky com ênfase na análise de situações recentes relacionadas a conflitos humanitários em nível global. Chomsky considera intervenções humanitárias como sendo:

 

  • As ações, embora unilaterais, de potências militares no sentido de retórica e formalmente justificarem a manutenção da paz em regiões conturbadas, tendo como base os princípios de respeito aos direitos humanos e humanitários mais relevantes. (LIMA JR., 2008, p.129, apud CHOMSKY)

 

Contudo, o ativista político aponta a prática de “crimes terríveis” com arrimo na utilização dos Direitos Humanos e os altos princípios do Direito Internacional como justificativa para as intervenções humanitárias do final do século XX e início do século XXI.

Chomsky (2010) aduz que o sistema da ONU sofre com defeitos sérios, sendo o defeito mais crítico o papel esmagador dos principais estupradores das resoluções do Conselho de Segurança por meio do veto, um privilégio de membro permanente. Nenhum dos outros países se aproxima dos Estados Unidos e seu aliado britânico na questão de vetos. Desse modo, a única alternativa possível é o  "imperialismo humanitário" de estados poderosos que reivindicam o direito de usar a força porque “acreditam que é justo”.

Ao abordar o caso do Timor-Leste, o ativista sustenta que haveria uma tendência a considerar que a comunidade internacional fora forçada a enfrentar um desastre humano, quando, de fato, tal catástrofe humanitária não seria produto da negligência das democracias liberais, mas criação delas. Para Chomsky, os crimes cometidos no Timor-Leste poderiam ter sido facilmente evitados se houvesse interesse em evitá-los.

Corroborando essa argumentação, Tupinambá (2001) assevera que, por três décadas, não se via qualquer perspectiva de solução para os conflitos em Timor-Leste, bem como inexistia qualquer voz entre os intelectuais que os denunciasse. Foi Noam Chomsky quem teve o protagonismo de revelar a falta de comprometimento internacional para resolver problemas desta natureza. Nas palavras do nomeado autor, o caso Timor-Leste foi um terrível crime do século passado, pois:

 

  • (...) o assalto indonésio a Timor está nos lugares cimeiros, não só pela sua dimensão de holocausto - talvez o mais elevado número de mortes da população civil - mas porque poderia ter sido facilmente prevenido ou pelo menos interrompido a tempo (TUPINAMBÁ., 2001, p. 81,, apud CHOMSKY)

 

Dessa forma infere-se como um pacto estabelecido entre governos e imprensa termina por beneficiar os agressores, colocando as vítimas na escuridão do esquecimento deliberado. Chomsky afirmava, já nos idos de 1996, “que não havia ambigüidade sem cúmplices das investidas indonésias, nem complicações sobre a solução apropriada e nem necessidade da ameaça do uso de força para alcançá-Ia, nem mesmo a necessidade de sanções” (TUPINAMBÁ, 2001, p. 81). A solução apontada era simples: apenas reconhecer a mea culpa e os cúmplices desistirem daquele crime. Tanto que, ao final, aquelas nações outrora coniventes com a situação se viram acuadas pela opinião pública, cedendo espaço para a força de resistência da pequena população timorense.

Noutro giro, Ueta (2006, p. 97-98) aborda argumentos utilitaristas para a não-intervenção e aponta que “abrir uma exceção humanitária ao preceito da não intervenção será um incentivo, a longo prazo, para governos agressivos usarem as intervenções humanitárias para invadir outros estados, sem nenhum ganho humanitário verdadeiro”. Assim, uma intervenção humanitária somente seria moralmente justificada se maximizasse os direitos humanos de todos os afetados pela intervenção.

Nesse passo, aduz que a condição necessária para justificar intervenções humanitárias deve ser motivações puramente humanistas. Assim, há abuso quando um Estado esconde suas motivações verdadeiras e com interesses egoístas, sob o verniz de suspender violações aos direitos humanos. Nesta perspectiva, Ueta (2006) sugere formular padrões para medir o propósito humanitário da intervenção: a ação militar deve fazer parar privações de direitos humanos por governos; motivos não-humanitários colaterais não podem prejudicar ou rebaixar o supremo objetivo de direitos humanos da intervenção e os meios precisam sempre ser inspirados em direitos.

Dessarte, a intervenção humanitária poderia ser utilizada para ignorar a soberania dos demais países tendo como pretexto a defesa dos direitos humanos, utilizando-se a Carta da ONU visando a alcançar certo grau de legitimidade (LIMA JR, 2008).

Viotti (2005, p. 82) aponta que, pela prática recente da ONU, “a manutenção da paz tem fundamentos jurídicos e políticos distintos da imposição da paz sob o Capítulo VII, em que não há qualquer paz para se manter”. Nesse passo, o CSNU somente começou a utilizar seus poderes coercivos com supedâneo nesse capítulo na década de 1990, a partir do período pós Guerra Fria, conferindo significado abrangente ao que considerava ameaças à paz e à segurança internacionais. 

Todavia, no olhar de Chomsky (2010), com o final da Guerra Fria foi recorrente a retórica que finalmente o mundo ocidental teria o caminho livre para focar na tradicional luta por liberdade, democracia, justiça e direitos humanos. Dessarte, as noções de “intervenção humanitária” e “responsabilidade de proteger” se converteram em componentes recorrentes do discurso político ocidental, traduzindo-se na nova norma nas relações internacionais. Entretanto, na prática, a ajuda humanitária corresponderia a um conceito que abrigaria quase todo o ato agressivo realizado por qualquer potência: do ponto de vista do agressor seria uma ajuda humanitária, não o sendo do ponto de vista das vítimas.

Somente a partir de então o Conselho de Segurança mostrou-se disposto a atuar em situações de graves violações ao Direito Internacional dos Direitos Humanos e ao Direito Humanitário seja em forma de sanções econômicas, seja em forma de autorizações para ações militares. As decisões foram tomadas com base na existência ou não de ameaça ou ruptura à paz e à segurança internacionais, que justificasse a exceção contida no próprio artigo 2º, já mencionado.

 No tocante às intervenções humanitárias, Viotti (2005) destaca que o CSNU autorizou o uso de meios militares sob a justificativa de proteção do indivíduo nas seguintes situações de violência interna: Somália (1992-3), Ruanda (1994), Zaire (1996), Albânia (1997) e Timor-Leste (1999). O autor defende que devam ser autorizadas ações coercivas em conflitos internos, sem prejuízo de medidas de caráter preventivo e de longo-prazo, por razões humanitárias, em especial para evitar intervenções unilaterais.

Demais, no caso da proteção do indivíduo, não é cabível alegar incompetência da ONU, mesmo de caráter preventivo. Viotti (2005) argumenta que a ideia de que a ONU ficaria obrigada a assistir imóvel ao escalonamento de um conflito doméstico até que este chegasse a ameaçar a paz internacional está superada. Entretanto, a resposta da organização deve ser progressiva, em face do princípio geral de resolução pacífica de conflitos e situações (art. 2 § 3º da Carta). Assim, a opção militar deve permanecer como a última opção.

Assim, a responsabilidade de proteger constitui a proposta mais recente destinada a superar o conceito de intervenção humanitária, que por muitos anos tem gerado controvérsias nos meios diplomático e acadêmico, podendo haver eventual conformidade desses dois institutos com o Direito Internacional, sobretudo com os princípios e normas contidas na Carta das Nações Unidas. 

Nessa perspectiva será analisado o caso do Timor-Leste, no qual o Conselho de Segurança da ONU mostrou-se disposto a atuar diretamente frente a graves violações aos direitos humanos e ao Direito Internacional Humanitário. A análise permite avaliar a suposta cristalização de nova interpretação da Carta quanto aos poderes coercivos sob o capítulo VII frente a catástrofes humanitárias, assim como os resultados das operações de paz autorizadas sob a justificativa de proteção do indivíduo.

 

3 O CASO DO TIMOR-LESTE

 

  • “No Timor, tive a honra de conviver com um povo nobre, que, após décadas de violência e de intimidação, soube manter a alegria, a esperança e a tenacidade.
  • Conheci, também, centenas de funcionários e funcionárias anônimos das Nações Unidas e de agências humanitárias, que, da renúncia e da distância, retiram a força para ajudar ao próximo”. (VIOTTI, 2005, p. 05)

 

Como dito alhures, ao considerar os conflitos intra-estatais que emergiram com força a partir da década de 1990, os quais apresentam alto grau de degradação política, econômica, social e cultural, trazendo uma séria ameaça à paz e estabilidade do sistema internacional, a ONU adota um discurso de proteção aos direitos humanos e dos indivíduos como forma de garantir a ordem. Santos (2011, p. 12) expressa que:

 

  • [...] a Declaração Universal dos Direitos Humanos por mais que tenha sido considerado um marco para a proteção dos indivíduos, só encontra aplicação caso um Estado o faça em relação ao indivíduo. Ou seja: o Estado é o único ator capaz de prover os direitos humanos em sua totalidade aos cidadãos.

 

Ainda, o autor declara que há um nexo entre segurança, ajuda humanitária e desenvolvimento - o que ajuda a entender a real função da Organização das Nações Unidas no tocante à restauração de Estados e ideia de paz internacional.

Nessa toada, Spieler (2007) aponta o Conselho de Segurança das Nações Unidas como autoridade arbitrária habilitada a analisar o caso a caso, bem como autorizar ou não a intervenção humanitária; todavia, a grave violação aos direitos humanos nem sempre acarretará tal autorização. Nesse sentido, destaca que alguns autores  apontam a necessidade de reformulação do  Conselho de Segurança para limitar o poder de veto dos membros permanentes e para aumentar a representatividade e transparência de suas deliberações, o que refletiria no incremento de sua legitimidade.

Dessarte, analisando o caso em epígrafe, Spieler (2007, p. 82) aduz que “Timor-Leste é considerado, por alguns autores, como um dos casos de intervenção humanitária autorizada pelo Conselho de Segurança no período pós Guerra Fria.” Todavia, não há um consenso que configure, de fato, uma intervenção humanitária, havendo controvérsias no que tange aos elementos da conceituação de intervenção humanitária. Independentemente da ideia que seja adotada, a verdade é que se trata de um caso muito específico.

Sabe-se que República Democrática do Timor-Leste é um pequeno país de colonização portuguesa localizado na Ilha Timor, no Sudeste Asiático, e é conhecido como um dos países mais jovens do mundo (SILVA, 2007).

A divisão da ilha do Timor remonta à época colonial, quando holandeses e portugueses ocuparam o território. Com a independência, a Indonésia tornou-se sucessora do Estado holandês. O Timor-Leste, localizado na parte oriental da ilha, permaneceu sob administração portuguesa, contudo, a perspectiva de autodeterminação sobreveio com a Revolução dos Cravos, em abril de 1974 (VIOTTI, 2005).

No que concerne à descolonização de Timor-Leste, Gomes (2010) aduz ser válido apontar que o país se tornou independente de Portugal em 1975, mas, em seguida, foi invadido pela Indonésia, da qual ficou sob ocupação por 24 anos. Contudo, esta ação em momento algum foi aprovada pela Organização das Nações Unidas.

A Indonésia, que era estimulada por interesses econômicos e políticos, do final do ano de 1975 até a metade de 1998 não tinha a pretensão de alterar sua política para o Timor-Leste, tendo como preferência a continuação da ocupação violenta e repressora (SANTOS, 2011).

Chomsky (2010) relata que tanto Estados Unidos quanto o Reino Unido apoiavam o general Suharto da Indonésia, o qual pôs a riqueza do país a disposição da exploração ocidental, consagrando, assim, um dos piores períodos da história de direitos humanos no mundo, bem como, ganhou o registro mundial de corrupção.

O ativista aponta que a invasão da antiga colônia portuguesa de Timor-Leste perpetrou um dos piores crimes humanitários do século passado, além de devastar o país. Desde o primeiro momento, Suharto contou com a decisão dos Estados Unidos em matéria diplomática e militar, obtendo a adesão do Reino Unido à medida que as atrocidades alcançaram o ponto máximo em 1978.

No ano de 1975, quando Timor-Leste foi invadida pela Indonésia, o país possuía uma população aferida em 690 mil habitantes e que, no decurso da posse,  cerca de 200 mil pessoas morreram, ou por fome por se deslocarem às montanhas para não serem mortas, ou assassinadas (SPILER, 2007).

Supõe-se que cerca de um terço da população de Timor-Leste foi morta nos quase 25 anos de ocupação indonésia. Silva (2007, p. 217) narra que, em razão disso, Chomsky, em sua obra, caracterizou “o Estado indonésio como praticante do maior genocídio ocorrido no mundo depois do holocausto”.

Para culminar, Spiler (2007) elucida que todas as torturas, assassinatos e estupros permaneceram de forma contínua e preocupante durante todo o tempo em que a Indonésia ficou no poder de Timor-Leste.

Em demasia a todo terror, o Estado Indonésio obrigou os timorenses a aprender e a falar a língua indonésia, tornando esse o idioma obrigatório a e língua portuguesa totalmente proibida, visto que os oficiais do Estado da Indonésia entendiam como uma ameaça ao controle de governo do território a utilização do idioma portuguès por não o compreenderem (SILVA, 2007).

Apesar disso, a mídia internacional somente iniciou a cobertura do que acontecia no país após o Massacre de Santa Cruz, ocorrido em 12 de Novembro de 1991, dentro de um cemitério de Díli, o que causou revolta ao ser transmitida e obrigou todo o mundo a abrir os olhos para as brutais e contínuas violações de direitos humanos em Timor-Leste.

Após uma incessante pressão da comunidade internacional sobre os líderes de governo, em 5 de maio de 1999 o líder da resistência timorense entrou em acordo com Portugal acerca de uma “consulta popular”, pela qual o povo timorense escolheria entre duas opções: autonomia dentro da República da Indonésia ou a independência. Spiler (2007) relata que, mesmo a par do acordo, o exército indonésio começou a treinar milícias armadas da localidade e passaram a preconizar pânico no país.

Assim, a ONU foi chamada para intervir com o intuito de guiar o povo timorense nos processos que conduziram até a sua soberania. Com rapidez sem precedentes, o Secretário Geral das Nações Unidas propôs a criação da missão denominada de UNTAET (Administração Transitória das Nações Unidas no Timor Leste) a fim de fortalecer ações de forma multidimensional e com a intenção de manter a ordem pública, bem como garantir a segurança durante a transição a um governo democrático para o novel país (GOMES, 2010).

Entre os meses de junho e agosto de 1999 o Conselho de Segurança e a UNAMET (Missão das Nações Unidas em Timor-Leste) traçaram importantes caminhos até o término do período da campanha eleitoral e o dia da votação, ocorrido em 30 de agosto. Após a votação, a UNIF (Frente Unida pela Autonomia) protestou junto à UNAMET argumentando que havia sido injusto e ilegítimo todo o processo de votação, o que foi considerado desprovido de qualquer fundamentação pela Comissão Eleitoral (SPIELER, 2007).

Posteriormente à contagem dos votos veio a conquista à independência. Em decorrência, as milícias indonésias anunciaram campanhas de ataque, matando todos os suspeitos de terem votado a favor da independência, bem como separando diversas famílias, fazendo com que a ONU abandonasse a capital Díli. 

Viotti (2005) destaca que o anúncio da vitória esmagadora da proposta pela independência foi o estopim para eclosão de violência por todo Timor-Leste. Houve centenas de assassinatos, estupros e da destruição em massa de prédios públicos e privados, sendo que quase totalidade da população foi deslocada, seja em fuga para as montanhas, seja sob coerção para o Timor-Oeste.

Em razão disso, no mês de setembro, milhares de pessoas começam a se unir para manifestações em frente às embaixadas em Lisboa. Viotti (2005, p. 119) relembra que “o território permaneceu, ao menos nominalmente, sob administração portuguesa, nos termos do Capítulo XI da Carta”. Em decorrência, o Presidente de Portugal autorizou o envio de força multinacional da ONU e os países da ASEAN (Associação de Nações do Sudeste Asiático) concordaram em apoiar uma força de intervenção da ONU.

No dia 15 de Setembro o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou a Resolução 1264, de 1999, censurando qualquer violência que fosse praticada em Timor-Leste e reivindicando que os causadores fossem expostos diante da Justiça. Logo após, uma força comandada pela Austrália e denominada de INTERFET (Força Internacional para o Timor-Leste) entra no país a fim de enfrentar a crise humanitária e de segurança que se alastrava sem controle (GOMES, 2010).

Destacam-se os seguintes excertos da indigitada Resolução:

 

  • Expressando sua preocupação quanto a notícias indicando que violações sistemáticas, maciças e flagrantes do direito internacional humanitário e dos direitos humanos foram cometidas no Timor-Leste (...)
  • Determinando que a presente situação no Timor-Leste constitui uma ameaça à paz e à segurança, (...)
  • Autoriza o estabelecimento de uma força multinacional sob uma estrutura de comando unificada, de acordo com a requisição do Governo da Indonésia (...), com as seguintes funções: restaurar a paz e a segurança no Timor-Leste, proteger e apoiar a Unamet na execução de suas funções e, dentro de suas capacidades, facilitar as operações de assistência humanitária.

 

Em 20 de maio de 2002 Timor-Leste conquistou a independência, tornando-se um país soberano. Nesse mesmo mês a UNTAET encerrou seus trabalhos, dando lugar à UNMISET (Missão das Nações Unidas de Apoio no Timor Leste) instituída através da Resolução 1410 do Conselho de Segurança (SANTOS, 2011).

Curial destacar que, no caso em apreço, em apenas 3 dias foi efetivada uma força multilateral com a intenção de reconstituir a ordem em Timor-Leste. Ainda, neste mesmo momento, ocorreu a autorização do Conselho de Segurança para a consolidação da ação, sob a mencionada Resolução 1264/99.

Pelo exposto, é possível entender, resumidamente, as circunstâncias que resultaram nas incessantes intervenções das Nações Unidas no Timor-Leste. Ainda, constata-se que a ONU atuou no caso em tela somente a partir de junho de 1999, estabelecendo uma eficaz administração, da qual autorizou a volta dos refugiados às cidades, garantiu a assistência humanitária, esteve presente na criação de serviços sociais e civis e auxiliou na criação de condições básicas e necessárias ao desenvolvimento sustentável.

Desta maneira, as graves e maciças violações aos direitos humanos impostas aos timorenses fizeram com que o Conselho de Segurança autorizasse uma intervenção, mesmo que não houvesse aplicado antes disso qualquer medida coercitiva. Assim, em face da seriedade e necessidade, a intervenção foi o primeiro meio utilizado para resolução do problema.

 

4 CONCLUSÃO

 

Neste trabalho buscou-se avaliar a possibilidade do uso preventivo da força em Estados Soberanos por razões humanitárias em face das limitações previstas na Carta das Nações Unidas.

As intervenções preventivas por razões humanitárias não se confundem com o uso da força em legítima defesa de uma agressão real ou iminente, sendo esta permitida dentro do sistema das Nações Unidas, com amparo no art. 2º, § 4º da Carta.

Embora o uso preventivo da força seja ilegal perante a Carta, as intervenções humanitárias são defendidas com arrimo no Capítulo VII do documento. Contudo, pode-se inferir que as supostas intervenções humanitárias não encontram respaldo no Direito Internacional à luz dos princípios da soberania, autodeterminação e não-intervenção. 

Demais, de modo geral, há o constante risco de se legitimar intervenções militares inspiradas ideologicamente por interesses econômicos, em nome da falsa defesa de direitos humanos. Tal fato, contudo, não deveria nos esquivar do compromisso moral com esses direitos.

Nesse sentido, uma ação militar oportunista que utilize o argumento da intervenção humanitária é uma questão difícil de ser resolvida. Desse modo, tal questão poderia ser solucionada com um acréscimo na Carta prevendo os meios e circunstâncias nas quais ela seria aceita. Assim, o direito positivo limitaria a abrangência do instituto, bem como o ressarcimento do dano caso seja declarada ilegal a intervenção.

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  • naçõesunindas
  • intervençõeshumanitárias
  • usodaforça

Referências

ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento e; CASELLA, Paulo Borba. Manual de Direito Internacional Público. São Paulo: Saraiva, 2017.

BRASIL. Decreto nº 7.030, de 14 de Dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm>. Acesso em: 23 mar. 2020.

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Correspondente Jurídica Bianca Becker

Estudante de Direito - Taquara, RS


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