Necessidade de representação em estelionato deve ser aplicada aos processos em andamento?


30/11/2020 às 09h04
Por Jeferson Freitas Luz

             A ação penal é pública, salvo quando a lei a estabelece como condicionada à representação ou privativa do ofendido. Isso significa dizer que, em regra, o Ministério Público poderá atuar, independentemente da manifestação ou requerimento da vítima.

            Dito isso, importa mencionar que até a edição da Lei 13.964, conhecida como a ´´Lei Anticrime´´, a ação penal do crime de estelionato era incondicionada. Ou seja, ocorrido o crime de estelionato, poder-se-ia, de ofício, iniciar investigação criminal e ação penal.

            Entretanto, após a entrada em vigor da referida lei, exige-se representação da vítima para que se inicie o procedimento investigativo e o processo penal. Isto é, passou a ser ação condicionada à representação (nesse sentido, o §5º do art. 171 do Código Penal).

            O tema é objeto de discussão fervorosa, visto que se questiona se a inovação legal, que exige representação, aplica-se somente aos novos processos iniciados após a edição da lei ou se também é aplicável aos processos em andamento e, consequentemente, com denúncias oferecidas.

            Necessário dizer que o art. 2º do Código de Processo Penal estabelece que ´´a lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior´´. Por sua vez, o art. 5º, XL, da Constituição Federal (CF), estabelece que ´´a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu´´.

            Assim sendo, parte da doutrina, representada pelo Professor Rogério Sanches Cunha (2020), entende que, nos processos em que já oferecida a denúncia, não se faz necessária a representação da vítima, tendo em vista tratar-se de ato jurídico perfeito, praticado nos moldes da lei até então vigente.

            De outro lado, Aury Lopes Junior (2020) entende tratar-se de norma processual mista, isto é, de natureza penal e processual, sendo que, por ser mais benéfica ao réu, deve ser aplicada de forma retroativa. Defende que, nos processos em curso, deve a vítima ser intimada para que se manifeste sobre o interesse em representar. Em não havendo representação, extingue-se o feito em face da decadência, nos termos do art. 107, IV, do CP.

            Apresentadas brevemente as duas correntes doutrinárias, tem-se que há divergência também no âmbito jurisprudencial.

            A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando do julgamento do Habeas Corpus (HC) nº 573.093, firmou entendimento no sentido de que a exigência de representação trazida pela nova lei não afeta os processos em curso.

            Segundo esse entendimento, em face de a nova lei ter silenciado sobre a aplicação da exigência de representação aos processos em andamento, bem como pelo ato jurídico (oferecimento da denúncia) ser perfeito e acabado, a nova exigência não alcança os processos nos quais a exordial acusatória já fora oferecida. Justifica-se que, entendimento contrário conferiria ´´efeito distinto ao estabelecido na nova regra, transformando-se a representação em condições de prosseguibilidade e não procedibilidade.

            Em outro sentido, a Sexta Turma do mesmo Tribunal (STJ), no julgamento do HC nº 583.837, entendeu pela retroatividade da nova lei, tendo em vista que ´´considerar o recebimento da denúncia como ato jurídico perfeito inverteria a natureza dos direitos fundamentais, visto que equivaleria a permitir que o Estado invocasse uma garantia fundamental frente a um cidadão´´.

            Aplica-se, segundo esse entendimento, por analogia, o disposto no art. 91 da Lei 9.099, de modo que a vítima deve ser intimada para se manifestar sobre o interesse na continuação da persecução penal no prazo de 30 dias, sob pena de decadência.

            Por fim, levada a questão à Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no HC nº 187.341 SP, prevaleceu o entendimento de que não é cabível a aplicação retroativa da norma nos casos em que o Ministério Público já ofereceu a denúncia antes da entrada em vigor da nova lei.

            Segundo o ministro Alexandre de Moraes, a norma vigente até então era de ação penal pública incondicionada, de modo que não exigia condição de procedibilidade para instaurar a ação em juízo, sendo que não há qualquer ilegalidade no prosseguimento da ação nas hipóteses de oferecimento da denúncia já fora realizado:

HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA A PARTIR DA LEI N. 13.964/19 ("PACOTE ANTICRIME"). IRRETROATIVIDADE NAS HIPÓTESES DE OFERECIMENTO DA DENÚNICA JÁ REALIZADO. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA LEGALIDADE QUE DIRECIONAM A INTERPRETAÇÃO DA DISCIPLINA LEGAL APLICÁVEL. ATO JURÍDICO PERFEITO QUE OBSTACULIZA A INTERRUPÇÃO DA AÇÃO. AUSÊNCIA DE NORMA ESPECIAL A PREVER A NECESSIDADE DE REPRESENTAÇÃO SUPERVENIENTE. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS INDEFERIDO. HC 187.341 / SP.

 

            Fundamenta, portanto, nos princípios da segurança jurídica e legalidade, em vista de a norma especial não ter disposto sobre a necessidade de representação superveniente.

            Não obstante o exposto, tem-se que o tema ainda será objeto de extenso debate doutrinário e jurisprudencial, não havendo consenso sobre a questão.

            Outrossim, considera-se mais adequada a segunda corrente exposta, tendo em vista que a Constituição Federal estabelece que a lei penal, se mais benéfica, retroage.

            Assim, por ser mais benéfica a inovação legislativa, deve haver, nos processos em que já oferecida a denúncia, intimação do ofendido para que se manifeste sobre o interesse em representar. Em se manifestando de forma positiva, o processo terá andamento regular. Em silenciando ou manifestando-se de forma negativa, haverá a extinção da punibilidade do acusado.

 

  • Direito Penal
  • Processo Penal
  • STF
  • STJ

Referências

 contato@jefersonfreitasluz.com


Jeferson Freitas Luz

Advogado - Encruzilhada do Sul, RS


Comentários