O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM FACE DO ARTIGO 273 DO CÓDIGO PENAL BRASILEIRO


09/10/2018 às 10h01
Por Jacqueline Silva Correspondência Jurídica

Introdução

 

 

            Os princípios constitucionais, mesmo aqueles que estão implícitos no bojo da Constituição são considerados normas jurídicas, portanto, tem a mesma obrigatoriedade de qualquer outra determinação constitucional. Assim, uma vez que a Constituição Federal está no topo do ordenamento jurídico, e os princípios são normas norteadoras, todas as demais leis esparsas devem estar em conformidade com tais princípios.

            A legislação penal, bem como as demais leis extra constitucionais, deve guiar-se pelos princípios inseridos na constituição, uma vez que seu fundamento está na defesa dos cidadãos e na punição dos infratores da norma. Entretanto, para que o sistema não seja arbitrário, é necessário que haja adequação entre o ato praticado e a pena atribuída a esse infrator na aplicação da justiça.

No Brasil, sempre que ocorre um crime de grande comoção e notoriedade na mídia há um forte apelo social. A sociedade pressiona nosso Poder Legislativo à tomada de medidas urgentes que, por vezes, resultam em leis complexas, lacunosas e inconstitucionais. O artigo 273 do Código Penal é um bom exemplo disso, pois fere gravemente o princípio da proporcionalidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

Breve Síntese Acerca Do Princípio Da Proporcionalidade

 

A Constituição Federal de 1988 valoriza os chamados princípios fundamentais, que são nada mais do que, segundo as palavras de Pinho, “as normas jurídicas informadoras do ordenamento constitucional brasileiro” (2012, p. 74). Assim, todo o nosso ordenamento jurídico se orienta e se baseia nos princípios constantes na Constituição, pois se fundamentam nos valores essenciais à sociedade.

Os princípios fundamentais tem vital importância para o atual ordenamento jurídico, pois permite uma maior extensão da interpretação da lei, que poderá ser aplicada de maneira mais assertiva ao caso concreto.

Esses princípios são dotados de obrigatoriedade, pois constituem normas jurídicas efetivas, tendo como finalidade permitir ao operador do direito que interprete a lei a fim de extrair o sentido da norma, o fim para o qual a mesma foi criada, e não apenas aplicá-la fielmente, integrando e orientando todo o nosso ordenamento jurídico.

Bem como os demais princípios, o princípio da proporcionalidade está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, em especial no tocante à atuação penal, e encontra-se amparado implicitamente no art. 5º , inciso LIV, da Constituição Federal de 1988, que trata do devido processo legal, sendo que sua importância “(...) decorre do fato de a gravidade da intervenção penal ter sua variação atrelada ao grau de dignidade do bem jurídico e da sua afetação, fazendo nascer o binômio merecimento de pena/restrição da liberdade humana” (BIANCHINI, 2002, p.85).

Portanto, podemos concluir o referido princípio, no âmbito penal, encontra sua relevância especialmente no momento da cominação da pena garantindo que esta seja aplicada de maneira mais adequada e justa, proporcional à gravidade da infração penal. Em razão de seu efeito vinculante, o princípio da proporcionalidade deve ser observado tanto na elaboração das leis quanto na aplicação das mesmas.

Ao comentar o princípio da proporcionalidade, o grande doutrinador Luiz Flávio Gomes, explica que a intervenção penal, por ser uma medida de restrição da liberdade do indivíduo, somente se justificará se for adequada, necessária e proporcional à infração, devendo haver sempre uma ponderação entre a pena atribuída e o fim ao qual se propõe. (2009, p. 20;21)

No mesmo sentido, pelas palavras do doutrinador Edson Ristow:

“O princípio da proporcionalidade, em consonância com a Razoabilidade, constitui-se em princípio fundamental no ordenamento jurídico pátrio, visto que aduz na interpretação e aplicação do Direito com a finalidade de se relacionar proporcionalmente de forma moderada. Deve-se entender, que o princípio da Proporcionalidade é uma das bases para o controle da constitucional das leis em que qualquer situação que impõe limites a direitos devendo ser apropriado e exigível na justa cominação penal.” (2007, p. 88)

Portanto, é correto afirmar que o aludido princípio constitucional tem sua relevância e obrigatoriedade equiparada às leis, servindo não apenas de norteamento ao legislador e ao jurista, como também de base para o nosso ordenamento jurídico ao lado de tantos outros princípios que o constituem. Para o direito penal, encontra seu desígnio no equilíbrio justo entre a punição aplicada e o dano causado.

 

 

Análise Do Art. 273 Do Código Penal

 

Inicialmente, cabe salientar que o artigo ora tratado está elencado no Capítulo III do Código Penal, que trata dos crimes contra a saúde pública, e se transcreve:

“Art. 273 - Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:

Pena - reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.”

No ano de 1998 este tipo sofreu duas grandes alterações, na primeira, inserida pela Lei nº 9.677/98, sua pena original de um a três anos foi significativamente aumentada para dez a quinzes anos de reclusão e multa.

A lei acima citada também trouxe alterações no caput do artigo. Vale destacar, inicialmente, as ações nucleares do tipo, a saber: falsificar, corromper, adulterar e alterar, assim, temos um crime de ação múltipla, no qual não importa se o agente pratica uma ou todas as condutas tipificas, constituir-se-á crime único.

Quanto ao objeto material, constituído na expressão “produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, temos que o tipo não abrange apenas medicamentos, uma vez que a lei supra mencionada inseriu ainda o §1-A que especifica que os produtos aos quais se refere o artigo em comento serão “os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico”.

Na segunda alteração, inserida pela Lei nº 9.695/98, inseriu o delito no rol taxativo da Lei dos Crimes Hediondos, o que significa em termos práticos, que ao réu e aos partícipes, mesmo que por conduta omissiva, fica impedida a concessão de benefícios processuais como graça, indulto, anistia e fiança, embora o Supremo Tribunal Federal tenha pacificado o entendimento de que o sursis, suspensão condicional da pena, é aplicável aos crimes hediondos.

A Lei dos Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90) foi criada como resposta à criminalidade que crescia de maneira alarmante nos maiores centros urbanos do Brasil no final da década de 80, início dos anos 90. Isso gerou uma enorme insatisfação popular, de forma que a sociedade cobrava uma medida eficaz do governo que, pressionado, criou a referida lei como forma de inibir a prática de crimes como homicídio, estupros e latrocínios.

Assim, com o advento dessa lei, estabeleceu-se um rol taxativo de delitos a serem punidos mais severamente e também afastados dos benefícios da legislação processual penal. No tocante as alterações feitas no artigo 273 do Código Penal, estas ocorreram em razão do forte apelo social em torno da venda de pílulas anticoncepcionais falsificadas em meados de 1998, escândalo que rendeu manchetes nos jornais por muito tempo.

Na época, a população estarrecida com o problema da falsificação de remédios no Brasil clamou por penas mais rígidas, pressionando o nosso legislativo à tomar medidas urgentes, o que sempre resulta em leis complexas, obscuras, lacunosas e, no caso em tela, desproporcional ao ponto de ser considerada inconstitucional.

A Lei 9.677/98 também inseriu o parágrafo 1º do artigo supra mencionado, que segue:

“§ 1º - Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado. (Redação dada pela Lei nº 9.677, de 2.7.1998)”

            Pela regra do parágrafo acima, a mesma pena se aplicará a quem porta ou mantém tais produtos cuja destinação é a venda. A discussão sobre a exageração da pena se dá em razão de o delito ora tratado ser meramente de perigo abstrato, isto é, quando a ocorrência do dano ao bem jurídico tutelado é apenas presumida no tipo penal sendo, portanto, irrelevante a ocorrência do dano, ou seja, que a substância constante no medicamento falsificado seja capaz de causar qualquer prejuízo à saúde do indivíduo que o consumiu.

            Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça considerou inconstitucional a pena para venda de medicamento de procedência ignorada por violar os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, conduta tipificada no art. 273, § 1º-B, inciso V, do Código Penal, a seguir exposto:

“(...) § 1º-B - Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no § 1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:

V - de procedência ignorada; (...)”

 

            A ANVISA, Agência Nacional de Vigilância Sanitária, determina que todos os medicamentos vendidos devem informar o fabricante, o país de origem e, no caso de produtos importados, o nome da importadora no verso da embalagem, assim, todos que não contiverem tais informações estarão irregulares e sujeitos às penas da lei. Portanto, o indivíduo que vender, por exemplo, pílulas anabolizantes importadas de forma que as informações supra, bem como demais exigidas por lei, não constarem na embalagem do produto, incorrerá na pena estabelecida no artigo 273 da mesma forma que o fabricante.

            Se analisarmos a gravidade da conduta do indivíduo que vende o produto em relação à conduta do fabricante, perceberemos que o vendedor fica sujeito à uma pena completamente desproporcional ao ato por ele praticado. Assim, a legislação penal deveria aplicar-se mais severamente no fabricante do medicamento, cuja conduta é claramente dolosa, do que no vendedor que, até mesmo por desconhecimento da falsificação, aliena o produto.

                        Apesar do artigo 273 do Código Penal ser o caso mais evidente de ofensa ao princípio constitucional da proporcionalidade não é o único em que há disparidade entre a conduta praticada e a pena atribuída. Neste sentido, se considerarmos o objeto jurídico tutelado no homicídio culposo (Art. 121 §3º do C.P.), a saber: a vida, cuja pena atribuída é de 1 a 3 anos de detenção, e o crime de bigamia (Art. 235 do C.P.), com pena de 2 a 6 anos de reclusão, percebemos uma clara desproporção entre a conduta e a punição.

 

Considerações Finais

 

            A ofensa ao princípio da proporcionalidade no ordenamento jurídico pátrio é flagrante. Ao analisarmos a legislação penal brasileira de forma sistemática encontramos a relação de vários tipos penais em que são imputadas penas visivelmente discrepantes em relação à conduta praticadas, além de ofensivas ao princípio da proporcionalidade.

            Os princípios constitucionais existem para nortear as leis extra constitucionais, de forma à inserir valores morais em nosso ordenamento jurídico e, portanto, devem ser respeitados, especialmente na legislação penal, não obstante a Constituição Federal 1988 ter entrado em vigor muitas décadas depois que o Código Penal, datado de 1940.

            Além dos crimes já mencionados, podemos analisar ainda delitos como a lesão corporal culposa, tipificado no artigo 129, §6º, do Código Penal, cuja pena é de detenção de 2 meses a 1 ano, e a lesão corporal culposa na direção de veículo automotor, constante no artigo 303 do Código de Trânsito Brasileiro, em pena de detenção de 6 meses a 2 anos.

            São inúmeros os casos de desproporcionalidade entre conduta praticada e pena cominada. A legislação penal brasileira precisa ser revista e adaptada à sociedade moderna, pois a criminalidade aumenta e muda na medida que a sociedade evolui, sendo os crimes cibernéticos um bom exemplo disso. A lei penal necessita ser adequada ainda, para que se harmonize com a nossa Constituição, extinguindo a visão arcaica do códex, onde os crimes que tutelam o patrimônio tem penas maiores que àqueles que tutelam a vida.

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  • proporcionalidade
  • delitos
  • penas

Referências

1. BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

2. FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 364.

3. GOMES, Luiz Flávio. Limites do" Ius Puniendi "e Bases Principiológicas do Garantismo Penal. LFG. p. 20/21.

4. RISTOW, Edson. Ética Função Jurisdicional Due Process Of Law e o Princípio da Razoabilidade.. Itajaí: S&T Editores, 2007 p. 88.


Jacqueline Silva Correspondência Jurídica

Bacharel em Direito - Goiânia, GO


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