O Princípio da Consunção e/ou Absorção, o qual tem sua origem no direito penal, é amplamente aplicado no Direito Desportivo, e o visualizamos em decisões dos Tribunais de Justiça Desportiva no país.
Essa aplicação dá-se no momento de mensuração das penas das infrações disciplinares, principalmente tendo em vista a característica especial do Direito Desportivo: a de ser um Direito Híbrido.
Antes de adentrar no âmbito desportivo, faz-se necessário trazer alguns conceitos que tratem desse princípio, pois facilitam a elucidação.
O conflito de normas nos ordenamentos jurídicos sempre foi pauta de estudos e discussões. Podem ocorrer situações complicadíssimas envolvendo a interpretação de Lei quando ocorre colisão de normas válidas na resolução de casos concretos, principalmente no âmbito do direito penal, no qual, muitas vezes, há um conjunto de infrações meio, contidas em uma infração fim.
Justamente nessas hipóteses que a aplicação do Princípio da Consunção faz-se necessária, principalmente quando os ilícitos estão interligados para a concretização de um mesmo fim.
Para auxiliar na travessia destas turvas águas, resumidamente, a intenção é trazer explanação sobre diversos conceitos de Direito Penal para compreender-se melhor esse instituto tão importante no ordenamento jurídico brasileiro que, como já dito, vem sendo utilizado em outras esferas
O conflito aparente de normas, de acordo com Luiz Flávio Gomes, é "quando duas ou mais leis penais (ou dois ou mais artigos de lei) vigentes são aplicáveis para mesma infração.”[1], ou seja, o requisito para a identificação de tal conflito é a existência de um ato único, para o qual se comina pena em duas ou mais normas".
A resolução desses conflitos entre regras, se dá pelo princípio da consunção/absorção com o fundamento de que o ordenamento jurídico está impedido de punir em duplicidade seus jurisdicionados pelo mesmo ilícito.
Luiz Regis Prado entende que,
pelo critério, princípio ou relação de consunção, determinado crime (norma consumida) é fase de realização de outro crime (norma consuntiva) ou é uma regular forma de transição para o último - delito progressivo. Isso significa, na primeira modalidade, que o conteúdo do tipo penal mais amplo absorve o de menor abrangência, que constitui etapa daquele, vigorando o princípio major absorbet minorem. Desse modo, os fatos" não se acham em relação de species a genus, mas de minus a plus, de parte a todo, de meio a fim [2].
Ainda acerca do princípio da consunção Rogerio Greco assevera que é aquele segundo o qual a conduta mais ampla engloba a outra, ou seja, ela absorve outras condutas menos amplas, que normalmente são condutas de menor gravidade, que acabam sendo o meio necessário ou a normal fase de preparação ou de execução de outro crime, ou nos casos de antefato e pós-fato impuníveis.[3]
Esta aplicação de dá, conforme explicita Damásio de Jesus, lecionando sobre soluções para o conflito de normas, pela desconsideração do delito preparatório:
nestes casos, a norma incriminadora que descreve o meio necessário, a normal fase de preparação ou execução de outro crime, ou a conduta anterior ou posterior, é excluída pela norma a este relativa. Lex consumens derogat legi consumptæ".[4]
Por fim, o princípio da consunção tem como característica tentar dirimir possíveis conflitos relacionados ao concurso aparente de normas penais, pois tem o viés de absorver as condutas que servem como meio para a prática de um delito fim, servindo como ponte para a pratica do ato.
EXEMPLOS DE CASOS COM A APLICAÇÃO DO PRINCIPIO DA CONSUNÇÃO NO DIREITO DESPORTIVO
Após esse breve resgate ao conceito penal do princípio da consunção, fica mais clara sua aplicação no Direito Desportivo, no que tange às infrações disciplinares.
Nessa senda, é possível visualizar diversas situações de atos em um partida de futebol que quando chegam ao Tribunal de Justiça Desportiva são passiveis da aplicação desse princípio.
Podemos utilizar como exemplo o caso de um membro da comissão técnica que invade o campo de futebol para impedir que a bola entre no gol. Aqui temos a invasão de campo, que tem pena prevista no artigo 258-B, do CBJD, e o ato do membro da comissão técnica que, impede o gol, o que seria a atuação contraria a ética esportiva, e que tem pena prevista no artigo 243-A do CBJD.
Faz-se mister dizer que o ato criou uma situação totalmente diversa das regras do jogo. Ainda que tenha a autoria de um terceiro, a prática, sem dúvida, alterou o resultado do jogo.
Mesmo frente ao ato que inegavelmente alterou o resultado da partida, o árbitro não pode tomar nenhuma medida, como conceder o gol, por exemplo, porque o gol efetivamente não aconteceu. Neste caso, tendo a bola batido em terceiro, não pertencente a nenhuma das equipes, restaria ao árbitro deveria paralisar a partida, o membro da comissão técnica expulso e o jogo recomeçaria com bola ao chão salvo as exceções da regra [5].
Neste caso, ao time prejudicado não restaria nenhuma alternativa além do ingresso com denúncia junto à Procuradoria de Justiça Desportiva, para que o caso fosse apreciado no Tribunal de Justiça Desportiva. Voltando à análise do exemplo acima, para bem demonstrar como dar-se-ia a aplicação do princípio da consunção na resolução deste problema, necessário primeiro analisarmos cada uma nas normas punitivas envolvidas no ato. O CBJD estabelece em seu art. 243-A, que atuar, de forma contrária à ética desportiva, com o fim de influenciar o resultado de partida, prova ou equivalente, é punível com multa de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de seis a doze partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código; no caso de reincidência, a pena será de eliminação.[6]
Por sua vez, o parágrafo único do mesmo artigo prevê o agravamento da pena, caso o infrator atinja o resultado pretendido.[7].
Vejamos o artigo 258-B do CBJD. O referido artigo prevê que para aquele que invadir local destinado à equipe de arbitragem, ou o local da partida, prova ou equivalente, durante sua realização, inclusive no intervalo regulamentar, será aplicada pena de suspensão de uma a três partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de quinze a cento e oitenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código.[8]
Observa-se, que a pratica demonstrada no exemplo se enquadra perfeitamente à norma existente no artigo 243-A. A invasão de campo na tentativa de interferir no lance do gol, por um membro da comissão técnica, que sequer é um jogador que estava escalado para atuar na partida, é uma clara e cristalina manifestação de atuação contrária à ética desportiva.
Todavia, a prática de invasão de campo também está contida no 258-B. Neste caso, seria justa a aplicação das duas penas? Ao que parece, uma justa saída para este caso perpassaria pela aplicação do princípio da Consunção.
Explicando, fica muito claro que há uma concorrência de ilícitos, a invasão de campo e a atuação contrataria a pratica desportiva, existindo, assim, duas penas distintas para um único fato.
A pena para invasão de campo é mais branda, pois resume-se a suspensão de uma a três partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de quinze a cento e oitenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural.
Já a pena para a pratica de atuação contrataria a ética esportiva tem previsão de pena muito mais severa, compreendendo multa de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e suspensão de seis a doze partidas, provas ou equivalentes, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, ou pelo prazo de cento e oitenta a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural, podendo acarretar eliminação da competição em caso de reincidência, sendo que o mesmo dispositivo legal prevê a dobra dos prazos de suspensão, caso o objetivo pretendido com o ato contrário à ética desportiva seja atingido, podendo o órgão judicante, inclusive, anular a partida.
Nesse caso, a aplicação do princípio da consunção é totalmente necessário, pois a invasão de campo foi apenas o meio para atingir um fim, que no nosso exemplo era impedir que a equipe adversaria realização um gol no time do infrator membro da comissão técnica.
CASOS DE APLICAÇÃO DO PRINCIPIO DA CONSUNÇÃO NA JUSTIÇA DESPORTIVA
Abaixo, seguem julgados nos quais houve a aplicação do Princípio da Consunção. Em um deles, o clube recorrente deixou de tomar previdências que prevenisse o lançamento de objetos no campo, e assim acarretou o atraso do início da partida.
Temos aqui o lançamento de objetos no campo e o atraso da partida, pois o árbitro verificou a ocorrência desse lançamento, fato que motivou o atraso na partida.
Assim, em razão da aplicação do princípio da consunção, o atraso do início da partida foi absorvido pelo lançamento de objeto no campo de jogo, conforme segue o julgado:
PROCESSO Nº 115/2014 – Jogo: EC Bahia (BA) X Figueirense FC (SC) - categoria profissional, realizado em 14 de setembro de 2014 – Campeonato Brasileiro Série A – Denunciados: EC Bahia, entidade de prática desportiva, incursa no Art. 191, 213, III e 213, §1º, todos do CBJD. – AUDITOR RELATOR DR. LUCAS ROCHA LIMA.
RESULTADO: “Por maioria de votos, aplicar a perda de mando de campo de duas partidas com portões fechados ao EC Bahia cumulada com a multa de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), por infração ao art. 213, III, §1º, n/f do art. 183, ambos do CBJD, ficando absorvido o art. 191, III, do CBJD c/c art. 8º, IV e VIII do RGC. O pagamento da multa aplicada deve ser comprovada nos autos, no prazo de 07 (sete) dias, sob pena da imputação contida no art. 223, do CBJD”.Funcionou na defesa do EC Bahia o Dr. Paulo Rubens Máximo, que apresentou prova documental e requereu a lavratura do acórdão.
No caso abaixo, também refere-se a uma situação parecido com o caso anterior que tratava de lançamento de objeto no campo de jogo, cominado com a desordem na praça de desporto, segue decisão:
PROCESSO N.º 299/2013 – Recurso Voluntário – Recorrente: Paysandú Sport Club -
Recorrido: Terceira Comissão Disciplinar.
Auditor Relator :Dr. PAULO CÉSAR SALOMÃO FILHO.
RESULTADO: “ Por unanimidade de votos, se conheceu do recurso para no mérito, dar lhe parcial provimento, para minorar as multas aplicadas ao Paysandú Sport Club para R$25.000,00 (vinte cinco mil reais) , mais a perda de mando de campo por 3 (três) partidas, com portões fechados, por infração ao art. 213 I,III n/f art. 183 – sendo absorvido o art. 191 , I, - para R$5.000,00 (cinco mil reais) , por infração ao art. 205, e por infração ao art. 211 multá-lo por R$5.000.00 (cinco mil reais) , todos do CBJD - .sendo determinado o prazo de 7 (sete) dias para o cumprimento da obrigação, sob pena das sanções previstas no art. 223 do CBJD.” Funcionou na defesa Dr. Itamar Cortes e Dr. Alberto Maia.
CONCLUSÃO
Após a análise dos exemplos e observando os conceitos do princípio da consunção, percebe-se que esse é aplicável nas infrações disciplinares desportivas.
Além de verificar-se claramente que a aplicação do princípio da consunção é uma prática comum na Justiça Desportiva, mais ainda, tendo em vista que muitas ocorrências no campo de jogo ou na prática da competição esportiva são atos concorrentes, e que alguns acabam sendo meio para o resultado de um único fato.
Ainda que trazido do Direito Penal, tal princípio tem grande simetria com o CBJD, pois as características das penas disciplinares esportivas se assemelham às punições penais.
Por fim, a aplicação do Princípio da Consunção tem aparecido diuturnamente nos Tribunais Desportivos, muito em razão do grande leque de penas desportivas que contém tanto o CBJD como nos regulamentos das competições esportivas.