O DIREITO DE HERANÇA NO ÂMBITO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM


09/10/2018 às 09h59
Por Jacqueline Silva Correspondência Jurídica

Introdução

 

A transmissão do patrimônio da pessoa falecida aos seus descendentes é uma prática antiga que foi sendo moldada pelas leis ao longo dos séculos. Atualmente, a sucessão se tornou um tema intrincado juridicamente em razão das complexidades sociais que a lei ainda não conseguiu alcançar e, mesmo aquelas situações que contam com previsão, tem sido objeto de demanda na justiça.

A legitimidade para suceder à titularidade do patrimônio do de cujus é cada vez mais questionada, assim como quem tem mais ou quem tem menos direitos sobre os bens deixados de herança. Essas questões sobre o direito à herdar se tornam ainda mais complexas em se tratando de reprodução assistida post mortem, pois a falta de previsão legal e a taxatividade do Código Civil sobre a legitimidade para suceder limita a ação do Judiciário.

As famílias modernas são bem distintas daquele modelo clássico de algumas décadas atrás, mas o desejo de gerar descendência não mudou, por isso, ante a impossibilidade de fazê-lo em razão de infertilidade, a reprodução humana assistida vem ganhando a aceitação da sociedade e, inclusive, recebe amparo na Constituição Federal.

O artigo 226, §7º, da Constituição Federal garante o livre planejamento familiar, atribuindo ao Estado o dever de propiciar a proteção da família. O §6º do mesmo artigo, veda quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação, o que não ocorre na reprodução póstuma no tocante à sucessão pela regra do Código Civil, a ser discorrida no presente artigo.

 

 

Aspectos Gerais Da Reprodução Humana Assistida

 

A reprodução humana assistida começou a ser empregada no Brasil na década de 80. Apesar da evolução das técnicas de inseminação e da maior aceitação pela sociedade e até mesmo por nosso ordenamento jurídico, este ainda é um assunto tratado com desconforto por muitas famílias. Não obstante, a inseminação artificial cumpre um importante papel no âmbito familiar, pois objetiva viabilizar a gestação em mulheres que tem dificuldade ou impossibilidade de engravidar, sendo que essa infertilidade pode estar relacionada à mulher, ao homem ou à ambos.

As primeiras tentativas de inseminação artificial começaram em animais, mas foi somente em 1978, na Inglaterra, que o experimento deu resultados positivos em humanos, com o nascimento de Louise Brown, primeira pessoa nascida a partir dessa técnica. No Brasil, a técnica foi realizada com sucesso em 1984, sendo concebida Ana Paula Caldeira, primeira brasileira fruto de fertilização in vitro. (¹)

Diante de um novo cenário que se pintava na medicina brasileira muitas questões, especialmente as de cunho ético, foram levantadas surgindo assim a necessidade de regulamentação pertinente. Em 1992 foi publicado a Resolução nº 1.358/1992 pelo Conselho Federal de Medicina, que veio a estabelecer normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, uma vez que a técnica já estava sendo aplicada com sucesso no Brasil desde a década anterior.

Cabe destacar que antes mesmo da publicação da norma supra mencionada a própria Carta Magna já determinava, em seu art. 226, parágrafo 7º, que o planejamento familiar é de livre decisão do casal, não podendo quaisquer instituições públicas ou privadas interferir neste direito é devendo o Estado prover os recursos necessários à sua aplicação. Portanto, a reprodução humana assistida já era acolhida pela Constituição Federal, carecendo apenas que regulamentação própria.

Atualmente, não existe lei brasileira específica que regulamente o procedimento e suas implicações, especialmente no âmbito familiar e sucessório, apesar de existir vários projetos de lei tramitando no senado. Sobre esse aspecto, dispõe o Código Civil, em seu artigo 1.597, incisos III, IV e V, que os filhos havidos de inseminação artificial homóloga ou heteróloga serão presumidamente concebidos na constância do casamento, nos termos da lei.

 

A Reprodução Póstuma

 

            Inicialmente, compete explicar que a inseminação artificial poderá ser homóloga ou heteróloga, sendo que a lei atribuirá critérios diferentes para cada uma dessas hipóteses. Assim, a inseminação artificial homóloga conta com o material genético exclusivamente do casal, já na heteróloga o sêmen, o óvulo ou ambos utilizados são de doadores anônimos.

Independentemente do tipo de inseminação escolhida o direito à filiação está legalmente garantido na reprodução assistida post mortem, pelo artigo 1.597, inciso III, do Código Civil. Sempre existirá presunção de paternidade na inseminação artificial homóloga, contudo, na inseminação artificial heteróloga a presunção só existirá se houver autorização prévia expressa do marido. Entretanto, a lei não faz referência quanto ao direito sucessório do filho concebido após a morte do marido, pois pela regra do Código Civil os concebidos após a morte não poderão ser chamados à sucessão.

            Assim, dita o artigo 1.798 que apenas os já nascidos ou concebidos no momento da abertura da sucessão, ou seja, no momento do falecimento do de cujus, estarão legitimados a suceder, portanto, pela regra do referido artigo, os filhos concebidos artificialmente após a morte do marido não teriam vocação hereditária, o que vai de encontro com o estabelecido no artigo 1.596 do mesmo código, que veda quaisquer discriminações acerca da filiação.

Nesse sentido, a regra do artigo 1.798 afronta o princípio constitucional da isonomia, calcado como cláusula pétrea no artigo 5º da Carta Magna. Este princípio também é destacado no artigo 227, §6º, e determina que os filhos havidos ou não no âmbito do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações dentro desta lei. Entretanto, ocorre que os filhos havidos após a morte do genitor são tratados de maneira desigual no que tange à sucessão.

Recentemente, foi proferida decisão na 13ª Vara Cível de Curitiba que autorizou a professora Katia Lenerneier, viúva de 38 anos, a fazer uso do sêmen congelado do seu falecido marido, Roberto Jefferson Niels, que morreu em razão de câncer de pele e decidiu congelar seu sêmen sob aconselhamento médico antes de iniciar o tratamento com quimioterapia, pois poderia deixa-lo infértil.

A negativa do laboratório em disponibilizar o sêmen do falecido para o procedimento de inseminação artificial levou a professora à pleitear na justiça esse direito. O laboratório se negou a fornecer o referido material genético por não haver um consentimento expresso do marido concedendo o uso após sua morte.

Nesse sentido, a legislação brasileira carece de norma que regulamente a matéria, porém, existe uma Resolução do Conselho Federal de Medicina (Resolução nº 1.957/2010), pela qual os laboratórios e clínicas responsáveis por aplicar esses procedimentos e técnicas de reprodução assistida se orientam, determinando que é obrigatório o consentimento informado a todos os pacientes, inclusive doadores, submetidos a essas técnicas.

Considerando que um filho gerado por inseminação artificial post mortem, como no caso em tela, reclame seus direitos sucessórios em relação ao patrimônio do pai falecido, pela legislação brasileira, a saber a regra do artigo 1.798 do Código Civil, não terá legitimidade para suceder, a menos que o de cujus deixe bens em testamento para o filho, especificando a prole futura gerada por seu material genético congelado e de sua esposa.

A decisão judicial acima mencionada é a primeira proferida no Brasil sobre reprodução assistida post mortem e, embora não haja referência aos direitos sucessórios do feto no âmbito dessa decisão haverá sempre a possibilidade de tal problemática chegar ao Judiciário, de forma que a legislação brasileira deve adequar-se à essa nova e crescente realidade familiar, uma vez que o desejo de constituição de família de muitos casais encontra seu óbice com os problemas de infertilidade que, segundos dados do Ministério da Saúde, atingem 15% dos casais brasileiros.

 

Conclusão

           

            Ante a visível complexidade do tema ora tratado percebemos as dificuldades com as quais o nosso Poder Legislativo irá se deparar para regulamentar a matéria em conformidade com a Constituição Federal e o atual Código Civil que, por todo o exposto, já estão em descompasso, sendo que uma mera alteração nos artigos do Código Civil relativos à vocação hereditária podem não ser suficientes para alcançar toda a extensão da matéria.

            A legislação brasileira carece, primeiramente, de uma norma que regule a aplicação das técnicas de reprodução humana assistida, bem como suas implicações legais para as clínicas e laboratórios e, inclusive, no âmbito do direito familiar e sucessório, de forma a garantir maior segurança àqueles que se utilizam dessas técnicas para concretizar o desejo de constituição de família e transmissão do legado por meio da formação da prole.

            Porém, é a reprodução póstuma que mais necessita de um regulamento claro e abrangente, pois a mesma tornou-se uma tendência mundial. A Jurisprudência supra mencionada foi o primeiro caso de reprodução póstuma pleiteada na justiça brasileira e, ainda que delongue alguns anos, abriu-se um precedente para muitos outros que abarrotarão o nosso Judiciário em razão da falta de lei pertinente.

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  • herança
  • legitimidade

Referências

Referências

 

COCO, Bruna Amarijo. Reprodução assistida post mortem: aspectos sucessórios. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3238, 13 maio 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/21747>. Acesso em: 15 set. 2015.

 

DINIZ. Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro 2007. 21. ed.rev.e atual. São Paulo, SP. 2007. ed. Saraiva 2007 v. 6

 

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006. vol. 6



VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005. vol. 6.


Jacqueline Silva Correspondência Jurídica

Bacharel em Direito - Goiânia, GO


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