Concepções teóricas: Dualista e Monista
Ao que tudo indica, as concepções teóricas dualista e monista são as lentes pelas quais os doutrinadores e estudiosos do direito internacional enxergam os sistemas jurídicos nacional e internacional.
De acordo com a primeira concepção dualista (expressão criada e adotada por Triepel), o direito internacional e o direito interno compõem dois sistemas distintos e independentes não apenas porque envolvem relações sociais diversas e fontes específicas, como também porque regulam matérias diversas. Desse modo, de acordo com esse primeiro prisma, não seria possível haver nenhum conflito entre os dois sistemas, tampouco haver a supremacia de um sobre o outro, já que para uma norma do cenário internacional passasse a vigorar no plano interno, necessário seria que o Direito Internacional fosse convertido em norma de Direito interno. Sendo assim, para os dualistas há prevalência da lei interna de cada Estado sobre a norma internacional.
Na segunda concepção, como não poderia deixar de ser, há total oposição à dualista, pois para a teoria monista, existe apenas um sistema jurídico, isto é, tanto o Direito interno, como o Direito internacional seriam ramos de um mesmo Direito que comporia uma ordem jurídica una, por contemplarem uma mesma identidade de sujeitos e de fontes. Dessarte as normas internacionais aplicar-se-iam na ordem interna dos Estados, independente de haver uma conversão formal da norma. Por não determinar qual norma deverá prevalecer no caso concreto, essa teoria se subdivide, havendo os que dizem que em caso de conflito deve prevalecer a ordem jurídica nacional (monismo nacionalista) e os que afirmam que a norma que deve prevalecer no caso de conflito é a internacional (monismo internacional).
Concepção adotada pelo ordenamento brasileiro
Consoante afirma Rezek, o Judiciário brasileiro norteia-se pela ideia do monismo (nacionalista), pois é no texto da Constituição que se deve buscar o grau exato de prestígio a ser atribuído às normas internacionais escritas e constumeiras. Muito embora, essa posição não seja uníssona, por haver autores que sustentam a adoção do dualismo como Celso de Mello e outros que falam de uma combinação dos dois sistemas, posição de Carlos Husek, (2007).
A jurisprudência internacional, por sua vez, por unanimidade, sustenta a primazia do Direito Internacional sobre o Direito interno dos Estados, ainda que a supremacia do Direito Internacional sobre o Direito interno dos estados não seja um consenso, pois mesmo havendo países que adotam cláusulas de adoção global das regras do Direito Internacional em suas Constituições, como por exemplo Alemanha, Estados Unidos, há outros que nada dispõem expressamente em suas Constituições ou que mesmo recepcionando a cláusula de adoção global das regras do Direito Internacional, não estabelecem a primazia desse sobre as normas de Direito interno.
Posição hierárquica dos tratados internacionais comuns
Apesar de a Constituição brasileira de 1988 não apresentar expressamente nenhum dispositivo que determine a posição dos tratados internacionais comuns perante o direito interno, a doutrina nacional acolheu a tese de que os tratados internacionais possuem a mesma hierarquia jurídica das leis federais, sendo eles incorporados no ordenamento jurídico brasileiro como norma infraconstitucional, posição essa que será combatida mais adiante nesse trabalho.
Acerca do tema, explica Mazzuoli que para tratar da questão da hierarquia dos tratados internacionais, faz-se necessária a análise do posicionamento do STF acerca do tema, ao longo das últimas décadas.
Sugere o autor que o problema da concorrência existente entre tratados internacionais comuns e as leis internas de estatura infraconstitucional pode ser resolvido de duas maneiras : a) sendo dada a prevalência aos tratados sobre o direito interno infraconstitucional – como se verifica nas constituições francesa, grega e peruana – de modo a garantir plena vigência ao compromisso internacional, sem óbice de leis posteriores que o contrarie e/ou; b) sendo outorgado o tratamento paritário, caso em que, as leis nacionais e demais diplomas de grau equivalente são tomados como paradigmas. De sorte que no caso de conflito entre tratado e lei interna, a solução é dada por intermédio do princípio lex posterior derogat priori.
Tendo o Brasil, por meio do Pretório Excelso, adotado essa segunda posição, qual seja, a do sistema paritário, no qual o tratado uma vez formalizado passa a ter força de lei ordinária, essa norma pode tanto revogar as disposições em contrário, como ser revogada.
Ensina Mazzuoli, que foi no julgamento do RE 80.004-SE, que o STF – ao consagrar a teoria monista moderada – concluiu que dentro do sistema jurídico brasileiro (em que tratados e convenções tem estrita relação de paridade normativa com as leis ordinárias editadas pelo Estado) a normatividade dos tratados internacionais permite, no que concerne a hierarquia das fontes, que eles sejam situados no mesmo plano e eficácia das leis internas.
Posição Hierárquica dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos
A presente epígrafe, qual seja, a da posição hierárquica dos tratados de direitos humanos no país, mostra-se de grande relevância, pois servirá de pano de fundo para a questão primordial desse trabalho, quando for tratado o tema do controle jurisdicional de convencionalidade, já que a referência feita a essa nomenclatura, denotará, de acordo com Mazzuoli (2013), a compatibilização vertical das leis com os tratados de direitos humanos em vigor no país, razão pela qual requer atenção especial.
Atualmente, há três correntes doutrinárias no Brasil acerca da posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos: 1) a posição majoritária do STF, segundo a qual os tratados de proteção dos direitos humanos ingressam no ordenamento jurídico brasileiro com hierarquia infraconstitucional, mas supralegal, o que significa dizer que eles podem revogar a legislação ordinária, anterior, mas não podem ser revogados por ela, posição defendida pelo [8]Mínistro Sepúlveda Pertence; 2) a posição ainda minoritária, sustentada nesse trabalho e baseada no entendimento do Min. Celso de Mello e na doutrina de Mazzuoli e; 3) a posição isolada do Prof. Celso D. de Albuquerque Mello, segundo a qual o § 2º, do artigo 5º, da Constituição não apenas atribui “hierarquia constitucional” aos tratados de direitos humanos, mas faz ainda com que a norma internacional prevaleça “sobre a norma constitucional, mesmo no caso em que uma Constituição posterior tente revogar uma norma internacional constitucionalizada”.
Como já destacado na introdução, a promulgação da Constituição de 1988 foi um marco significativo para o início do processo de redemocratização do Estado brasileiro e de institucionalização dos direitos humanos no país, marco esse que significou a abertura do sistema jurídico brasileiro para uma nova ordem, a partir da ratificação de inúmeros tratados internacionais globais e regionais protetivos da pessoa humana, os quais integram o conjunto de normas aplicáveis pelo Judiciário e que acrescentam novos direitos e garantias aos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Consoante ensinamento de Flávia Piovesan (2013), a Constituição Federal, ao fim de uma lista extensa de direitos expressos em seu artigo 5º, evidencia em seu parágrafo segundo que há outros direitos constitucionalmente protegidos que são oriundos de tratados internacionais aos quais aderiu o Brasil. A tal conclusão, chega-se facilmente a partir da dicção do próprio texto constitucional, segundo o qual “os direitos e garantias expressos na Constiuição não excluem outros direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais”.
Destaca a autora que no caso dos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, tais direitos são expressos, enumerados e claramente elencados, não podendo ser considerados de difícil caracterização priori, como ocorre com outros como os decorrentes do regime e princípios adotados pela Constituição que dependem de interpretação. Tendo, portanto, tais tratados nível de normas constitucionais.
Explica Mazzuoli (2013) que a Carta de 1988 instituiu no país novos princípios jurídicos – como o da dignidade da pessoa humana e a prevalência dos direitos humanos (artigo 1º, III e artigo 4º, II, da Constituição de 1988) – que conferem suporte axiológico a todo o sistema normativo brasileiro, princípios esses que devem ser sempre considerados, quando o assunto for interpretar e aplicar normas do ordenamento jurídico nacional.
Portanto, corroborando tal compreensão, qual a seja, a de os tratados de direitos humanos terem status de normas constitucionais, o autor de O Controle Jurisdicional da Convencionalidade das Leis, ensina que basta ser feito um estudo conjugado dos §§ 2º e 3º, do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 para que se verifique que os tratados de direitos humanos em vigor no país têm índole e nível de normas constitucionais.
Com fundamento no § 2º, ele esclarece que os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil têm índole e nível constitucionais e aplicação imediata, não podendo ser revogados por lei ordinária posterior. Sendo assim, conclui o autor que a própria Constituição nesse dispositivo autoriza que direitos e garantias internacionais constantes de tratados de direitos humanos, ratificados pelo Brasil, sejam incluídos no nosso ordenamento jurídico interno, passando eles a serem considerados como se escritos na Constituição estivessem.
Enfatiza ainda, Mazzuoli, que são três as vertentes dos direitos e garantias individuais no texto da Constituição Brasileira, a saber: 1) direitos e garantias expressos na Constituição, como os elencados nos incisos I a LXXVIII de seu artigo 5º e outros; 2) direitos e garantias implícitos, subentendidos nas regras de garantias e decorrentes dos princípios adotados pela Constituição e 3) direitos e garantias inscritos nos tratados internacionais de direitos humanos dos quais seja parte a República Federativa do Brasil.
Já com base no § 3º, do artigo 5º, ensina Mazzuoli que a redação é semelhante à do artigo 60, §2º, da Constituição, segundo o qual toda proposta de emenda à Constituição “será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros”. E acrescenta que:
a semelhança dos dispositivos está ligada ao fato de que, antes da entrada em vigor da Emenda 45/2004, os tratados internacionais de direitos humanos eram aprovados por Decreto Legislativo por maioria simples no Congresso, nos termos do artigo 49, I, da Constituição, o que gerava inúmeras controvérsias jurisprudenciais sobre a aparente hierarquia infraconstitucional desses instrumentos internacionais no nosso direito interno.
Com base nos aspectos até aqui destacados, já é possível verificar que o texto introduzido no artigo 5º, da Constituição pela emenda 45 não facilitou a compreensão acerca da posição ou da recepção dos tratados internacionais de direitos humanos no nosso ordenamento e por essa razão o próximo artigo terá por objetivo evidenciar alguns dos equívocos do legislador nacional, assim como mostrar algumas das incongruências do texto do § 3º, do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988.