A FAMÍLIA E O SUPERENDIVIDAMENTO: aspectos e consequências jurídicas
Deise Emanuele Lima de Menezes Ramos*
RESUMO
O artigo objetiva analisar empiricamente a evolução histórica da família e o superendividamento considerando os principais impactos jurídicos desta relação. Tendo como metodologia a pesquisa bibliográfica, o mesmo analisa historicamente o surgimento e evolução das relações de consumo no âmbito familiar. O comportamento da sociedade consumerista é ponderado sob a perspectiva jurídica e social, e o comportamento dos núcleos familiares frente ao crédito é discutido. O superendividamento e seus desdobramentos são apresentados de forma multidisciplinar, bem como a proteção ao consumidor superendividado. Por fim trata das consequências do superendividamento para a vida das famílias e traz a baila as possíveis alternativas para a prevenção e tratamento deste.
PALAVRAS CHAVE: Direito. Família. Consumidor Superendividamento.
ABSTRACT
The paper aims to empirically analyze the historical evolution of the family and the over-indebtedness considering the main legal impact of this relationship . With the methodology literature , the same historical analysis of the emergence and evolution of consumer relations within the family. The behavior of the consumerist society is weighted in the legal and social perspective, and the behavior of the family against the credit nuclei is discussed . The over-indebtedness and its developments are presented in a multidisciplinary way , and the protection superendividado consumer. Finally comes the overindebtedness of the consequences for the lives of families and brings to the fore the possible alternatives for the prevention and treatment of this .
KEYWORDS : Right . Family. Consumer. Overindebtedness .
SUMÁRIO
Introdução. 1. A família e o superendividamento: aspectos e consequências jurídicas. 1.1 A evolução das relações de consumo das famílias brasileiras. 1.2 A sociedade o consumo e o superendividamento. 1.3 As causas e consequências do superendividamento familiar. 1.4 A proteção do consumidor superendividado. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente estudo aborda o tema: a família e o superendividamento: aspectos e consequências jurídicas. Estas afetam diretamente a qualidade de vida das famílias e se apresentam como um emergente problema jurídico e social, que atinge toda a cadeia produtiva da sociedade.
Nesse sentido, o problema científico a ser identificado trata-se das principais consequências do superendividamento no âmbito familiar, na amplitude dos aspectos jurídicos. Com base neste problema, a pesquisa tem como objetivo analisar, empiricamente, os fatores geradores e as consequências do superendividamento das famílias e propiciar a discussão acerca das soluções jurídicas para a prevenção e tratamento do mesmo.
Os objetivos específicos, inicialmente, serão apresentados nos tópicos que versão sobre: a evolução das relações de consumo das famílias brasileiras, fazendo um paralelo entre o passado e o presente sob uma perspectiva jurídica. Além disso, o artigo analisará a sociedade, o consumo e o superendividamento, bem como sua inter-relação e por fim, será explanado o papel da família, dos poderes públicos e da legislação consumerista na proteção do consumidor superendividado.
Em virtude dessas considerações, a relevância da pesquisa se dá pelo fato do fenômeno do superendividamento se multiplicar rapidamente na sociedade, trazendo várias consequências para as famílias e não ser plenamente tutelado pelo Direito Brasileiro. Por isso o papel dos entes públicos e privados neste processo será explano sob o ponto de vista jurídico a lei, a doutrina, e a jurisprudência darão subsídios para o entendimento da necessidade de tutela da família superendividada.
1. A FAMÍLIA E O SUPERENDIVIDAMENTO: aspectos e consequências jurídicas
1.1 A EVOLUÇÃO DAS RELAÇÕES DE CONSUMO DAS FAMÍLIAS BRASILEIRAS
O ato de consumir tem sido uma constante na história da humanidade, sendo a família a principal célula deste órgão. De acordo com Farias; Rosenvald (2010), o ser humano, ao receber o dom da vida, está ligado de alguma maneira ao seio familiar, considerado como “estrutura básica social”. A mesma passou por vários ciclos de desenvolvimento ao longo dos séculos, modificando inclusive a sua forma de consumir. De acordo com Maurer (2012, p.7), “o consumo é parte indissociável do ser humano em todos os períodos de sua existência, independente de idade, gênero, casse social ou faixa etária”.
O conceito de família, e as relações sociais estabelecidas entre as mesmas bem com as relações consumeristas, existem desde o surgimento das sociedades. Contudo, aponta Lucca (2003), que a preocupação com a família enquanto consumidora detentora de direitos e deveres tem uma longa história, mas, a proteção jurídica, na verdade, é muito recente.
No Direito antigo, a família primitiva tinha como característica principal a mútua proteção e segurança. Entende Siqueira (2010), que a formação da família era determinada pela necessidade de subsistência, a qual regulava as uniões e o número de filhos.
Nesta época, as diferenças sociais eram incomensuráveis e a maioria das famílias tinha como ideal consumir para a satisfação das necessidades básicas para a sobrevivência. No início do século XVI, de acordo com Aires (1978), no Brasil, as influências do Direito de Família vieram do direito canônico, que regulava a forma de agir e pensar dos grupos.
Na Grécia antiga a família era sacrificada em prol do crédito, havia uma preocupação manifesta com a defesa do consumidor, para sanar vícios ocultos e nas operações que envolviam a concepção de credito, em especial empréstimos, conforme assinala Kosteski (2004). Quando o individuo tomador não conseguia quitar o empréstimos realizado, o credor lhe tomava as terras, casas e, até mesmo, a vida do devedor e da sua família que passavam ao jugo mesmo, podendo este vendê-los como escravos. Hoje em dia a legislação brasileira, coíbe qualquer tipo de prática deste tipo, inclusive a prisão do depositário infiel, conforme a Súmula nº 25 do STF, para que o devedor pague suas dívidas de qualquer natureza até o limite dos seus bens ao invés de pagar com a própria vida ou ainda a sua dívida passar para herdeiros.
Ariés (1978) entende que na era moderna, as diferentes concepções de famílias estiveram pautadas no modelo de família patriarcal verticalizada, na qual o pai ocupava o lugar central enquanto os filhos e a mulher ficavam em segundo plano. Contudo, na sociedade contemporânea emergiu outro tipo de família, introduzindo mudanças radicais nos laços entre as pessoas; a mulher e as crianças ganharam novas posições. A luta pela igualdade de direitos tornou-se uma das características da era moderna, se consolidando com a edição do Decreto nº. 181 de 1890, que introduziu no Brasil o casamento civil.
Com a Revolução Industrial, as famílias deixam de produzir para a sua subsistência nas lavouras e passam a trabalhar dentro das fábricas. No século XX, conforme aduz Siqueira (2010), a sociedade deu grandes saltos em termos de desenvolvimento principalmente a partir dos anos 60 quando se iniciou a liberação dos costumes, a revolução feminina, o rompimento do ciclo casamento/sexo/ reprodução e a evolução da genética, que possibilitou novas formas de reprodução e uma perspectiva mais igualitária entre homens e mulheres e entre outros fatores contribuíram para redefinição do conceito de família.
A Constituição Brasileira de 1967 trouxe um dado novo para o conceito de família, pois, ao contrário das demais, não declarou ser a família constituída pelo casamento civil indissolúvel. Com este novo pressuposto, o número de separações e divórcio começou a crescer e, com isso, novos padrões de família e de consumo começaram a se consolidar.
Nos dois últimos séculos, houve uma evolução na função social da família. A proteção a esta se expandiu e a mesma passou a ser concebida pelos laços da afetividade conforme versa Dias (2009), visando à felicidade dos seus membros. Com o advento da Constituição Federal de 1988, e a tutela do divórcio, a sociedade reconheceu novos núcleos familiares e os papéis foram modificados com a inserção da mulher no mercado de trabalho, podendo agora ser o provedor tanto o homem quanto a mulher. A expectativa de vida também se ampliou, graças aos avanços da ciência que melhoraram a qualidade de vida das pessoas.
Contudo, para atender aos anseios e necessidades individuais e coletivas desta nova geração, motivada pelo desejo de liberdade, independência e reconhecimento ocorrem gastos em excesso, que podem ser voluntários e involuntários e que geram desequilíbrios financeiros podendo levar as famílias a uma situação de endividamento até de superendividamento.
1.2. A SOCIEDADE, O CONSUMO E O SUPERENDIVIDAMENTO
O século XIX foi um marco para o início do desenvolvimento da sociedade de consumo enquanto a revolução tecnológica do final do século XX, o advento da Internet e a difusão dos meios de comunicação em massa, para Menezes (2008), trouxeram um potencial inovador ímpar, pois permitiu a superação das paredes dos escritórios e das salas de aula e o intercâmbio de ideias entre pessoas de outras cidades ou países, ou seja, uniram os povos em uma aldeia global, que busca acelerar o crescimento econômico a qualquer custo, impondo um padrão de comportamentos e atitudes nas relações de consumo das pessoas, das famílias e das culturas.
As facilidades geradas pela tecnologia de ponta norteiam, hoje, os diferentes modos de vida das famílias na sociedade ocasionando uma evolução na forma de consumir produtos e serviços.
De acordo com dados recentes da Pesquisa de Educação Financeira realizada pela empresa SPC Brasil, em fevereiro de 2015, sobre o comportamento dos consumidores, 43% dos entrevistados compram por impulso devido a motivos emocionais, enquanto 85% dos consumidores fazem alguma compra sem planejamento prévio e 42% dos mesmos não guardam nada de seus rendimentos.
Bauman, (2008), caracteriza a sociedade de consumo pela aquisição excessiva e pela rápida substituição dos bens disponíveis no mercado. Na sociedade consumerista as pessoas são impelidas a consumir em curtos espaços de tempo para a satisfação dos desejos. Na sociedade em que o “ter” está sendo mais valorizado que o “ser”, os objetos de desejo passam a ter um valor simbólico de acordo com Marimpietri (2009). Motivados pela necessidade de reconhecimento exterior e apoiado pelo crédito fácil, muitos consumidores são levados a acreditar que consumir é sinônimo de felicidade.
Em consonância com a professora Flávia Marimpietri (2009, p.69) “as pessoas procuram cada dia mais a satisfação de desejos, sem perceber que tal movimento conduz a uma escalada infinita. Consumir deveria significar preencher necessidades, e não preencher desejos.” Aduz ainda que “os sujeitos vivem na era do consumismo, ou seja, consumir por consumir, por prazer, status, por vaidade, por ansiedade, por recompensa”.
Concordando com o entendimento acima, Maria Stella Gregori (2008, p.249) explana que: “os consumidores passam a consumir de acordo com os seus desejos, o modo de vida centrado em valores materialistas, caracterizando a sociedade hedonista, sociedade do desejo”, ou seja, as pessoas passaram a se preocupar apenas com o prazer imediato e o constante bem estar. Com isso, ocorre uma deturpação dos princípios e valores sociais que fazem do ato de consumir uma das necessidades básicas de sobrevivência e reconhecimento social.
Em pleno século XXI, voltamos a viver como no sistema medieval, separados por castas como aduz, Marimpietri (2011), na medida em que são construídas barreiras entre as pessoas e universos paralelos que levam as mesmas a consumirem determinados produtos ou marcas para fazerem parte de distintos grupos sociais. Maurer (2012, p. 16), afirma que “na sociedade de consumo a felicidade está diretamente ligada à aquisição de mercadorias, as quais serão determinantes, para que o indivíduo integre, ou não, determinada classe ou grupo social”.
Ao ponto de muitas pessoas, consumistas natas, para não deixar de saciar seus desejos adquirem dívidas que, não raras vezes, não conseguem honrar, e por isso enfrentam uma situação de superendividamento. Este fenômeno social é tão grave que também gera aumento da violência e da delinquência, quando alguns indivíduos não possuem os recursos financeiros necessários para consumir o que deseja e encontram na criminalidade como um caminho mais fácil para atender ao apelo do consumo.
É notório observar, por exemplo, nas casas de algumas pessoas de parcas condições financeiras, uma TV de plasma com 3D, e/ou um aparelho de som potente, quando muitas vezes não há uma cama, fogão ou geladeira em bom estado de uso. Quantas são as famílias que possuem um carro importado e não possuem casa própria, sem falar daquelas que compram um celular de ultima geração, dividindo o pagamento em várias vezes no cartão de crédito e não têm condição de pagar por créditos pré-pagos, e ainda tem aquelas que não dispõem de uma cédula de dois reais na carteira, mas possuem mais de uma dúzia de cartões que, somados os limites, o valor total ultrapassa a renda familiar mensal.
Viver de aparências está se tornando uma regra. As pessoas são mais valorizadas pelo que tem e pelo que vestem do que pelo conhecimento e experiências acumuladas. No meio coorporativo e jurídico estas discrepâncias podem ser facilmente percebidas, é só observar o tratamento que é dado, por exemplo, a dois advogados bem vestidos, só que o primeiro com roupas de marca e o segundo não. Para se sentirem excluídas do meio em que vivem ou querem viver, os sujeitos assumem dívidas além das suas receitas e extrapolando até a capacidade financeira familiar e se endividam cada vez mais, tornando isso um ciclo vicioso.
1.3. AS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DO SUPERENDIVIDAMENTO FAMILIAR
Na sociedade consumerista, o crédito é mecanismo sócio-jurídico, disponibilizado ao consumidor moderno para proporcionar a realização de seus sonhos e desejos como um verdadeiro catalisador da felicidade humana.
A oferta de crédito direcionado ao consumo teve sua origem nos Estados Unidos, expandindo-se posteriormente para a Europa e de modo recente a outros países menos favorecidos economicamente. (LIMA, 2006). Já no Brasil, para Lima (2006), a oferta de crédito tornou-se mais expressiva a partir da estabilidade da moeda, ou seja, com o advento do Plano Real (1994), quando o crédito tornou-se um dos mecanismos de gestão do orçamento familiar e componente das economias de mercado. Desta forma, com a estabilidade econômica, as instituições financeiras mudaram o foco passando a privilegiar as operações de crédito antes as aplicações em conta poupança.
Fato individual com consequências sociais, incentivado pelo desejo de obter produtos e serviços sem o prévio planejamento dos gastos, o endividamento se apresenta nas diversas classes sociais. A economia de mercado desenvolvida no Brasil é voltada para o incentivo ao consumerismo, no qual os consumidores são impulsionados a consumir para manter a economia aquecida.
Para Bolade (2012), a concessão de crédito ao consumidor está associada ao desenvolvimento econômico, uma vez que, proporciona o acesso das classes mais pobres a bens e serviços de consumo, sendo, desde logo um fator de inclusão social.
De acordo com a Pesquisa Nacional de Intenção de Consumo das Famílias (ICF-Nacional) medida em abril de 2015, o percentual de famílias com dívidas ou contas em atraso apresentou alta na comparação mensal, passando de 20,8% em março de 2014 para 21,0% em abril de 2015. Enquanto o percentual de famílias que declararam não ter condições de pagar suas contas em atraso, foi de 8,3% em abril de 2014 e 7,7% em relação a abril de 2014.
Entre as famílias endividadas, a parcela média da renda comprometida com dívidas aumentou na comparação anual, passando de 29,9% para 30,9%, e 22,6% delas afirmaram ter mais da metade de sua renda mensal comprometida com pagamento de dívidas. Pelos percentuais relacionados é possível notar que o nível de endividamento da população está crescendo anualmente e mensalmente.
Na atual sociedade consumerista, os empresários costumam por meio do crédito fácil, criar facilidades para que o consumidor não pare de consumir, sejam elas pelo fornecimento e/ou aumento de crédito, fornecimento de cartões e boletos de loja, aumento do limite de cheque especial, empréstimos consignados e os facilitados sem burocracia (com juros elevados), ofertas, promoções, entre outras formas, levando o consumidor a consumir por impulso, sem fazer uma reflexão prévia se haverá saldo suficiente para adimplir as novas obrigações.
De acordo com Martinex (2010, p.3), “as taxas de juros no Brasil estão entre as maiores do mundo e as modalidades que representam as maiores facilidades de acesso ao crédito, como o cartão de crédito e o cheque especial, são as que possuem os maiores encargos de financiamentos”. Apesar de existir alguma regulamentação sobre a temática, não há um controle efetivo e contundente do Estado.
O cartão de crédito foi apontado pela Pesquisa Nacional CNC – Endividamento e Inadimplência do Consumidor, medida em abril de 2014, como um dos principais tipos de dívida por 74,8% das famílias endividadas, seguido por carnês para 16,9%, e, em terceiro, por financiamento de carro, para 13,8%.
O abuso do direito na concessão de crédito é apontado como um grande problema da sociedade de consumo, principalmente quando a modalidade de crédito é precedida de uma pratica abusiva e atentatória ao princípio da dignidade da pessoa humana, conforme jurisprudência abaixo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO DO CONSUMIDOR. SUPERENDIVIDAMENTO. ABUSO DO DIREITO DE CONCESSÃO DE CRÉDITO. VIOLAÇÃO AOS DEVERES ANEXOS. ...Impossibilidade de confisco integral de renda, prática abusiva e atentatória à dignidade da pessoa humana. (...). (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 005695158 20138190000 RJ 0056951-58.2013.8.19.0000, 6ª Câmara Cível, Relatora: Claudia Pires dos Santos Ferreira, 2014). (grifo nosso).
Este quadro se agrava pelo fato do Brasil não permitir a falência da pessoa física, como em outros países, o crédito ao consumidor, pessoa física, torna-se um problema quando o consumido tem que abrir mão até do mínimo existencial para quitar as suas dívidas.
O endividamento gerado na maioria das vezes pelo fácil acesso ao crédito pode levar à exclusão total ou parcial das famílias da sociedade consumo. O mesmo em demasia pode levar o consumidor a uma situação de superendividamento que, para Marques (2010), pode ser definido como impossibilidade global do devedor-pessoa física, consumidor, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo em um tempo razoável com sua capacidade atual de rendas e patrimônio. O fenômeno do superendividamento pode atingir uma esfera macro quando uma gama de consumidores passa a enfrentar a mesma situação.
Neste prisma, é relevante denotar que são variadas, as causas geradoras das situações de superendividamento, subdividindo-se em fatores externos e imprevistos, tais como desemprego, morte, acidente, redução de salário, doença, divórcio, entre outros, e fatores previsíveis, advindos como consequência da má administração das finanças e/ou falta de educação financeira.
O descumprimento do dever de informação, a negligência na concessão de crédito, a publicidade excessiva, a falta de incentivo à educação financeira e ao planejamento dos gastos, o crédito facilitado, crises econômicas, altos índices de inflação, desequilíbrio econômico do país, exclusão social, o estímulo ao consumo por parte do Governo por meio de incentivos fiscais entre outros, também são fatores que impulsionam o crescimento do nível de superendividamento da população.
Contudo, ao consumidor superendividado de boa-fé, ou seja, aquele que não se endividou com a ambição de lesar os credores, mas por inexperiência, despreparo ou falta de orientação e tem o desejo de quitar as suas dívidas, é pertinente a proteção jurídica. Quanto ao consumidor que age de má-fé, que deliberadamente assumiu novas despesas sabendo que não teriam como pagar, e não tendo a intenção de fazê-lo, se esta for comprovada, a legislação brasileira não tenderá a proteger este indivíduo.
Pelos diversos motivos citados anteriormente o nível de endividamento das famílias brasileiras aumenta a cada ano, de acordo com a Pesquisa Nacional de Intenção de Consumo das Famílias (ICF-Nacional) medida em abril de 2014, o percentual de famílias endividadas que ganham até dez salários mínimos foi de 64,1% em abril de 2014, ante e 63,8% em abril de 2013, ou seja, no comparativo o nível aumentou de um ano para o outro. O número de pessoas físicas inadimplentes na base de registros do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) aumentou 5,54% em fevereiro de 2015 na comparação com o mesmo mês de 2013. A alta foi maior do que a verificada em fevereiro de 2013 (5,34%), de forma que em março de 2014, o país registrou 52 milhões de consumidores inadimplentes, ou seja, os dados demonstram que o percentual dos números de famílias aumentou, bem como o nível de inadimplência.
Para Andrade et al. (2008), o não cumprimento das obrigações é decorrente da situação econômica do país, o que faz com que os indivíduos, na hora de honrar seus compromissos financeiros, deem prioridade às suas necessidades básicas, não conseguindo cumprir com outras obrigações.
O consumo em excesso tem um preço que é imposto pelo sistema capitalista. Tudo que o consumidor compra, seja à vista ou a prazo, em algum momento terá que ser pago. Nos casos em que não houve um planejamento para o pagamento da nova dívida, o consumidor, terá que pagar com o dinheiro que seria relocado para dívidas fixas ou variáveis já existentes; recorrendo a algum tipo de empréstimo ou estará fadado a ficar inadimplente.
O problema é que na medida em que o sujeito fica inadimplente, o seu nome fica "sujo", ou seja, passa a fazer parte da lista dos maus pagadores nos serviços de proteção ao crédito e quando isso acontece, as mesmas portas que se abriram para incentivá-lo a consumir e forneceram crédito se fecham para ele.
Com o nome “sujo” e endividado, segundo versa Marimpietri (2009), o consumidor perde, paulatinamente, a capacidade de sair deste estado de inadimplência. Instala-se um ciclo vicioso – as dívidas impedem a concessão de novos créditos para pagamento das antigas dívidas, passando a acumular estas com o aparecimento de outras. Se continuar consumindo na mesma proporção, facilmente enfrentará uma situação de superendividamento, e parando de consumir se tornará um ser inativo e descartável para a sociedade de consumo.
O superendividamento pode provocar consequências de ordem multidisciplinar, atingindo os consumidores e suas respectivas famílias, na medida em que o sentimento de incapacidade de sanar suas pendências com os credores afeta a estrutura e rotina familiar como um todo. Conforme defende Cerbasi (2009),
Estes fatores, aliados ao acúmulo de preocupações, geradas pela busca de soluções para a situação de superendividamento podem gerar ainda desentendimentos, mudança de comportamento dos indivíduos, agressividade, impaciência e até situações de violência doméstica e divórcio entre outros. Ainda mais porque, a principal preocupação da maioria dos credores é apenas com a quitação do débito, pouco importando se o consumidor possui meios para isso ou se terá que dispor só de seu mínimo vital para tanto.
Na esperança de reorganizar suas finanças e saldar as dívidas, muitos consumidores comprometem o patrimônio e renda familiar, para tentar saldar as dívidas e mesmo assim não tem obtido resultados satisfatórios quanto ao alcance de um equilíbrio econômico-financeiro. A liquidação do patrimônio penhorável do devedor para a satisfação dos créditos pendentes, pode ser considerada como uma das maiores consequências do supereendividamento.
1.4 A PROTEÇÃO JURÍDICA DA FAMÍLIA FACE AO SUPERENDIVIDADO
A proteção dada ao consumidor superendividado na conjuntura atual do ordenamento pátrio, é insuficiente para tutelar as mais diversas situações pertinentes ao tema. O Código de Defesa do Consumidor elenca além de princípios, alguns artigos que são utilizados por analogia pelos magistrados na tentativa de assegurar a proteção do consumidor superendividado em determinadas situações, já que ainda não há uma regulamentação própria para tutelar o mesmo.
O inciso V, do artigo 6º do CDC, por exemplo, prevê a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou ainda sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Desta forma, o legislador pretendeu promover um equilíbrio contratual com a prevalência da defesa do consumidor, em face da autonomia da vontade.
No mesmo contexto, é importante destacar também o artigo 46º do CDC que versa que: “os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão”, neste caso, os contratos que incorrerem neste erro, serão considerados inválidos, já que podem induzir o consumidor a erro.
De acordo com Postiguilhone, Feversani e Almeida (2010), o CDC possui cláusulas expressas especificamente para o superendividamento tecer um panorama fictício da realidade, na medida em que o tema superendividamento carece de atenção pelo legislador, tendo em vista que o tema é carregado por subjetivismo, partindo-se da premissa que é necessário sempre estar caracterizada a boa-fé nas dívidas adquiridas pelo consumidor.
A carta magna de 1988 trata no artigo 5º da proteção ao consumidor no âmbito geral e estabelece também a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, no artigo 1º, inciso III. Por isso, a proteção do consumidor superendividado recebe o amparo constitucional na medida em que a prevenção e o tratamento deste fenômeno serão formas de assegurar a dignidade dos consumidores superendividados entre outros princípios, (MARQUES, 2005).
Para Marques (2005, p.49), “o superendividamento é uma crise de solvência e de liquidez do consumidor, crise que facilmente resulta em sua exclusão total do mercado de consumo, comparável a uma nova espécie de “morte civile”: a “morte do homo economicus”, ou seja, o superendividamento pode significar a morte econômica do indivíduo e o seu isolamento da sociedade de consumo com reflexos em todo o seu grupo familiar. Além disso, pode trazer também inúmeras restrições na vida social e profissional.
Para prevenir as situações de superendividamento, além do apoio governamental, é peculiar que seja amplamente observado o princípio da informação, bem com a concessão de crédito pelas instituições financeiras deve ocorrer forma responsável com o controle e fiscalização dos Órgãos de Proteção e Defesa do Consumidor.
O tratamento das situações de superendividamento no Brasil também é realizado pelos órgãos de proteção e defesa do consumidor, de forma empírica, porque a falta de estatísticas oficiais do número de superendividados dificulta a identificação dos níveis de superendividamento dos consumidores e o desenvolvimento de políticas preventivas e tratativas baseadas em dados fáticos. No país, os únicos bancos de dados disponíveis, apenas para registro dos casos de inadimplemento, são os dos serviços de proteção ao crédito, gerenciados pelas empresas SPC Brasil e SERASA Experian.
Para Postiguilhone, Feversani e Almeida (2010), a concessão desmesurada de crédito tem provocado a falência de muitos consumidores, o que gera consequências jurídicas pela insolvência, e desencadeia problemas de ordem social com a restrição ao crédito e exclusão da sociedade de consumo. Ademais como já citado, para tentar reverter esta situação muitas famílias passam a dispor de seu mínimo existencial, vivendo, muitas vezes, em uma situação de miserabilidade com suas famílias.
Para o tratamento das situações de superendividamento seria pertinente também à adoção acordos por meio de um plano de pagamento amigável, em que as partes fossem livres para renegociar suas dívidas e estabelecer as respectivas condições de extinção dos débitos, bem como a possibilidade de o reparcelamento das mesmas.
A família, nesta conjuntura, exerce um papel de singular relevância no quesito superendividamento, cabe a ela o papel basilar de transmitir valores e princípios que incentivem o desenvolvimento do consumo consciente por parte dos seus membros. Cabe a ela também oferecer apoio aos mesmos no tratamento da situação de superendividamento, na qual toda a família deve permanecer unida e tentar amenizar as consequências do superendividamento, por meio do apoio social e psicológico. Através deste apoio, o indivíduo superendividado pode melhorar a autoestima, evitar depressões, brigas e desentendimentos de forma mais rápida, consciente e assertiva, tomar decisões em conjunto para conseguir reverter esta situação que atinge direta ou indiretamente a todos os membros desta.
O superendividamento, como observado é uma das matérias que ainda não é observada expressamente pelos diplomas jurídicos pertinentes, o mesmo está sendo apreciada pelo Senado Federal, e, portanto, ainda não virou lei, o que levanta divergências quanto à proteção do consumidor superendividado, no caso concreto.
Para atender aos anseios e necessidade de ampliação da proteção jurídica dos consumidores, presentes na política Nacional das Relações de Consumo, foi necessária a criação de projetos de leis para implantação de importantes reformas no CDC.
Trata-se dos projetos de Lei do Senado nº. 281/2012 e nº. 282/2012 e nº. 283/2012. O primeiro pretende-se inserir no CDC regras relativas ao comércio eletrônico, tais como regras para a divulgação de dados do fornecedor, a vedação de spams além da criação do direito de arrependimento, para inibir a contratação irrefletida e regulamentar à oferta de crédito prevenindo o superendividamento. Enquanto o projeto de nº. 282/2012 pretende inserir no ordenamento medidas para assegurar a celeridade nas ações coletivas.
Mudanças legislativas que possam trazer regulação jurídica as situações que versão sobre a temática do superendividamento, bem como ações afirmativas desenvolvidas por entidades pública ou privada que ofereça algum tipo de orientação ao consumidor, conscientizando-os sobre a existência do fenômeno, causas e formas possíveis de tratamento, estará contribuindo positivamente com a sociedade. É possível indicar como exemplo os serviços prestados no PROCON, CODECON, Defensoria Pública, Serviços de Assistência Judiciária Gratuita das Universidades, Associações Civis (como a Associação das Donas de Casa), entre outros.
Em alguns estados, os órgãos de proteção do consumidor, desenvolvem Núcleos de Proteção ao Consumidor Superendividado. No caso da Bahia, por exemplo, o Núcleo de Educação Financeira – NEF atende aos consumidores superendividados, e também realiza diversos mutirões de renegociação de dívidas, ações educativas na capital e no interior do estado como ações, palestras, seminários e oficinas que orientam os consumidores para a prevenção do superendividamento, através da elaboração o planejamento financeiro, da planilha de orçamento doméstico, bem como realiza campanhas para o tratamento das situações consumidor que já se encontram superendividados.
CONCLUSÃO
O trabalho exposto teve o objetivo de propiciar uma reflexão a cerca da dicotomia entre a família e o superendividamento, seus aspectos e consequências. Para tanto, o tema proposto e suas vertentes foram analisadas e discutidas sob o ponto de vista jurídico e social.
A evolução das relações de consumo das famílias brasileiras teve um impulso nas últimas décadas com a consolidação da legislação consumerista. Entretanto o estimulo ao consumo por parte do governo e das instituições privadas aumentou progressivamente o nível de consumo entre os indivíduos.
Destacou-se que na sociedade consumerista as pessoas são impelidas a consumir para a satisfação de desejos e necessidades individuais e coletivas, motivadas pela necessidade de reconhecimento exterior e apoiado pelo crédito fácil. Para tanto, muitos consumidores gastam mais do que ganham o que gera desequilíbrios financeiros e podem levar a família a uma situação de superendividamento.
Foi observado que o superendividamento pode provocar consequências de ordem multidisciplinar, atingindo os consumidores e suas respectivas famílias, na medida em que o sentimento de incapacidade de sanar suas pendências financeiras com os credores, afeta toda a estrutura familiar.
Notou-se ainda que na esperança de reorganizar suas finanças e saldar as dívidas, muitos consumidores têm comprometido todo seu patrimônio e renda e mesmo assim não tem obtido resultados satisfatórios quanto ao alcance de um equilíbrio econômico-financeiro. Desta forma, foi entendido que a liquidação do patrimônio penhorável do devedor para a satisfação dos créditos pendentes, é uma das maiores consequências do supereendividamento.
Para a minoração dos efeitos do superendividamento, foram indicadas algumas medidas. Sendo uma delas a atuação dos mais variados órgãos de defesa do Consumidor na busca da redução das consequências do superendividamento e também na promoção da proteção jurídica do consumidor superendividado.
Portanto, se torna imprescindível a aprovação da “reforma” que alterará o CDC, em especial do PLS 283/2012, para amenizar e prevenir as situações de superendividamento. Com isso, nos casos em que as medidas preventivas não sejam suficientes para evitar que as situações graves de endividamento ocorram, atingindo os consumidores e suas famílias, o CDC possa assegurar o direito do consumidor endividado e reduzir as consequências deste fenômeno.
*Advogada,Turismóloga, Pós-graduada em Metodologia do Ensino Superior, Gestão de Pessoas, Direito Civil e Processo Civil. E-mail: deise.dae@hotmail.com.