Responsabilidade civil por abandono afetivo na infância no contexto do Direito de Família


14/11/2017 às 18h54
Por Gisele Noleto Martins Correspondente Jurídico

RESPONSABILIDADE CIVIL POR ABANDONO AFETIVO NA INFÂNCIA NO CONTEXTO DO DIREITO DE FAMÍLIA

CIVIL LIABILITY FOR ABANDONMENT AFFECTIVE CHILDHOOD IN FAMILY LAW CONTEXT

 

                     Gisele Noleto Martins[1]

                   Lillian Fonseca Fernandes (Or.)[2]

 

RESUMO

O presente estudo debruça-se sobre a identificação dos requisitos necessários para que se configure o concreto existir do dever de indenização gerada por abandono afetivo ocorrido na infância, dos pais para com sua prole, em sede de compensação pecuniária decorrente de danos morais ocorridos em tais circunstâncias. O objetivo é analisar a responsabilização civil e a concessão de indenização por danos morais advindos da constatação de abandono afetivo durante a infância, bem como observar sua complexidade no estabelecimento de suas características de aplicação. O estudo foi desenvolvido com base na bibliografia especializada sobre o tema, bem como em documentação jurisprudencial expedida pelos tribunais brasileiros e Tribunais Superiores ao manifestarem seus posicionamentos. De absoluta relevância, é o zelo pela correta investigação do caso concreto, e constatar seus requisitos para que se estabeleça o enquadramento no dever de reparar o dano causado pelo sofrimento emergido desse abandono, evitando-se, com isso, utilizar o Poder Judiciário como mero mecanismo mercenário de vinganças pessoais ao invés de sua real função, a de Mantenedor da Justiça. Torna-se imprescindível analisar, no apreciar da concreta realidade de abandono afetivo, a contemporaneidade da situação. É necessário uma visão mais humanizada e comprometida, não meramente com a rigidez dos requisitos legais, mas também com o contexto em que se apresentam os fatos, perseguindo assim, a sensibilidade da norma, e, com isto, sua melhor aplicação.

Palavras-chave: Dever de cuidado. Danos morais. Abandono afetivo na infância. Requisitos do dano moral.

 

ABSTRACT

This study focuses on the identification of the requirements for you to set the concrete exist the duty to indemnify generated emotional abandonment occurred in childhood, of parents for their offspring in financial compensation seat due to moral damage in such circumstances. The goal is to analyze the civil liability and compensation for moral concession to damages arising out of emotional abandonment finding during childhood and observe its complexity in setting their application characteristics. The study was developed based on the specialized literature on the subject, as well as in judicial documents issued by Brazilian courts and High Courts to express their positions. Of utmost importance is the zeal for the correct investigation of the case, and find their requirements in order to develop the framework in the duty to repair the damage caused by the emotional suffering emerged abandonment in childhood, avoiding thus the use of Power judiciary as mere mechanism mercenary personal vendettas rather than their actual function, the maintainer of Justice. It is essential to analyze, in assessing the reality of emotional abandonment, the contemporary situation. You need a more humane vision and committed, not merely with the rigidity of the legal requirements, but also to the context in presenting the facts, pursuing thus the sensitivity of the standard and, with it, its better implementation.

Keywords: Duty of Care. Moral Damages. Emotional neglect in childhood. Characterizati

 

1. INTRODUÇÃO

Indenizações advindas por danos morais geralmente relacionam-se com uma ação ou omissão que tenha violado um direito e produzido dano. É necessário, ainda, nexo de causalidade entre a ação e o resultado "ainda que exclusivamente moral", como bem estabelece o artigo 186 do Código Civil Brasileiro de 2002. .

A reparação pela referida violação é sanada por meio de pecúnia, e, deve observar certos requisitos com o intuito de não ensejar enriquecimento ilícito. Não causa nenhuma estranheza a associação de valor pecuniário como forma de compensação pelo dano moral sofrido.

Entretanto, no Direito de Família, indenizações por dano moral gera certa resistência em seu reconhecimento por parte daqueles genitores que abandonam afetivamente seus filhos. Há, inclusive, divergências jurisprudenciais e doutrinárias acerca da aplicação ou não de tal instituto na ceara do direito de família em especial nos casos de abandono afetivo.

Diante de sentimentos, sobretudo, dos de rejeição e abandono, exemplos quando se trata da potencialidade dos danos sofridos em uma criação sem afeto, pode nos insurgir o tão disseminado ditame popular de que "amor não se compra". Sugere-nos o pensamento tradicional, que, uma vez negada a expressão amorosa e tudo o que dela decorre, não haveria hipótese de contrapartida financeira que suprisse esse vácuo.

Entretanto, o dever de cuidar, não pode, em absoluto, ser tratado como mera escolha pessoal, uma vez que há obrigações legais e morais a serem exercidas pelos genitores para com seus filhos.

As transformações sociais trouxeram consigo maior apreço e reconhecimento às garantias legais resguardadoras dos direitos das crianças e adolescentes, entretanto, isso não basta. Por essa razão, é que muitas vezes tem que se socorrer ao Judiciário, O Mantenedor da Justiça, com o anseio de impedir violações atrozes a esses ‘seres em desenvolvimento’.

Assim, emerge-nos o seguinte questionamento: Quais os requisitos legais para que se configure o direito à indenização por abandono afetivo ocorrido na infância?

O presente estudo nasceu da provocação e inquietude causadas a partir de estarrecedores acontecimentos sociais emergidos de relações paterno/materno-filiais, bem como da possibilidade de efetivação do dever dos pais em indenizar seus filhos devido ao abandono afetivo.

Sendo dessa forma, é necessário trazer à luz da discussão acadêmica contribuições acerca do tema. Refletir sobre o reconhecimento da responsabilidade civil nas relações familiares, sob a ótica da concessão de indenização por abandono afetivo na infância, justifica-se pela sublime importância do afeto familiar na construção do ser humano.

Diante das mudanças sociais, até mesmo quanto ao próprio conceito de família que se tem atualmente, e das alterações conseguintes no relacionamento intrafamiliar, se verifica uma transformação no contexto da ocorrência do abandono afetivo, que, por consequência se dá através de uma análise mais profunda, disto, insurge decisões pioneiras no que concerne à matéria.

Tais fatos imprimem grande relevância para a sociedade acadêmica, exigindo maiores estudos aprofundados, para cada vez mais, se produza um posicionamento jurídico com passos firmes, e não meros desconsideradores da realidade social. A partir de uma análise documental e bibliográfica pretende-se investigar dados e informações que se mostrem válidos e relevantes na busca de uma melhor compreensão a respeito da incidência do dano moral ligado ao abandono afetivo ocorrido na infância.

Para isso, será necessário apontar os diplomas legais que versam sobre o assunto e alguns julgados pertinentes, a fim de identificar os principais requisitos considerados atualmente para a constatação da existência de abandono afetivo passível de indenização, e, precisar o tempo prescricional de ação por dano moral por abandono afetivo na infância.

 

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DANO MORAL

O contexto histórico constitui um processo de desenvolvimento, e, auxilia na compreensão dos fatos na atualidade sendo essencial para a compreensão dos aspectos inerentes ao Dano Moral sob a égide do Abandono afetivo. Para isto, se faz necessário retornar às raízes históricas do referido instituto, o qual nos direciona, de início, aos Antigos Códigos de Manu, na Índia e de Hamurabi, na Babilônia. O aprimoramento da compreensão do dever de reparação por um dano moral foi paulatinamente se impregnando social e juridicamente, mesmo em culturas de comportamento e costumes absolutamente diversos.

Conforme preleciona Reis (2000, p. 7):

A evolução da reparação do dano decorrente de fatores extrapatrimoniais é nítida, advinda do Código de Hamurabi, sistematizada no Código de Manu, incorporada pela Lei das XII Tábuas, em Roma, e passando primeiramente pelas civilizações chinesa, egípcia e grega, onde a noção de reparação de dano foi aprimorando-se até chegar ao Direito Moderno.

No Ordenamento Pátrio, esse instituto assumiu grande destaque e valoração, a começar pelas letras constitucionais nos moldes dos incisos V e X do artigo 5º. Assim, a dignidade humana passou a constituir um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Dentre os juristas e doutrinadores do Direito contemporâneo Brasileiro, a conceituação do instituto se relaciona diretamente aos denominados Direitos da Personalidade, descritos nos artigos de 11 a 21, da Lei 10.406/02 (Código Civil de 2002), que são de cunho subjetivo e particular na vivência de cada indivíduo, por este motivo trata-se “de indenizar o inefável”. (VENOSA, 2007, p. 38).

O constatar de um potencial dano não deve ser banalizado, menos ainda, utilizado como mecanismo mercenário. Deve-se, portanto, cautelosamente, cuidar na avaliação técnica da intensidade e das consequências advindas do processo danoso, se realmente ocorrer. Nesse sentido, repreende Cavalieri Filho (2009) que o dano moral é aquele sofrimento ou humilhação que extrapola a normalidade. Dissabores são comuns na vida de qualquer pessoa que conviva em sociedade e deve ser suportado quando a ocasião permitir. Do contrário, o Judiciário se abarrotará de causas fúteis.

Nossa Carta Maior de 1988 fincou como fundamento do Estado Democrático de Direito, a Dignidade da Pessoa Humana, nos termos de seu art. 1º, inciso III, trazendo consigo, referência direta e salvaguarda explícita dos Direitos Fundamentais dos indivíduos. Tais ditames constitucionais contribuíram, portanto, para uma consideração mais vasta, e pode-se dizer até mesmo uma valoração da subjetividade maculada pelo dano moral (GONÇALVES, 2008).

O dano moral pode se configurar em várias situações da vida e inclusive se apresentar nos mais variados ambientes que nos permeiam, seja no trabalho, na vizinhança, e, infelizmente, até no seio familiar, conforme é possível verificar em meio às discussões judiciais já reconhecidas em nosso país.

2.1 O dano moral no direito de família

Ao longo dos tempos, houve na construção do conceito de família de outrora, consideráveis e significativas alterações relacionadas ao ganho de valores em relação aos sentimentos de afeto e mútua proteção. "Família é um conceito em construção" (DIAS, 2009, p. 34), pois refletirá sempre, e inevitavelmente, os processos transacionais com os quais as sociedades enfrentam.

Verifica-se que a organização familiar, seja pelo representar da subsistência, ou do transmitir cultural, moral e afetivo, simboliza de mesma maneira a necessidade da convivência tão própria da condição humana. A entidade familiar tem a finalidade de promover a dignidade de seus membros (TEPEDINO,2003). Dignidade esta que valora a vida dos indivíduos, instigando-os ao mais saudável desenvolver de seus potenciais.

Visto que, a Ciência Jurídica não é estática, petrificada no tempo, ao contrário, está em constantes transformações, é que o instituto familiar, de suma relevância para sociedade, ganhou dimensões no Direito.

Quando se fala em dano moral geralmente nos remete a um ato injurioso, difamante ou calunioso. Pensar em dano moral por omissão, a priori, não parece ser possível. Entretanto, no seio familiar, a falta de cuidado e afeto é capaz de gerar danos irreparáveis na formação psiquíquica de um ser humano. E, como todo dano, “ainda que exclusivamente moral” (artigo 186, Código Civil Brasileiro), é passível de indenização.

Nesse sentido, segundo a Relatora e Ministra Nancy Andrighi no Recurso Especial 1159242, Terceira Turma, julgado em 24 de abril de 2012:

Muitos, calcados em axiomas que se focam na existência de singularidades na relação familiar – sentimentos e emoções – negam a possibilidade de se indenizar ou compensar os danos decorrentes do descumprimento das obrigações parentais a que estão sujeitos os genitores. Contudo, não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no Direito de Família. Ao revés, os textos legais que regulam a matéria (art. 5,º V e X da CF e arts. 186 e 927 do CC-02) tratam do tema de maneira ampla e irrestrita.

Na ceara dos sentimentos de rejeição e desamor, pode nos insurgir o tão disseminado ditame popular o “amor não se compra", nos sugeri o pensamento tradicional, que, uma vez negada à expressão amorosa e todas as suas boas consequências, tais qual a presença, o afeto e o cuidado, por exemplo, não haveria hipótese de contrapartida financeira que suprisse esse vácuo afetivo. Em sentido contrário, assertivamente assevera Dias (2009, p. 46):

Se cada caso for decidido com cautela, a indenização por abandono afetivo poderá converter-se em instrumento de extrema relevância e importância para a configuração de um direito das famílias mais consentâneo com a contemporaneidade, podendo desempenhar papel pedagógico no seio das relações familiares.

Esse tipo de relacionamento forçado não é o ideal, mas é melhor assim do que gerar um sentimento angustiante de abando em uma criança.

A ausência constatada no âmbito familiar, dentro dos laços paterno ou materno filiais, não pode ser tratada como mera escolha pessoal e inconsequente de um genitor. Por tal razão, é que a falta de cuidado está cada vez mais sendo reconhecida como uma violação e consequentemente gerando a obrigação indenizatória por dano afetivo. (DIAS, 2009).

Os prejuízos e desestruturações que podem se insurgir em decorrência do abandono não são mensuráveis em sua abrangência devastadora. Neste viés, se torna oportuno uma análise do artigo 227"caput"da Constituição Federal Brasileira de 1988 que estabelece o ‘dever de cuidar’.

 

3. O PAPEL DOS PAIS NO DESENVOLVIMENTO DOS FILHOS SOB O PRISMA LEGAL

A convivência sadia da criança com seus genitores nas mais diversas sociedades e culturas (austeras e rígidas, ou mesmo dotadas de flexibilidade pedagógica e comportamental da contemporaneidade), é um fator preponderante na formação e no desenvolvimento dos indivíduos. Partindo-se já da dependência biológica e genética para existir, adentrando pela manutenção da subsistência e do desenvolvimento saudável de uma criança, é grande a importância dos pais para seu bom desenvolver psíquico, social, moral e afetivo.

As crianças, mesmo ainda bebês, se forem privadas do contato afetivo dos pais, poderão sofrer perturbações em seu desenvolvimento emocional, o que pode refletir em dificuldades pessoais em sua fase adulta (WINNICOTT, 2008). A família se torna o alicerce de todo ‘um ser’, segundo Comel (2003, p. 80) “a pessoa humana, por nascer em condições de profunda dependência física e emocional, vai necessitar de ajuda e participação dos dois componentes que foram essenciais à geração dela”.

Fazer parte de um núcleo familiar é de suma importância para a compreensão e repasse de regras, princípios e valores que alicerçam a construção de um ser humano saudável, no aspecto psicoemocional. Dentro dessa realidade, no entanto, é possível denotarmos inúmeros fatores que afastam o saudável desenvolver de uma pessoa. Um deles é, seguramente, o abandono afetivo.

Nesse sentido, Dias (2009, p. 77) assinala que:

A falta da figura do pai desestrutura os filhos, tornando-lhes pessoas inseguras e infelizes. No momento do julgamento da lide que tem por objeto a reparação de danos por abandono afetivo paterno-filial, o juiz decidirá através do conjunto probatório que buscará demonstrar o dano causado e sua extensão.

As realidades de abandono afetivo, em maior ou menor grau de intensidade, são grandes produtoras de indivíduos deformados em sua identidade, em sua compreensão de valores e sentimentos. Por vezes, os traumas adquiridos, podem refletir em graves prejuízos na capacidade de se relacionar ou estabelecer vínculos.

Diante disso, reza o artigo 229 da Lei Maior: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”, portanto, não é somente dever moral, também é dever legal dos pais propiciarem uma criação saudável aos seus filhos.

O artigo 5º do Estatuto da Criança e Adolescente assevera que nenhum menor pode ser vítima de negligência ou omissão aos seus direitos fundamentais sob pena de punição.

Os genitores que forem negligentes quanto aos direitos dos filhos, mormente, no que se refere à boa convivência familiar, incorrem no flagrante descumprimento dos encargos estabelecidos pela Lei. O que pode causar sequelas no desenvolvimento moral, psíquico e sócio afetivo dos filhos.

Uma vez caracterizada desrespeito aos direitos fundamentais desses ‘seres em desenvolvimento’, os pais ou qualquer outra pessoa que seja detentora da guarda do menor, estará sujeito às penalidades de natureza preventiva e punitiva, e/ou ainda, segundo entendimento de alguns juristas e doutrinadores, à compensação dos danos, mesmo que seja exclusivamente de cunho moral, à luz do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

3.1 Do Dever de Cuidar – imposição legal

As obrigações, dos genitores para com sua prole, têm origem na natural vulnerabilidade existente com relação à dependência econômica, moral e afetiva da criança. Os pais possuem para com seus filhos inúmeros encargos estabelecidos tanto social quanto legalmente.

Incluem-se, às obrigações que formam o arcabouço jurídico resguardador deste dever de cuidar, os diversos ditames expressos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1999), dentre os quais, todos o direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, proteção integral e ampla a fim de proporcionar um saudável desenvolvimento físico e mental.

Evidencia-se claramente a existência e a seriedade dos deveres que cabem aos genitores (possuidores de obrigações irrenunciáveis) que não dizem respeito meramente ao ponto de vista financeiro, mas também a aspectos amplos que propiciem as condições devidas para um desenvolvimento digno do indivíduo.

No Recurso Especial nº 1159242, tendo como Relatora a Ministra Nancy Andrighi, sendo julgado em 24 de abril de 2012, entendeu-se que, se, efetivamente, for possível a constatação da desídia para com o dever de cuidado e suas implicações, será legítima a busca do poder coercitivo do Estado-juiz, para que este, por suas vias, possa garantir não o ideal e desejável sentimento amoroso, mas sim os ditames legais de salvaguarda da criança.

Nesse prisma, em face de toda a complexidade típica do relacionar humano, e logicamente não excluída na convivência familiar, é necessária a produção de análises muito cuidadosas e fortemente consideradas nos contextos próprios em que se dão as circunstâncias trazidas ao Judiciário.

Com isso, busca-se uma condenação amparada na lei e no bom senso para aqueles que geraram a criança e que não cumprem com seu dever legal e moral de cuidar.

 

4. INDENIZAÇÃO POR ABANDONO AFETIVO NA INFÂNCIA

O primeiro deferimento jurídico da pretensão indenizatória por danos morais decorrentes de abandono afetivo concedido no Judiciário Brasileiro ocorreu no ano de 2003, na comarca de Capão da Canoa, Estado do Rio Grande do Sul. O genitor foi condenado em 200 salários mínimos na importância de R$ 48.000,00 (quarenta e oito mil reais), devido ao descumprimento de suas implicações paternas e em inobservar o dever de visita, acordado em ação de alimentos anteriormente interposta. Como fundamento sentencial, Processo nº. 141/1030012032-0, julgado em 16 de setembro de 2003, Comarca de Capão da Canoa, Tio Grande do Sul, tem-se:

Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos (art. 22, ECA). A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, o amor, carinho, [...] estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se auto afirme [...]. Por óbvio que o Poder Judiciário não pode obrigar ninguém a ser pai. No entanto, aquele que optou por ser pai - e é o caso do autor - deve desincumbir-se de sua função, sob pena de reparar os danos causados aos filhos.

O julgado considerou, para efeitos condenatórios, inclusive, o dever paterno de amar. Atualmente, isto é rebatido pelo entender majoritário de nossos Tribunais, pois, não se pode obrigar legal ou judicialmente uma pessoa a dedicar amor a sua prole. Entretanto, no que concerne ao cuidado, de modo irrefutável é compreendido como um incontroverso dever legal, social e moral.

4.1 Requisitos de configuração de dano moral por abandono afetivo

Como requisito essencial tem-se a efetiva relação paterno-filial. Assim, depreende-se que a efetiva existência desta relação comporta o conhecimento do genitor ao que se refere a sua paternidade/maternidade. Resta, obviamente, afastável a possibilidade de pleito de indenização por abandono se o genitor não tenha consciência de tal condição. (VIEIRA, 2009).

Ademais, é mister compreender que o conjunto de pressupostos que caracterizam o dever de indenizar são: a conduta culposa ou dolosa do agente, dano, e o nexo causal entre o ato do agente provocador e o dano (CAVALIERI FILHO, 2009).

A próxima análise deve se da acerca do real descumprimento do dever de cuidado e suas atrozes consequências. Leciona Hironaka (2006, p. 79)"são três os deveres de que os genitores não podem furtar-se: sustento guarda e educação, nos moldes do artigo 22, ECA". O comportamento omissivo frente a essas obrigações inescusáveis faz emergir o dano, segundo Vieira (2009) não há necessariamente um direito preexistente ao afeto, mas apenas a caracterização do sofrimento/prejuízo suportado pelo infante.

A existência ou intensidade da omissão alegada na pretensão indenizatória, quanto às incumbências do cuidado, devem ser cautelosamente analisadas por profissionais técnicos e a produção de laudos se fará de suma importância na constatação do dever de indenizar. Conforme Vieira (2009, p. 88)"deverá ser verificado se a conduta omissiva é idônea a produzir danos à pessoa do filho. Nesse mote, importa a perícia técnica avaliar".

Em sede de intensa cautela, se faz a verificação da possibilidade ou não do dever de indenizar.

Inegável, em caso de real constatação do abandono afetivo, a necessidade de, por parte do Poder Judiciário, haver o exercício da punição. Não pelo recuperar do estado anterior ao dano, pois se sabe ser hipótese impossível, mas sim, pela justa contrapartida, alicerçada na sua função essencial que é garantir o cumprimento legal.

Exalta-se, que o simples encargo financeiro para a subsistência dos filhos não implica, por si só, em cuidado e afetividade. Ou seja, mesmo cumprindo com as obrigações alimentares é possível se concretizar uma realidade de abandono afetivo devendo ser reconhecido e ponderado com devida indenização (MELO, 1999). Isso acarreta dizer que, o exigível não é apenas o apoio material, mas, tão importante quanto é o saudável convívio de pais e filhos.

4.2 Tempo prescricional para pleitear indenização de cunho moral por abandono afetivo

O prazo prescricional é de três anos (artigo 206, § 3º, V do Código Civil Brasileiro) para a impetração de ação indenizatória por dano moral. Mas, devido ser peculiar a condição da vítima, decorrente do abandono afetivo na infância, já é entendimento pacificado de que este prazo somente corre após sua maioridade civil. Esse foi o entendimento do Egrégio Tribunal do Distrito Federal na Apelação Civel: APC 20120510075984 DF 0007395-42.2012.8.07.0005, 3ª Turma Cível. Relator: Getúlio de Moraes Oliveira, alicerçado nos ditames legais e senso de Justiça:

APELAÇÃO CÍVEL. DANO MORAL. ABANDONO AFETIVO. PRESCRIÇÃO. MAIORIDADE. 1. O poder familiar, com seus consectários de dever de cuidado e vigilância, cessa quando da ocorrência da maioridade do filho, de modo que as indenizações de ordem moral devem circunscrever a este período, razão esta que a prescrição para pretender indenizações por abandono afetivo, começa a contar da maioridade, ainda que o reconhecimento da paternidade seja em data posterior.

Portanto, a partir do momento em que o indivíduo completa a maioridade, inicia-se então a contagem do prazo prescricional de três anos para eventual propositura da ação indenizatória por danos morais em face de abandono afetivo. Este é um exemplo de como a interpretação, na aplicação da lei, deve ir além de suas letras, mas, sobretudo, deve buscar sua real essência, alcance e poder.

4.3 Julgados

Ao tratar da Responsabilidade Civil insurgida por Danos Morais decorrentes de abandono afetivo, torna-se essencial analisar sua aplicação com base em julgados oriundos da discussão sobre o tema, tanto nos tribunais quanto nas cortes superiores.

Não se pode falar em abandono afetivo e sua obrigação de reparar sem mencionar o julgado da Ministra Nancy Andrighi quando em 24 de abril de 2012 por meio do julgado proferido no Recurso Especial de nº 1.159.242-SP reconheceu o afeto como valor jurídico e concedeu indenização, com uma pequena redução, proveniente do abandono afetivo.

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar⁄compensar no Direito de Família. 4. (...) existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 7. Recurso especial parcialmente provido.

É a exigência de cuidado, e exigência de uma afetividade mínima para a formação dos filhos, que a lei pune com severidade quando não se oferta. A questão não envolve apenas pecúnia, ela é inerente ao dever de cuidado tão amplamente difundido em nossa legislação. Como esperado, os julgados a seu respeito refletem entendimentos ainda controversos nos tribunais brasileiros.

Assim, podemos citar a manifestação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em decisão proferida no ano de 2013 na Apelação Cível Nº 70053030284 da Sétima Câmara Cível, Tendo como Relatora Liselena Schifino Robles Ribeiro, onde houve uma pretensão indenizatória de caráter meramente econômico. Entendeu-se que o simples distanciamento do pai não é fundamento suficiente para caracterizar abandono afetivo.

Em agosto de 2014, a 2ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, tendo como Relator J.J Costa Carvalho, na Apelação Cível Nº 20120110447605 reformou a sentença por verificar a constatação de inexistência probatória da realidade de abandono afetivo capaz de gerar dano indenizável, fazendo-se, portanto, indevida qualquer compensação.

A 8ª Câmara Civel do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, AC 640566-7 – Campo Mourão, Relator: Roberto Portugal Bacellar, Julgado em 13 de dezembro de 2012, em sentido absolutamente diverso, publicou decisão reconhecendo de maneira unânime a caracterização de abandono afetivo e a concreta omissão no dever de cuidado, digna de reparação por dano moral, proferindo:

APELAÇÃO CIVIL. PROCESSO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. OBRIGAÇÃO CIVIL DE DAR CUIDADO CORRESPONDENTE AO DIREITO DO FILHO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR QUE NÃO SE CONFUNDE COM OBRIGAÇÃO MORAL DE DAR AMOR – SITUAÇÃO EMOCIONAL COM ALTO GRAU DE SUBJETIVIDADE QUE NÃO SE PODE EXIGIR NAS RELAÇÕES FAMILIARES. DANOS MORAIS. ABANDONO AFETIVO. OMISSÃO E NEGLIGÊNCIA DA OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL DE CUIDAR – DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E RESPEITO AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL ÀS RELAÇÕES FAMILIARES – OMISSÃO QUANTO AO DEVER DE CUIDAR QUE CARACTERIZA OBRIGAÇÃO CIVIL – PAI QUE, NO CASO, NEM MESMO PAGOU AS PENSÕES ALIMENTARES – DANO MORAL CONFIGURADO – ABANDONO AFETIVO RECONHECIDO. (...) SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.

Tais colocações descortinaram a compreensão no sentido do reconhecimento da aplicabilidade da responsabilidade civil também no âmbito das relações familiares, se fazendo perfeitamente plausível a indenização por danos morais em casos de abandono afetivo, decorrente do direito dos filhos à convivência familiar saudável e o dever de cuidado, dos pais em relação à sua prole.

Portanto, aqueles que são possuidores da paternidade ou maternidade detêm também consigo, dentre outros, o dever de cuidar. De maneira que dentro de cada situação específica, uma postura que desconsidere esse dever, tem potencialidade para representar, portanto, a caracterização de ilícito civil.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perda do poder familiar, estabelecida legalmente pelos dizeres do artigo 1.638, inciso II, do Código Civil, era vista anteriormente como a única e extrema forma de sanção possível para aqueles pais que abandonassem seus filhos afetivamente.

Ou seja, a perda do poder familiar nem ao menos seria uma punição a estes genitores. Era necessária uma forma mais eficaz afim dessas pessoas repensarem suas atitudes. Daí, a necessidade de uma reparação pecuniária de forma punitiva e exemplar, através do instituto da responsabilidade civil, como reorganizador de cunho social em razão de desequilíbrios advindos de relações paternas e maternas filiais onde se faz o macular dos direitos mais básicos da subjetividade da criança.

Inegável, de mesmo modo, é compreender, ainda que em face do objetivo ideológico do instituto, essas questões imateriais de profundidade inerente à condição humana, perdas e traumas, as vezes irreversíveis, não se consegue, sobremaneira, compensar eficazmente com valor pecuniário. São fatos, que, no entanto, não isentam da possibilidade de aplicação da reprimenda legal e respectiva punição pelo Judiciário àquele que pratica o abandono.

Diante de todo o exposto, como já defendido no decorrer do escrito, o eixo central da discussão não é a obrigação de amar, mas sim, a grave desídia, ou mesmo a total omissão dos pais, que faz emergir o dano moral causado pelo desrespeito à legislação que prima pelo cuidado, pelo melhor desenvolver e dignidade humana da criança. Assim, há que se falar que o cenário atual é fruto de uma desídia inconsequente por parte dos “escolhidos” em exercerem a paternidade ou a maternidade.

De absoluta relevância, indubitavelmente, é o zelar pela correta investigação dos requisitos para se estabelecer a caracterização do dever de reparação do dano moral emergido do abandono afetivo à criança. Evita-se, cercado de muitos critérios, a utilização do Poder Judiciário como mecanismo mercenário de vinganças pessoais, ao invés de sua real função, o de Mantenedor da Justiça.

Em suma, são requisitos para caracterização de dano moral por abandono afetivo na infância: relação paterno-filial; descumprimento do dever de cuidado; além dos requisitos da responsabilidade civil subjetiva, que são a conduta omissiva ou comissiva, culposa ou dolosa do genitor, o nexo causal entre o ato do agente provocador e o dano/prejuízo psicológico do infante.

O que se denota, é a imprescindibilidade no apreciar da concreta realidade de abandono afetivo, uma análise mais humanizada e comprometida não meramente com a rigidez dos requisitos legais, mas, também com o contexto em que se apresentam os fatos, perseguindo assim, a sensibilidade da norma, e sua melhor aplicação.

Foi o caminho e a forma que os legisladores e operadores do Direito, encontraram para resolver e dizer de quem é o direito e punir àqueles, que de forma frívola, não cumprem a lei.

Nesse sentido, conclui-se que o dano moral por abandono afetivo deve ser imposto em sentença pelos juízes especializados em todas as situações concretas desta violação. É a forma coerente de amenizar os danos impagáveis causados pela ausência de cuidado por parte dos genitores, e também como forma pedagógica para aqueles que insistem num tratamento insensível para com seus filhos.

 

REFERÊNCIAS

ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1977. v. 2.

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_______. Código Civil. Novo código civil brasileiro/lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002: estudo comparativo com o código civil de 1916. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

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[1]Graduanda em Direito pela Faculdade Católica Dom Orione, Araguaína-TO. Trabalho apresentado e aprovado no segundo semestre de 2014.

[2]Graduada em História pela UFT. Graduada em Direito pela Faculdade Católica Dom Orione. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Anhanguera

  • Direito de Família
  • Dano moral
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