“[...] a extinção ordinária é efeito da realização dos objetivos do processo; a anômala, uma frustração. É como a morte do ser humano. Já velho e havendo realizado seus propósitos de vida, a morte é uma inerência desta. Mas a morte do jovem frustra expectativas.”
Cândido Dinamarco
RESUMO
O Direito Processual Brasileiro passa por momentos de transformação, sobretudo com o advento do Novo Código de Processo Civil, o primeiro Código Processual brasileiro da era democrática, fortemente influenciado pelos princípios do efetivo contraditório, da duração razoável do processo e do novel princípio da cooperação. O presente trabalho objetiva estudar o Princípio do Contraditório no Direito Processual Civil brasileiro com o advento do novel diploma processual e a sua correlação com os Princípios supramencionados, com profundos debates sobre o direito de participação e influência nas decisões judiciais num processo democrático. O trabalho passará por um breve esboço histórico sobre o surgimento da garantia do contraditório no direito inglês. Adiante, passaremos a discutir as diversas facetas do Contraditório como o Formal e Material, desde o Código de Processo Civil de 1973 até o Código de Processo Civil de 2015. Posteriormente, passaremos a explorar o Princípio da Cooperação, descrevendo os deveres de esclarecimento, lealdade, proteção e consulta a ele inerente, resultando em o que alguns autores denominam de um terceiro modelo de processo na civilização ocidental, em contraposição ao modelo inquisitorial e ao modelo adversarial presentes na maioria das legislações processuais do Século XX. Em seguida, passaremos ao estudo das matérias de ordem pública, com ênfase na ordem pública processual e a sua incidência sobre as condições da ação, pressupostos processuais e as nulidades processuais. Ato contínuo, conceituaremos as decisões de ofício, diferenciando-se das decisões inaudita altera parte e a sua correlação com as matérias de ordem pública no Novo Código de Processo Civil. Assim sendo, problematizaremos a aplicabilidade do Princípio do Efetivo Contraditório em correlação ao Princípio da Cooperação, de modo a afastar as chamadas decisões por emboscada, também denominada pela doutrina de decisões surpresa.
Palavras-chave: Princípio do Contraditório Efetivo. Cooperação processual. Matérias de Ordem Pública. Vedação das decisões por emboscada.
ABSTRACT
The Brazilian Procedural Law goes through moments of transformation, especially with the advent of the new Code of Civil Procedure, the first Brazilian Procedural Code of the democratic era, heavily influenced by the Principles of Contradictory, of Reasonable Duration of the Process, and novel Principle of Cooperation. The present paper aims at the study of the Adversarial Principle in Brazilian Civil Procedural Law with the advent of novel procedural diploma and its correlation with the above-mentioned Principles, with deep discussions about the right of participation and influence on the judicial decisions in a democratic process. We will go through a brief historical stub on the emergence of contradictory warranty in English law. Later, we will discuss the different facets of Contradictory as the Formal and Material, since the code of Civil procedure of 1973 until the code of Civil procedure of 2015. Therefore we will explore the principle of Cooperation, describing the duties of clarification, loyalty, protection and consulting him inherent, resulting in what some authors call a third model of process in Western civilization, in contrast to the inquisitorial and adversarial model present in most of the procedural laws of the 20th century. This way we will pass to the study of matters of public order with an emphasis on procedural public order and their impact on the conditions of the action, procedural assumptions and procedural nullities. Then, we will give a concept to "ex officio" decisions, differentiating from "inaldita altera parte" decisions and its correlation with the matters of public order in the New Code of Civil Process. Finally, will be discussed the applicability of the Principle of Contradiction in relation to the principle of Cooperation, to ward off decisions by ambush, also named by the doctrine of surprise decisions.
Keywords: Adversarial Principle. Procedural Cooperation. Matters of public order. Prohibition of decisions by ambush.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.. 10
2 O EFETIVO CONTRADITÓRIO.. 12
2.1 O SURGIMENTO DA GARANTIA DO CONTRADITÓRIO.. 12
2.2 O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NO BRASIL. 13
2.3.1 O contraditório formal 18
2.3.2 O contraditório material 20
2.4 O CONTRADITÓRIO NO CÓDIGO PROCESSUAL CIVIL DE 1973. 22
2.5 O CONTRADITÓRIO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. 23
3 O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO.. 26
3.1 DEVERES DECORRENTES DO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO.. 29
3.1.1 Dever de esclarecimento. 30
3.1.2 Dever de lealdade. 32
3.1.3 Dever de proteção. 33
3.1.4 Dever de consulta. 34
4 AS MATÉRIAS DE ORDEM PÚBLICA.. 36
4.1 A ORDEM PÚBLICA PROCESSUAL. 37
4.1.1 Condições da ação. 39
4.1.2 Pressupostos processuais. 39
4.1.2.1 Pressupostos processuais como questões de ordem pública. 41
4.1.2.2 Pressupostos processuais de interesse público. 42
4.1.3 Nulidades processuais. 42
5 AS DECISÕES DE OFÍCIO.. 45
6 O NOVO CPC E A VEDAÇÃO DAS DECISÕES SURPRESA.. 47
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS.. 54
REFERÊNCIAS.. 56
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo a análise da vedação das denominadas decisões surpresa em conjunto aos princípios do contraditório efetivo e da cooperação processual.
De certo o sistema processual brasileiro passa pela sua maior transformação em todos os tempos. A Lei 13.105 de 16 de março de 2015, que dispõe sobre o Código de Processo Civil representa um marco no sistema processual brasileiro, sobretudo pautado pelos direitos garantias fundamentais observadas na Constituição Federal de 1988.
Além disso, o Novo Código de Processo Civil se destaca pela adoção do sistema processual cooperativo, em detrimento dos sistemas assimétrico e inquisitório, se observando a paridade de tratamento entre as partes e o juiz no decurso do procedimento jurisdicional, com a finalidade de estabelecer um processo mais justo e igualitário, objetivando decisões de mérito em detrimento de decisões terminativas, dentro da lógica da duração razoável do processo.
Outrossim, em sentido diametralmente oposto ao diploma processual de 1973, o legislador de 2015 optou por dar um tratamento especial ao Princípio do Contraditório.
Objetivando conceder maior efetividade ao princípio constitucional do contraditório, o legislador optou por vedar aos magistrados o direito de decidir questões sem que seja oportunizado às partes o direito de se manifestarem, salvo raras exceções, ainda que se tratem de matérias pelas quais deva se decidir de ofício, sejam elas meritórias ou não.
Ao contraditório não mais basta que seja dado a oportunidade de se defender, ou apenas de ser informado sobre os atos processuais praticados. O contraditório no estado democrático de direito contemporâneo exige que seja dado às partes a oportunidade de influir nas decisões jurisdicionais.
Aliás, democracia é sinônimo de participação e a participação no processo judicial só se efetiva com a real garantia do contraditório, onde todos os sujeitos processuais, a partir de um modelo pautado na cooperação, possam influir no convencimento daquele que julga.
Por conseguinte, o presente trabalho visa esmiuçar o conceito e os deveres decorrentes dos princípios do contraditório efetivo e da cooperação processual com a finalidade de fundamentar as mudanças procedimentais no nosso ordenamento processual civil.
Para tanto, empregaremos o direito comparado, especialmente as legislações processuais europeias ocidentais, notadamente a portuguesa e a alemã, com o fito de
Identificar as tendências observadas pelo legislador brasileiro quando da construção do novo código processual civil.
Ademais, como consequência do princípio da cooperação, observamos ainda os deveres de esclarecimento, de consulta, de lealdade e de proteção que pautam todo o ordenamento processual, o que reforça a ideia da vedação as decisões por emboscada e da prevalência das decisões de mérito.
Posteriormente, trataremos das questões de ordem pública e das questões de ordem pública processual, notadamente as condições da ação, pressupostos processuais e as nulidades pelas quais o magistrado deve arguir independente de provocação dos demais sujeitos processuais.
Adiante, delinearemos uma conceituação sobre decisões de ofício, problematizando o tratamento dado às matérias de ordem pública no direito processual civil brasileiro, notadamente a confusão entre decidir sem a provocação das partes e decidir sem que seja dada a oportunidade dos sujeitos processuais de influir no pronunciamento jurisdicional.
Ao final, será demonstrado como o Código de Processo Civil de 2015 deu tratamento especial ao princípio do contraditório efetivo e ao princípio da cooperação processual com a finalidade de evitar as decisões por emboscada, notadamente aquelas em que se extingue o processo precocemente.
Tema polêmico, a vedação às decisões surpresa fora objeto de diversas considerações, especialmente com a edição de enunciados normativos pela ENFAM (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados) e pelo Fórum Permanente de Processualistas Civis, se fazendo imprescindível o comentário acerca dos enunciados.
2 O EFETIVO CONTRADITÓRIO
2.1 O SURGIMENTO DA GARANTIA DO CONTRADITÓRIO
Muito se discute sobre o surgimento do que hoje denominamos de Princípio do Contraditório. Nelson Nery Junior aponta que o Princípio do Contraditório seria uma manifestação do “devido processo legal”, assim como os princípios da publicidade dos atos processuais, a impossibilidade de utilizar-se em juízo prova obtida por meio ilícito, assim como o postulado do juiz natural e do procedimento regular.[1]
A Carta Magna Inglesa de 1215, apesar de não ter feito direta menção ao Princípio do Devido Processo Legal nem tampouco ao contraditório e, mesmo considerando que a primeira fora fruto de limitação do poder da coroa pelos nobres, em seu artigo 39 dispôs que:
Nenhum homem livre será detido nem preso, nem despojado de seus direitos nem de seus bens, nem declarado fora da lei, nem exilado, nem prejudicada a sua posição de qualquer forma; tampouco procederemos com força contra ele, nem mandaremos que outrem o faça, a não ser por um julgamento legal de seus pares e pela lei do país.[2] (Grifos Nossos)
Todavia, o termo “due process of law” somente foi utilizado em 1354, no reinado de Eduardo III da Inglaterra, na Lei denominada de “Statute of Westminster of the Liberties of London” por meio de um legislador desconhecido.[3]
Contudo, a primeira declaração de direitos fundamentais, em sentido moderno foi a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, uma das 13 colônias inglesas à época, localizada no que hoje compreende os Estados Unidos da América, onde tratava do Princípio do Devido Processo Legal na secção 8.ª, ipsis litteris: “that no man be deprived of his liberty, except by the law of the land or the judgement of his peers”.[4]
Mais tarde os referidos princípios não apareceriam na Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada na Convenção da Filadélfia, em 17.09.1787. Contudo, em virtude de alguns Estados condicionarem a adesão à Carta Magna norte-americana se fosse introduzido uma carta de direitos, a Constituição foi emendada em 1791 onde consta que se asseguram os seguintes direitos fundamentais: “(3) direito de defesa e de um julgamento por juiz natural e de acordo com o devido processo legal, isto é, com garantias legais suficientes (Emenda 5ª).”[5]
2.2 O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NO BRASIL
A Constituição Federal de 1988 reservou o Título II para tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais. Em seu artigo 5º, LIV e LV:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;[6]
Para Nelson Nery Junior, bastaria que a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo legal, e o caput e a maioria dos incisos do art. 5º seriam absolutamente inúteis.[7] Conclui afirmando que:
De todo modo, a explicitação das garantias fundamentais derivadas do devido processo legal, como preceitos desdobrados nos incisos do art. 5º, CF, é uma forma de enfatizar a importância dessas garantias, norteando a administração pública, o Legislativo e o Judiciário para que possam aplicar a cláusula sem maiores indagações.[8]
Humberto Bergmann Ávila define o princípio jurídico como:
[...] normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.[9]
Por Contraditório Nelson Nery Junior entende ser:
De um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da - ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis. Os contendores têm direito de deduzir suas pretensões e defesas, de realizar as provas que requereram para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos.[10]
O Contraditório deve ser garantido a todos que tenham alguma pretensão de direito material a ser deduzida em processo, ou seja, às partes litigantes, sejam elas como autor, réu, litisdenunciado, chamado ao processo, opoente, além do Ministério Público, tanto no processo judicial como no processo administrativo. Excluem-se deste rol, todavia, as testemunhas e os peritos, visto não possuírem nenhuma pretensão de direito material a ser deduzida no processo.[11]
“Na verdade, o princípio do contraditório constitui uma necessidade inerente ao procedimento, ostentando a natureza de direito inviolável em todos os seus estágios e graus, como condição de paridade entre as partes.”[12]
Contudo, para Leonardo Carneiro da Cunha:
[...] além da bilateralidade e de igualdade de oportunidades, o contraditório deve instaurar um diálogo no processo entre o juiz e as partes, garantindo uma atividade verdadeiramente dialética, com que se assegura a prolação de uma decisão justa e, de resto, de um procedimento justo.[13]
Portanto, o Princípio do Contraditório está disposto no artigo 5º, LV da Constituição Federal de 1988, no rol dos Direitos e Garantias Fundamentais[14]. Corolário do Devido Processo Legal, o Princípio do Contraditório representa verdadeira garantia de fortalecimento da recente redemocratização do Estado brasileiro.
O referido princípio deve ser entendido para além da dialética do processo, devendo ser caracterizado pela efetiva participação da parte na totalidade do processo, influindo diretamente em quaisquer aspectos que sejam importantes para a decisão do conflito.[15]
Desse modo, deve-se garantir a paridade de tratamento, não podendo o magistrado julgar a lide sem que se tenha ouvido ambas as partes, cedendo espaço para a apresentação de argumentos de modo a influenciar o seu livre convencimento[16], constituindo o contraditório em um “poderoso fator de contenção do arbítrio do juiz”.[17]
Nelson Nery Junior, contudo, ao comentar o Contraditório no CPC/73, entende ser mais apropriado falar-se em Princípio da Bilateralidade da Audiência no Processo Civil ao invés de Princípio do Contraditório.
Comenta o autor que o Princípio do Contraditório não goza da mesma abrangência no Processo Civil que no Processo Penal, citando a possibilidade de revelia por opção do réu sem que isto configure ofensa ao Princípio do Contraditório ao revés do Processo criminal que exige defesa técnica substancial, ainda que julgado à revelia.[18]
Discorre ainda que: “O réu deve ser, portanto, citado. Isto se verificando, mesmo no caso de ele tornar-se revel, deixando de apresentar contestação, terá sido atendido o princípio constitucional do contraditório”.[19]
Por sua vez, Darci Guimarães Ribeiro adverte que apesar de outros princípios admitirem exceções, o Contraditório é um princípio absoluto, não sendo admitidas exceções, nem mesmo em processos administrativos, devendo sempre ser respeitado, sob pena de nulidade.[20]
Podemos afirmar que o Princípio do Contraditório pode ser visualizado sob as ópticas formal e substancial. A primeira se manifesta quando se garante às partes o direito de ouvir e ser ouvida. Consiste no mero direito de informação e manifestação ou reação durante o devido processo legal, o que é absolutamente insuficiente e não mais tem espaço no Estado Democrático de Direito.
A essência do Estado Democrático de Direito exige que cada vez mais haja a efetiva participação e cooperação das partes na formação e convencimento das decisões jurisdicionais, ao passo em que surge uma terceira dimensão do Princípio do Contraditório: o direito de influência e de não surpresa.
Nos dizeres de Daniel Carneiro Machado, a visão contemporânea do Princípio do Contraditório passa a considerá-lo sob três dimensões fundamentais, quais sejam:
[...] a) direito de informação: o órgão julgador b) direito de manifestação ou reação: é assegurado à parte o direito de se manifestar oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; e c) direito de influência e de não surpresa: dever de o julgador conferir atenção às razões relevantes apresentadas, não somente para tomar conhecimento, mas também para considerá-las detidamente quando do julgamento, sem surpreender as partes com questões não debatidas.[21]
No mesmo sentido, Darci Guimarães Ribeiro:
O contraditório, a meu sentir, pode ser mais bem compreendido levando-se em consideração seu desenvolvimento através dos tempos, vale dizer, ao longo de três fases marcantes. A primeira, que denomino formal e está caracterizada pela necessidade de informar; a segunda, material que se caracteriza pela possibilidade de participação e a terceira, constitucional, identificada pelo Direito de influenciar.[22]
A garantia constitucional do Contraditório não mais pode ser entendida como a mera possibilidade das partes se manifestarem nos autos de um processo judicial. É preciso ir além. Já não cabe mais a figura do juiz hércules na concepção dworkiana.[23]
Se faz necessária a participação e o exercício do poder de influência dos sujeitos processuais na construção da motivação e convencimento do magistrado, não podendo as partes serem surpreendidas por decisões baseadas em argumentos aos quais não foram debatidos no processo judicial.
O contraditório, atualmente, tem uma dimensão maior, passando a ostentar uma noção mais ampla de contraditoriedade. Tal noção deve ser entendida como garantia de efetiva participação das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de influírem, em igualdade de condições, no convencimento do magistrado, contribuindo na descrição dos fatos, na produção de provas e no debate das questões de direito.[24]
Desse modo, compactuando com as tendências das novas legislações processuais alienígenas, como Código de Processo Civil Português, Francês e Alemão e com os princípios e garantias constitucionais de 1988[25], o Novo Código de Processo Civil, primeiro diploma processual brasileiro arquitetado em regime democrático, inovou ao incluir disposição normativa no sentido de vedar as chamadas decisões surpresa, em qualquer grau de jurisdição, ainda que aquelas sejam decisões às quais o magistrado deva decidir ex officio, necessitando sempre abrir espaço ao efetivo contraditório, onde os demais sujeitos processuais, em querendo, devem se manifestar a respeito[26][27].
Desse modo:
O contraditório passa a ser devidamente relido, a representar uma faceta evoluída e fortificada da dimensão medieval. O juiz passa a ser inserido como sujeito do contraditório, de modo a se criar uma verdadeira mesa redonda de diálogo, onde ele, juntamente com as partes, toma assento.[28]
Ademais, passaremos a analisar o desenvolvimento do contraditório a partir de suas classificações clássicas.
2.3.1 O contraditório formal
O contraditório formal, também denominado de contraditório impróprio ou ficcional, se expressa na sua forma mais tradicional e garante aos sujeitos processuais o dever de serem informados e de participar dos atos do processo.
Para Leonardo Carneiro da Cunha o Contraditório em sua noção clássica deveria compreender:
[...] a) direito de ser ouvido, b) o direito de acompanhar os atos processuais, c) o direito de produzir provas, d) o direito de ser informado regularmente dos atos praticados no processo, e) o direito à motivação das decisões, f) o direito de impugnar as decisões.[29]
Luiz Guilherme Marinoni, ao se referir a efetividade do contraditório em períodos anteriores à contemporaneidade, alerta que:
É lógico que o contraditório, no processo civil contemporâneo, tem significado completamente diverso daquele que lhe era atribuído à época do direito liberal. Nessa época, em que o Estado estava proibido de tratar de forma distinta as diferentes posições sociais e em que o próprio direito de ação era visto como o direito formal de propor uma demanda, o contraditório era visto como mera garantia de conteúdo formal. Não havia como se falar, assim, em efetividade ou em realização efetiva do contraditório, nem muito menos em obstáculos sociais capazes de impedir a participação em contraditório.[30]
Atende-se, portanto, a meras formalidades processuais, podendo as decisões não meritórias (apenas processuais) serem tomadas sem a oitiva da parte adversa, ou aquelas chamadas de decisões de ofício, que podem ou não conter caráter meritório, não possuindo a parte adversa o poder de influenciar diretamente e em todos os aspectos da formação do convencimento do magistrado.
Nos tempos hodiernos, todavia, a Constituição Federal de 1988, inclusive, garante às partes assistência judiciária, através da defensoria pública, como forma de garantir o acesso à justiça, consubstanciando-se assim, o direito à participação dos sujeitos processuais no processo. Mas somente isto não basta.
Ao tratar do tema da dimensão formal do princípio do contraditório, como mínimo conteúdo, Fredie Didier Jr. explicita que:
A garantia de participação é a dimensão formal do princípio do contraditório. Trata-se da garantia de ser ouvido, de participar do processo, de ser comunicado, poder falar no processo. Esse é o conteúdo mínimo do princípio do contraditório e concretiza a visão tradicional a respeito do tema. De acordo com esse pensamento, o órgão jurisdicional efetiva a garantia do contraditório simplesmente ao dar ensejo à ouvida da parte.[31]
Havendo apenas a garantia do Contraditório Formal, entendido assim como o conteúdo mínimo do princípio do contraditório, ou seja, apenas como o direito de ser intimado das decisões judiciais e de participar do processo, permitiria-se as chamadas decisões por emboscada, também denominadas de decisões surpresa, visto que abre espaço para que o contraditório seja exercido apenas após a decisão judicial, não possuindo as partes a possibilidade de influenciar as decisões judiciais primárias, resguardando-se somente o contraditório postecipado, ou seja, o direito de manifestação a posteriori.
Reis Friede define o contraditório formal como:
uma inconteste ficção processual, tendo em vista que o mesmo somente possui aplicação prática nas hipóteses restritivas em que o processo concerne a uma denominada jurisdição impropriamente considerada (jurisdição extensiva), desprovida de caráter material (satisfatividade inerente ao direito substantivo reclamado) e ausente de índole meritória (como nos casos relativos à tutela se segurança cautelar), permitindo, – ao reverso da regra constitucional –, que o julgador decida um incidente nitidamente processual ou um aspecto não meritório (a concessão de uma medida liminar de natureza cautelar, por exemplo) excepcionalmente inaudita altera pars, – ou seja, sem a prévia e anterior oitiva de uma das partes, ainda que condicionada a sua necessária e posterior manifestação –, constituindo-se, por consequência, em um contraditório de nítida feição processual (desprovida, pois, de conteúdo material e dotado apenas de continente formalizante) e que, embora também deva se estabelecer, em regra, a priori (observe que a concessão de liminares inaudita altera pars se caracteriza sempre como exceção), pode, em situações excepcionais, se perfazer a posteriori.[32] (Grifos Nossos)
Assim sendo, na acepção clássica do Princípio do Contraditório, ou seja, no seu caráter formal, garante-se apenas a bilateralidade da audiência, como bem definido por Nelson Nery Júnior.[33]
O Contraditório Formal, portanto, consiste em mera troca de argumentação entre partes e interessados no processo, sem que o magistrado fique totalmente vinculado às suas razões, constituindo a sentença em um produto de interpretação e convicção pessoal do magistrado[34], o que não mais deve ser aceito em um Estado Democrático de Direito, onde se exige a participação e o poder de influência como parte da efetivação da tutela jurisdicional.
2.3.2 O contraditório material
O contraditório material, ou substancial, consiste na garantia não só de informação e participação, mas no poder de influência dos sujeitos no processo.
Para Gilmar Ferreira Mendes:
Há muito vem a doutrina constitucional enfatizando que o direito de defesa não se resume a um simples direito de manifestação no processo. Efetivamente, o que o constituinte pretende assegurar – como bem anota Pontes de Miranda – é uma pretensão à tutela jurídica.[35]
Luiz Guilherme Marinoni atribui a legitimação do processo ao direito de participação, em sentido mais abrangente, também incorporando o direito de influência.[36] Acrescenta ainda que:
Se o Direito de participar é não só o direito de influir sobre o convencimento do juiz, mas também o direito de estar junto a ele ou de estar cuidando para que a atividade jurisdicional não seja arbitrária, é evidente que a participação requer a publicidade e a fundamentação, especialmente a fundamentação das decisões que considerem a lei diante dos direitos fundamentais.[37]
Fredie Didier Jr. sinaliza que não adianta permitir que a parte simplesmente participe do processo, não sendo suficiente para que se efetive o contraditório. Conclui afirmando que: “É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do órgão jurisdicional”.[38]
Por sua vez, Leonardo Carneiro da Cunha, ao se referir a participação das partes como reflexo da democracia, representada pelo princípio constitucional do contraditório, juntamente com a crítica à prática de atos imprevistos praticados pelos poder jurisdicional, leciona que:
Estado democrático não se compraz com a ideia de atos repentinos, inesperados, de qualquer dos seus órgãos, mormente daqueles destinados à aplicação do Direito. A efetiva participação dos sujeitos processuais é medida que consagra o princípio democrático, cujos fundamentos são vetores hermenêuticos para a aplicação das normas jurídicas.[39]
A garantia da efetividade da tutela jurisdicional e do processo civil como um todo está intrinsicamente umbilicada à garantia constitucional do contraditório em seu aspecto substancial.
Tal noção deve ser entendida como garantia de efetiva participação das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de influírem, em igualdade de condições, no convencimento do magistrado, contribuindo na descrição dos fatos, na produção de provas e no debate das questões de direito.[40]
Na visão de Marcelo Veiga Franco o respeito ao princípio do efetivo contraditório, considerando o direito de informação, de participação, além do poder de influenciar nos provimentos jurisdicionais, desestimularia a propositura de novas demandas recursais, ou no mínimo, reduziria a possibilidade de haver, no pronunciamento jurisdicional, error in procedendo ou error in iudicando, resultando, por conseguinte, na diminuição da possibilidade do cabimento de recursos, deixando as partes mais satisfeitas com o resultado do processo, contribuindo para uma maior efetividade do provimento jurisdicional.[41]
Assim sendo, a garantia do contraditório efetivo resultaria numa maior valorização da primeira instância, tendo por consequência uma maior satisfação das partes com as decisões de mérito proferidas pelo juízo de primeiro grau em detrimento das decisões terminativas, desestimulando a interposição de recursos e, consequentemente, contribuindo para a efetividade do processo jurisdicional, prestigiando-se, assim, os princípios da efetividade e da duração razoável do processo.
Ao interpretar o dever de diálogo, inerente ao princípio do efetivo contraditório, Eduardo Madruga e Rinaldo Mouzalas apontam que:
[...] o aspecto preventivo do dever diálogo viabiliza às partes o poder de influenciar o trajeto decisório a ser trilhado pelo julgador, a gerar um efeito saudável ao processo que seria a propensão da parte em não recorrer, em razão da sua participação efetiva na formação da decisão, que foi submetida a um alto grau de debate e de correção.
Nessa quadra, ganha ênfase a valorização da função jurisdicional exercida em primeiro grau, pois quando as questões a serem inseridas pelo juiz são postas todas em contraditório antes da decisão, viabiliza-se a antecipação do embate de argumentos que, provavelmente, seria realizado por meio de recursos.[42]
Desse modo, concluímos que o princípio do contraditório, compreendido em seu aspecto substancial ou material, deve ser garantido para que se obtenha, em tempo razoável, uma decisão justa e efetiva pelo órgão jurisdicional.
2.4 O CONTRADITÓRIO NO CÓDIGO PROCESSUAL CIVIL DE 1973
O Código Processual Civil brasileiro de 1973 (Lei 5.869/73), erigido sob a Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, ou seja, durante o regime ditatorial militar, não fez nenhuma menção direta à garantia do Contraditório.
Isso demonstra o caráter estritamente técnico do código processual anterior, onde o magistrado dispunha de maiores poderes, ou melhor, concentrava maiores poderes. Por exemplo, dispunha o Código de Processo Civil de 1973 que:
Art. 131. O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na decisão, os motivos que lhe formaram o convencimento.[43] (Grifos Nossos)
Ora! Se o magistrado podia fundamentar sua decisão em fatos pelos quais não foram alegados pelas partes, logo poderia fundamentar sua decisão sem o devido respeito ao Princípio do Efetivo Contraditório, não tendo as partes a garantia de influir no convencimento do julgador.[44]
O artigo 10 do Novo Código de Processo Civil, por sua vez, desautoriza ao magistrado que tome decisões com base em argumentos pelos quais não foram dados à oportunidade das partes se manifestarem.
2.5 O CONTRADITÓRIO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015
Diametralmente oposto ao Código de Processo Civil de 1973, o Código de Processo de 2015 fora alicerçado sob a égide da Constituição Federal de 1988, sendo a primeira legislação processual brasileira inteiramente constituída em período democrático.
Inteiramente influenciado pelo Estado Democrático de Direito, fundamentado na carta magna garantística de 1988, o novel diploma processualista positivou e ampliou os Princípios Constitucionais do Contraditório, da Cooperação e da Efetividade, de modo a garantir a efetiva participação dos sujeitos processuais para a construção de um processo pautado na boa-fé processual com o fito de desenvolver um processo justo e democrático.
Dedicou-se no Livro I, o Título Único (Das normas fundamentais e da aplicação das normas processuais) e todo o Primeiro Capítulo (compreendido entre o art. 1º e o 12º) em estabelecer as normas fundamentais do processo civil.
Dispõe o novo diploma processual civil que:
Art. 7º É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.[45]
Conforme explanado acima, o legislador de 2015 preocupou-se em garantir a paridade de tratamento aos litigantes com os devidos direitos à informação, participação e influência e não só o contraditório na sua acepção clássica, ou seja, o contraditório formal.
Fez-se necessário a positivação dos princípios do efetivo contraditório e da cooperação de maneira a estimular a transformação da mentalidade dos operadores do Direito no Brasil, de modo a acompanhar as tendências do Direito europeu ocidental.
Deste modo, o Novo Código de Processo Civil dispões que o juiz não pode decidir em grau algum de jurisdição sem que seja dada oportunidade prévia das partes se manifestarem. Senão, vejamos:
Art. 10º: O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.[46]
Assim, o Código de Processo Civil brasileiro deu um grande salto ao vedar as denominadas decisões surpresa. Garante-se com isto o Efetivo Contraditório, colocando as partes em igualdade de condições, podendo estas influir no convencimento do magistrado o que na legislação processual anterior não era garantido, apesar muito discutido na doutrina e na jurisprudência.
O plenário do Supremo Tribunal Federal, acompanhando o voto proferido pelo relator ministro Gilmar Mendes, no julgamento do Mandado de Segurança de nº 24.268, decidiu que à prestação à tutela jurídica justa e efetiva envolveria não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito das partes verem seus argumentos contemplados pelos órgão jurisdicional.[47]
Abaixo, segue o trecho do voto proferido pelo relator Ministro Gilmar Ferreira Mendes:
Sobre o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador (Recht auf Berücksichtigung), que corresponde, obviamente, ao dever do juiz ou da Administração de a eles conferir atenção (Beachtenspflicht), pode-se afirmar que envolve não só o dever de tomar conhecimento (Kenntnisanhmepflicht), como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungpflicht).[48]
A igualdade garantida pelo princípio do contraditório efetiva deve ser entendida também como a isonomia de influência no convencimento do julgador. Nas palavras de Leonardo Carneiro da Cunha:
Às partes deve-se conferir oportunidade de, em igualdade de condições, participar do convencimento do juiz. O contraditório guarda estreita relação com o princípio da isonomia, exatamente porque as partes deve dispor da possibilidade de expor suas versões, apresentar suas defesas e participar, enfim, do processo em idênticas oportunidades.[49]
De igual modo, Fredie Didier Júnior entende que:
A igualdade processual revela-se na “paridade de armas (para usar uma expressão clássica, que denota uma preocupação com a igualdade formal) e no “equilíbrio processual”. Em suma, é preciso que as partes possam exercer o contraditório em condições iguais.[50]
Destarte, entendemos que a mudança conceitual do princípio do contraditório no direito processual civil brasileiro, notadamente com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil representa considerável avanço no tratamento do juiz e das partes dentro de um processo democrático que preza pela boa-fé processual e pela colaboração dos sujeitos processuais.
Assim, se faz necessário o estudo do Princípio da Cooperação, juntamente com o Princípio do Contraditório Efetivo, de modo a justificar a vedação de julgamento sem a oitiva das partes, ainda que se trate de matéria pela qual o juiz deva conhecer ex officio, conforme o disposto no polêmico artigo 10 do Novo Código de Processo Civil brasileiro.
3 O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
O Princípio da Cooperação apesar de não contido expressamente no Código de Processo Civil de 1973, já era fortemente reconhecido pela doutrina e jurisprudência pátria.
O Código de Processo Civil brasileiro de 2015, profundamente influenciado pelas legislações processuais europeias, em especial a portuguesa, trouxe o Princípio da Cooperação como um dos fundamentos do Processo Civil, o que podemos extrair de seu art. 6º.[51]
O Princípio da Cooperação exige a participação cooperativa das partes junto com o magistrado, em relação de igualdade, de forma a construir verdadeira comunidade de trabalho, de modo a garantir a efetivação do Princípio do Contraditório, tendo as partes a garantia de influenciar no convencimento e do julgador.
A positivação do Princípio da Cooperação representa, sobretudo, uma virada conceitual sobre qual papel as partes e o magistrado devem exercer dentro do Processo Judicial. Notadamente, representa os reflexos da constitucionalização do Processo Civil e a garantia de um Processo mais democrático e equânime.
Um processo cooperativo é especialmente um processo pautado na igualdade de tratamento, lealdade e boa-fé entre os sujeitos processuais com a finalidade de se aproximar ao máximo da verdade real, devendo o magistrado deixar de exercer um papel centralizador, não mais cabendo a concepção de processo como um duelo entre as partes para exercer um papel sem protagonismos.[52] “A decisão então, deixa de ser um produto solitário do juiz, sendo construída mediante o diálogo entre os sujeitos do processo.”[53]
Para Fredie Didier Jr., a decisão judicial:
[...] é fruto da atividade processual em cooperação, é resultado das discussões travadas ao longo de todo o arco do procedimento; a atividade cognitiva é compartilhada, mas a decisão é manifestação do poder, que é exclusivo do órgão jurisdicional, e não pode ser minimizado. Neste momento, revela-se a necessária assimetria entre as posições das partes e a do órgão jurisdicional: a decisão jurisdicional é essencialmente um ato de poder. Em um processo autoritário/inquisitorial, há essa assimetria também na condução do processo.[54]
Contudo, não podemos idealizar que um processo civil cooperativo exige que as partes devam colaborar entre si, tendo em vista que as partes possuem interesses conflitantes. Para Daniel Mitidiero:
O papel do juiz na condução do processo é alterado no modelo cooperativo. As partes, porém, não tem deveres recíprocos por força da colaboração. Ação e defesa são posições antagônicas que denotam diferentes interesses diante da causa. O conflito existente entre as partes impede que se estruture um processo civil a partir de deveres cooperativos entre as partes – como parece sugerir o art. 6.º do CPC/2015. Essa é a razão pela qual quem está gravado pelo dever de cooperar na condução do processo é o juiz. As partes não têm o dever de colaborar entre si.[55]
Nas palavras de Daniel Mitidiero, o princípio da cooperação não exige das partes uma colaboração para com a outra. O que se exige é o tratamento cooperativo das partes com o magistrado. Senão, vejamos:
No processo civil não há interesse comum do ponto de vista substancial entre as partes: cada uma quer perseguir o seu próprio interesse. E é por essa razão que a colaboração esperada pela ordem jurídica no processo civil é do juiz para com as partes – e jamais das partes entre si. Essa colaboração não está fundamentada na boa-fé. Os deveres cooperativos no âmbito do processo civil não decorrem da boa-fé: decorrem da necessidade de revisitar a divisão do trabalho entre o juiz e as partes por força da natureza interpretativa do direito e da necessidade de prestação de tutela ao direito mediante decisão de mérito justa e efetiva. A colaboração – e os deveres cooperativos – no âmbito do processo civil decorrem da necessidade de equilibrada participação do juiz e das partes no processo por força da alteração do conceito de direito e do caráter instrumental do processo.[56]
A mudança conceitual da visão do processo civil, com ênfase na influência do Princípio da Cooperação vai influir diretamente na vedação das decisões-surpresa, objeto do presente estudo, visto que como os sujeitos processuais devem cooperar entre si, devendo o magistrado garantir a paridade de armas a partir de um processo dialético e argumentativo. Necessita-se sobretudo que as partes não sejam surpreendidas com decisões por emboscada, ainda que relativas à matérias pelas quais o julgador deva decidir de ofício, ou seja, sem a provocação das partes.
Para Daniel Mitidiero, a finalidade da cooperação, como princípio:
[...] está em servir de elemento para organização de processo justo idôneo a alcançar, “em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” (art. 6.º do CPC/2015). Isso significa desde logo encarar o diálogo como ferramenta essencial para condução do processo, evitar o desperdício da atividade processual, preferir decisões de mérito em detrimento de decisões processuais para o conflito, apurar a verdade das alegações das partes a fim de que se possa bem aplicar o direito e empregar as técnicas executivas adequadas para a realização dos direitos.[57]
Para Ravi Peixoto o Princípio da Cooperação exige que o magistrado saia de uma posição assimétrica em relação às partes para que estabeleça um diálogo de forma equiparada, de modo a formar uma verdadeira comunidade de trabalho.[58]
Assim, o Princípio da Cooperação:
[...] advém de uma releitura do princípio do contraditório, a partir da constitucionalização do processo, retirando o magistrado, na condução do processo, de uma posição assimétrica em relação às partes para equipará-los, devendo haver um diálogo, uma comunidade de trabalho entre as partes e o magistrado para a obtenção de uma decisão adequada e mais condizente com uma democracia participativa.[59]
Fredie Didier Júnior explica que o Processo Cooperativo trata-se de um terceiro modelo de processo na civilização ocidental, em contraposição ao modelo inquisitorial e ao modelo adversarial.[60] Segundo ele:
[...] o modelo adversarial assume a forma de competição ou disputa, desenvolvendo-se como um conflito entre dois adversários diante de um órgão jurisdicional relativamente passivo, cuja principal função é decidir o caso. O modelo inquisitorial (não adversarial) organiza-se como uma pesquisa oficial, sendo o órgão jurisdicional o grande protagonista do processo. No primeiro sistema, a maior parte da atividade processual é desenvolvida pelas partes; no segundo, cabe ao órgão judicial esse protagonismo.[61]
Arremata afirmando que o modelo cooperativo:
[...] caracteriza-se pelo redimensionamento do princípio do contraditório, com a inclusão do órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual, e não mais como um mero espectador do duelo das partes. O contraditório é valorizado como instrumento indispensável ao aprimoramento da decisão judicial, e não apenas como uma regra formal que deve ser observada para que a decisão seja válida.[62]
Para Mitidiero, o processo no modelo cooperativo parte da ideia de que o Estado:
[...] tem como dever primordial propiciar condições para organização de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3.º, I, da CF/1988), fundado que está na dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF/1988). Indivíduo, sociedade civil e Estado acabam por ocupar assim posições coordenadas – o que dá lugar a uma relação de cooperação. O direito aplicável é um direito alimentado por parâmetros de racionalidade oriundos da lógica argumentativa. O contraditório recupera um papel de destaque na construção da organização do processo, gravando todos os seus participantes (arts. 7.º, 9.º, 10 e 489, § 1.º, IV, do CPC/2015). Com o redimensionamento do papel do juiz e das partes a partir da necessidade de equilibrada participação, o juiz tem o seu papel redesenhado, assumindo uma dupla posição: paritário no diálogo e assimétrico na decisão (arts. 9.º, 10, 139 e 489, § 1.º, IV, do CPC/2015). A condução do processo civil a partir daí é gravada por deveres cooperativos – esclarecimento, diálogo, prevenção e auxílio. A boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva têm que ser observadas por todos os seus participantes (art. 5.º do CPC/2015). A verdade provável é um objetivo cujo alcance permite a prolação de decisões justas (arts. 300 e 369 do CPC/2015), sendo, portanto, tarefa conjunta do juiz e das partes (arts. 369 e 370 do CPC/2015), na medida de seus interesses, persegui-la.[63]
Mitidiero, em sua obra sobre a colaboração no Processo Civil, aponta que o modelo cooperativo conserva tanto traços do modelo dispositivo como do modelo inquisitivo, como por exemplo, a possibilidade de formalização do julgamento pela aplicação das regras que regem o ônus da prova e a possibilidade de instrução de ofício pelo juiz.[64]
Assim, o magistrado ocupa um duplo papel, uma dupla posição. Paritário no diálogo e assimétrico na decisão, visando sempre alcançar um ponto de equilíbrio na organização do processo, desaguando numa verdadeira comunidade de trabalho.[65]
3.1 DEVERES DECORRENTES DO PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Os deveres inerentes ao modelo cooperativo e aos fins objetivados pelo princípio da cooperação pautam todo o procedimento comum do Novo Código de Processo Civil, efetivamente amarrando e informando todo o processo, objetivando a prestação da tutela jurisdicional.[66]
Do Princípio da Cooperação podemos extrair algumas obrigações a ele inerentes, onde destacamos os deveres de: a) esclarecimento; b) lealdade; c) proteção; d) consulta.
3.1.1 Dever de esclarecimento
Entende-se por dever de esclarecimento a obrigação imposta ao juízo e às partes de sempre buscar o esclarecimento das dúvidas aos sujeitos processuais, seja relativamente às suas alegações, às suas posições em juízo ou até mesmo quanto ao seu pedido.[67]
Em sua mais perfeita forma, o dever de esclarecimento se encontra disposto no artigo 357 do Código de Processo Civil:
Art. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo:
I - resolver as questões processuais pendentes, se houver;
II - delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos;
III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373;
IV - delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito;
V - designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento.
§ 1o Realizado o saneamento, as partes têm o direito de pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 5 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável.
[...]
§ 3o Se a causa apresentar complexidade em matéria de fato ou de direito, deverá o juiz designar audiência para que o saneamento seja feito em cooperação com as partes, oportunidade em que o juiz, se for o caso, convidará as partes a integrar ou esclarecer suas alegações. (Grifos nossos) [...][68]
Verifica-se que o artigo 331 do Código de Processo Civil de 1973, ao tratar do saneamento do processo, não possuía nenhuma disposição no sentido de dar oportunidade às partes, em cooperação com o magistrado, de sanear o processo, tratando-se de ato unilateral do julgador.
O Código de Processo Civil de 2015, por sua vez, permite que as partes solicitem esclarecimentos e solicite ajustes ao magistrado, que somente considerará saneado o processo após findo o prazo de 5 dias, contados da data da ciência das partes do despacho por ele proferido.
Ainda, em sendo o caso de maior complexidade da matéria de fato e de direito, o magistrado pode realizar audiência para que, em cooperação com as partes, possam elas integrar ou esclarecer as suas alegações.
Busca-se com o dever de esclarecimento evitar, por exemplo, o indeferimento da petição inicial sem o julgamento do mérito, privilegiando o dever de consulta, o que resultará, a grosso modo, no privilégio dos princípios da economia processual e da duração razoável do processo.
Ao tratar da relação entre o indeferimento da petição inicial e o Princípio da Cooperação, esclarece Daniel Mitidiero que:
[...] se legitima o indeferimento da petição inicial após o juiz ter dialogado com a parte a respeito do problema por ele verificado (dever de diálogo), determinando a emenda da petição inicial (art. 321 do CPC/2015), inclusive indicando precisamente o que deve ser esclarecido pela parte (dever de indicação e dever de esclarecimento). A paridade na condução do processo pelo juiz está justamente em que esse dialoga a respeito da sua visão do material do processo com o demandante antes de decidir assimetricamente.[69]
Assim, só se legitima o indeferimento de uma petição inicial, por exemplo, se o juiz tiver dialogado com a parte, devendo determinar a emenda da petição inicial, inclusive, determinando a transcrição do que merece ser esclarecido.
De igual modo, em observância ao Princípio da Cooperação e ao Princípio da Primazia das Decisões de Mérito, o artigo 932 do Novo Código de Processo Civil impõe ao relator, antes de considerar inadmissível o recurso, a obrigação de conceder o prazo de cinco dias para que a parte recorrente sane o vício ou complemente a documentação exigível.
“Art. 932. Incumbe ao relator: [...] Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.”[70]
De bom grado igualmente é a disposição normativa extraída do § 4º do artigo 1.007 do Código Processual de 2015 que, prestigiando o Princípio da Primazia das Decisões de Mérito e o dever de esclarecimento, extraído do Princípio da Cooperação, deixa de considerar imediatamente deserto o recurso por falta de preparo da parte recorrente, devendo a mesma efetuar o pagamento, em dobro no prazo de cinco dias.[71]
Os §§2º e 7º do artigo 1.007 do Novo diploma processual também acompanha a tendência, não implicando em imediata deserção, ao contrário do código processual anterior, o recurso interposto com insuficiência no valor do preparo ou equívoco no preenchimento da guia de custas, cabendo sempre ao relator intimar a parte, na pessoa de seu advogado, para sanar o vício no prazo de cinco dias.[72]
Além do mais, o dever de esclarecimento não se restringe apenas ao dever de consulta stricto sensu do magistrado às partes mas também ao esclarecimento de seus pronunciamentos às partes.[73]
3.1.2 Dever de lealdade
O dever de lealdade está relacionado com a boa-fé processual, devendo as partes agir de acordo com a ética, jamais devendo litigar de má-fé, podendo ser punidas, conforme extraímos diversas disposições normativas do novo diploma processual.[74]
Conforme se depreende do texto normativo do NCPC podemos concluir que os deveres da cooperação não estão somente expressos no art. 6º do novo código, estando distribuídos por todo código processual de 2015.
Desse modo, a cooperação processual “não pode ser confundida com um slogan arrolado pelo legislador a título de norma fundamental do novo processo civil – ela efetivamente informa e enfeixa todo o processo objetivando a prestação da tutela dos direitos.”[75]
3.1.3 Dever de proteção
Por dever de proteção, também denominado de dever de prevenção, entende-se que as partes não podem causar danos à outra, sob pena de responder por eventuais perdas e danos.[76]
Também pelo dever de proteção, cabe ao magistrado apontar as deficiências das postulações das partes, podendo serem supridas. Daqui se extrai o dever de prevenção, que consiste numa variante do dever de proteção.[77]
Podemos extrair, como exemplo, o artigo 932, parágrafo único do novo diploma processual que preceitua que: “Art. 932. Incumbe ao relator: [...] Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.”[78]
Assim sendo, Ravi Peixoto ao tratar do dever de prevenção, define que consiste no dever do magistrado:
[...] informar às partes sobre a possibilidade de frustação dos pedidos pelo uso inadequado do processo. Segundo Lucio Grassi, são quatro as áreas fundamentais de manifestação deste dever: "a explicitação de pedidos pouco claros, o caráter lacunar da exposição dos fatos relevantes, a necessidade de adequar o pedido formulado à situação concreta e a sugestão de uma certa atuação" pela parte.[79]
Assim, podemos concluir que preferiu o legislador privilegiar as decisões de mérito em detrimento das decisões terminativas, por força do dever de prevenção e de esclarecimento, decorrentes do princípio da cooperação.
3.1.4 Dever de consulta
O dever de consulta resultante do Princípio da Cooperação pode ser extraído especialmente do artigo 10 do NCPC:
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.[80]
Tema polêmico, este dever trata-se de uma variante processual do dever de informar, sendo um aspecto do dever de esclarecimento, lato sensu.[81] Para Fredie Didier Júnior, o dever de consulta resulta justamente na vedação às decisões por emboscada. Senão, vejamos:
Exigir-se que o pronunciamento jurisdicional tenha apoio tão somente em elementos sobre os quais as partes tenham tido a oportunidade de manifestarem-se significa evitar a decisão-surpresa no processo. Nesse sentido, têm as partes de se pronunciar, previamente à tomada de decisão, tanto a respeito do que se convencionou chamar questões de fato, questões de direito e questões mistas como no que atine à eventual visão jurídica do órgão jurisdicional diversa daquela aportada por essas ao processo. Fora daí há evidente violação à cooperação e ao diálogo no processo, com afronta inequívoca ao dever judicial de consulta e ao contraditório.[82]
Talvez o dever de consulta e a vedação das decisões surpresa seja a implicação mais polêmica resultante do Princípio da Cooperação, entendida como modelo de processo e de procedimento, o que será objeto de aprofundamento mais adiante.
4 AS MATÉRIAS DE ORDEM PÚBLICA
Apesar do termo “matéria de ordem pública” ser bastante experimentado pela técnica legislativa e pelos aplicadores do direito pátrio, resta imperativo reconhecermos que o tema é pouco abordado pela doutrina brasileira. Não raras vezes encontramos significações do termo “matéria de ordem pública” atreladas ao poder de conhecimento ex officio. Todavia, apesar de terem bastante proximidade, tratam-se de conceitos distintos.
Ao referir-se à ordem pública, Barroso afirma que:
O conceito é antigo e de trânsito internacional. Trata-se de uma cláusula geral, de conteúdo elástico e variável, que tem levado os autores a se referirem a ela como um conceito indeterminado a priori, e mesmo indefinível. Não obstante, é possível identificar a ordem pública como um princípio geral de preservação de valores jurídicos, morais e econômicos de determinada sociedade política.[83]
A ordem pública, portanto, trata-se de um conceito jurídico indeterminado, tendo, contudo, sua noção construída a parir da evolução constitucional.[84]
Seria um conjunto de princípios recheados de valores que devem ser preservados pelo poder público com o fito de resguardar, principalmente, os direitos e garantias constitucionais, equilibrando o bem estar social, resultando em garantia da segurança jurídica.
Trícia Navarro aponta que a ordem pública pode ser avaliada das mais diversas formas, seja como um metavalor, um princípio, como uma técnica ou até mesmo como uma instituição, podendo estar relacionada com o Estado de Direito, com os interesses gerais da sociedade, com as mudanças legislativas ou ao tipo de ramo do direito e/ou sua evolução, dentre outras.[85]
Arremata conceituando a Ordem Pública:
[...] como sendo um estado de coisa fundamental à estabilização das relações humanas e que imprime a sensação de segurança e de controle das relações sociais pelo Estado, por meio de regras de obediência que devem ser observadas por todos, sendo, pois, imprescindível à legitimidade e à legitimação do poder estatal. Como se vê, a ordem pública que qualifica esse estado de coisas possui conteúdo constitucional.[86]
Julgamos que a principal característica das matérias de ordem pública seja a de controlar qualquer ato que macule a estabilidade, a regularidade e a previsibilidade jurídicas de forma a ensejar as consequências previstas no ordenamento jurídico, protegendo a integridade e regularidade dos atos.[87] Esta seria, portanto, a mais admirável característica da “ordem pública processual”.
4.1 A ORDEM PÚBLICA PROCESSUAL
Por ordem pública processual, entendemos ser um estado de coisas de natureza constitucional[88], com o fito de garantir o interesse público, de forma a mitigar a autonomia da vontade, assumindo o magistrado o poder de intervenção restritiva às liberdades públicas[89], o que justifica que a autoridade jurisdicional decida questões sem a provocação da partes,[90] controlando a regularidade e o desenvolvimento de atos e procedimentos.[91]
Para Ricardo de Carvalho Aprigliano “a ordem pública processual só pode ser interpretada como um conjunto de técnicas voltadas ao tempestivo controle sobre a viabilidade do processo.”[92]
Uma eventual extinção do processo, sem resolução do mérito, seria uma exceção decorrente da infringência grave a outras normas previamente estabelecidas, e sem que se tenha conseguido o saneamento pelos métodos de instrumentalidade do processo civil.[93]
Assim sendo, só deverá haver extinção anômala do processo, caso não haja a possibilidade de saneamento do vício. Portanto, sempre deverá ser aberta a possibilidade de manifestação de ambas as partes, mesmo que se trate de matéria de ordem pública pela qual o juiz deva decidir de ofício.
Em que pese o Princípio do Iura Novit Curia, o magistrado também está sujeito a equívocos. No Estado Democrático de Direito o papel do magistrado não deve ser o de concentrar o poder institucional atuando como um “juiz hércules” – na visão dworkiana – em detrimento da cooperação processual.
O ‘controle sobre a regularidade do processo’ que a ordem pública é chamada a realizar não é exercitado sem razão, ou apenas pelo controle em si. Ele existe porque de tal controle se retira a efetiva possibilidade de se cumprirem realmente os objetivos da atividade jurisdicional, que é a de resolver litígios e obter pacificação, da forma mais rápida e econômica possível. [94] (Grifos Nossos)
Destarte, a função do magistrado é, sobretudo, a de um espectador/mediador, que a partir da lógica do Princípio da Cooperação, como uma verdadeira comunidade de trabalho voltada à busca da verdade real possível, deve atingir as finalidades do bem jurídico tutelado a partir do procedimento judicial equânime e com a finalidade de privilegiar as decisões de mérito em detrimento das decisões surpresa.
“Se a ordem pública, quando reconhecida, tem sido causa da extinção dos processos sem resolução do mérito, ou de retrocessos em seu desenvolvimento, obtêm-se resultados francamente contraditórios.”[95]
Há um grande equívoco em considerar que as questões de ordem pública são de tal modo relevantes para o sistema que justificam a extinção excepcional dos processos, sem exame de relação material, em toda e qualquer situação. Tal modo de ver a função da ordem pública revela a contradição entre a sua finalidade precípua e a forma como vem sendo aplicada aos processos em geral. A ordem pública processual compreende o conjunto de regras técnicas que o sistema concebe para o controle da regularidade do processo, ou seja, para salvar os processos, permitir que sejam conduzidos ao julgamento do mérito.[96]
Assim sendo, há de se levar em consideração algumas possibilidades de conhecimento de matéria de ordem pública pelo magistrado dentro da esfera processual.
4.1.1 Condições da ação
As Condições da Ação, categoria desenvolvida a partir das lições de autores italianos, em especial Enrico Tulio Liebman[97], sendo um conceito bastante difundida pela doutrina brasileira e pelo legislador de 1973, seria uma questão relacionada a um dos elementos da ação, estando em uma zona intermediária entre as questões de mérito e as questões de admissibilidade.[98] Dentre as condições da Ação estavam no Código Processual de 1973 a legitimidade das partes, o interesse processual e a possibilidade jurídica do pedido.
Fruto de bastante divergência na doutrina processual brasileira, as condições da ação passaram a estar omissas no novel diploma processual, sendo a legitimidade ordinária e a possibilidade jurídica do pedido tratada como uma questão de improcedência liminar do pedido e o interesse de agir passou a ser considerado como um pressuposto processual.
Para todos os efeitos, assim como os pressupostos processuais, as condições da ação são matérias de ordem pública que podem e devem ser conhecidas de ofício pelo magistrado. Não obstante, na óptica de Aprigliano:
Nestas circunstâncias, deixa de ser recomendado este tipo de julgamento para que possa ter lugar o adequado julgamento do mérito da causa, capaz de produzir coisa julgada material, resolver a crise de direito material trazida ao Judiciário e, acima de tudo, de proporcionar a pacificação.[99]
Todavia, a tendência é que não mais se utilize a expressão “condições da ação”, devendo a legitimidade das partes e o interesse processual serem estudados dentro dos pressupostos processuais, motivo pelo qual o tema não merece maiores delongas.
4.1.2 Pressupostos processuais
Para que a relação jurídica processual seja formada de forma a estabelecer um processo legítimo e seguro é necessário que se preencham os requisitos mínimos para que seja dada a correta marcha rumo ao devido processo legal.
“Os pressupostos processuais são todos os elementos de existência, os requisitos de validade e as condições de eficácia do procedimento, que é ato-complexo de formação sucessiva [...]”[100], de modo que na ausência de algum dos pressupostos processuais, o processo ficará maculado, gerando consequências que vão desde o indeferimento da petição inicial ou até mesmo a sua extinção prematura.[101]
Para Trícia Navarro os pressupostos processuais:
[...] embora possuam inevitável relevância como garantia de interesses do Estado e também das partes, e que por isso são considerados questões de ordem pública, não devem constituir obstáculos capazes de se sobrepor à relevância do próprio processo, sendo, pois, meio, e não fim.[102]
Ricardo de Carvalho Aprigliano aponta que parece um tanto quanto ilusória a aparência de que ao juiz se impõe o controle absoluto das matérias de ordem pública, como os pressupostos processuais, onde o mérito jamais poderia ser examinado se lhe faltasse alguns deles.[103]
Assim, em obediência ao princípio da cooperação, antes de proceder com a imediata extinção do processo sem resolução do mérito ou com a improcedência liminar do pedido deve o magistrado proceder à oitiva das partes com a finalidade de sanar os vícios processuais, quando possíveis ou até mesmo esclarecer alguma questão inerente ao preenchimento dos requisitos.
Os pressupostos processuais costumam ser classificados como de (i) existência e validade; (ii) objetivos e subjetivos e; (iii) positivos e negativos.[104] Podem se relacionar com o ato, com o procedimento ou com o recurso e são geralmente identificados na doutrina como investidura, competência, imparcialidade, capacidade de ser parte, capacidade de estar em juízo e capacidade postulatória, petição inicial apta, citação válida e regularidade do procedimento, litispendência, perempção, coisa julgada e compromisso arbitral.[105]
Trícia Navarro divide os pressupostos processuais como sendo de (i) questões de ordem pública; (ii) questões de interesse público.
4.1.2.1 Pressupostos processuais como questões de ordem pública
Há pressupostos processuais que são de tão elevado interesse público que são totalmente indisponíveis pelos sujeitos processuais, o que merece maior proteção e um tratamento diferenciado pelo Estado.[106]
São exemplos desses pressupostos processuais o (i) Existência de órgão investido de Jurisdição; (ii) Impedimento do magistrado.
O primeiro significa que deve existir um juiz investido no cargo e que se encontre efetivo exercício, não podendo estar de licença, de férias, aposentado, ou em qualquer forma de afastamento. [107]
Considerado por boa parte da doutrina como pressuposto processual de existência do processo[108], a falta dele gera a nulidade de todo o processo[109], não devendo nenhum ato processual ser considerado válido.
Já o segundo se refere a imparcialidade e independência do juiz. Sabe-se que são direitos fundamentais do processo a existência de um juiz que conduza o processo de maneira imparcial e independente.[110]
Desse modo, o impedimento é matéria de ordem pública que enseja nulidade absoluta do processo, podendo ser alegada a qualquer tempo e grau de jurisdição, podendo, inclusive, ser objeto de Ação Rescisória.
Conforme dispositivo extraído da Lei 13.105/15: “Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: [...] II - for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente; [...]” [111]
Destarte, conforme exposto acima, são defeitos agudos, tratando-se de vício insanável, o que justifica o tratamento diferenciado dentro do sistema processual civil brasileiro.
4.1.2.2 Pressupostos processuais de interesse público
A maior parte dos pressupostos processuais são de interesse público, podendo existir em diversos graus. Embora essas questões sejam essenciais para o desenvolvimento de um processo equânime, não são indisponíveis como os pressupostos processuais de questões de ordem pública estrito senso.[112]
Os pressupostos processuais de interesse público podem gerar diversos efeitos. Todavia, “[...] as questões de interesse público devem ser avaliadas concretamente, uma vez que seus efeitos processuais dependerão do tipo de vício e da extensão do prejuízo que são capazes de causar”.[113]
Ademais, a maior parte das questões de interesse público estão sujeitas a preclusão, visto que não são tão agudas quanto as questões de ordem pública estrito senso.
São exemplos de questões de interesse público a (i) Citação; (ii) Capacidade de estar em juízo; (iii) Capacidade postulatória; (iv) Legitimidade extraordinária; (v) Litisconsórcio necessário; (vi) Litispendência, perempção e coisa julgada.
4.1.3 Nulidades processuais
Há casos em que os vícios são de tão elevado nível que não podem ser supridos, justificando a verdadeira ordem pública capaz de ser arguida a qualquer tempo e grau de jurisdição, podendo ensejar desde o indeferimento da petição inicial até a extinção anômala do feito, sem a possibilidade de superação, ou até mesmo após o trânsito em julgado, em sede de Ação Rescisória. São casos de nulidade absoluta, verbi gratia, o impedimento do juiz (quando se compromete a imparcialidade do magistrado).
Há, contudo, casos em que a nulidade pode ser conhecida de ofício, por tratar-se de matéria de ordem pública, mas que se não arguidas no momento oportuno, será caso de preclusão.[114]
O magistrado pode invalidar uma citação ex officio, até mesmo porque se trata de um vício transrescisório, mas, se o réu apresenta a sua resposta, e não se manifestar sobre isso, há preclusão da possibilidade de invalidação do procedimento por tal motivo, independentemente da verificação de ocorrência do prejuízo; (ii) o magistrado pode reconhecer ex officio a sua incompetência em razão da abusividade de uma cláusula de foro de eleição, mas somente pode fazê-lo até a ouvida do réu, sob pena de prorrogação da competência (art. 63, §§ 3º e 4º, CPC).[115]
Além do mais, também há possibilidade em que defeitos processuais que podem gerar invalidade não podem ser conhecidos de ofício. São casos em que se objetiva resguardar interesses particulares. É o caso, verbi gratia, da não alegação de convenção de arbitragem, caso em que o silêncio no primeiro momento em que cabe a parte falar nos autos gerará preclusão.[116]
Aliás, há casos em que se o ato praticado, apesar de viciado, não gerar nenhum prejuízo à parte adversa, não deverá ser repetido ou anulado. Conforme artigo 282, § 1º e 283, parágrafo único do NCPC:
Art. 282. Ao pronunciar a nulidade, o juiz declarará que atos são atingidos e ordenará as providências necessárias a fim de que sejam repetidos ou retificados.
§1º O ato não será repetido nem sua falta será suprida quando não prejudicar a parte.
[...]
Art. 283. O erro de forma do processo acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo ser praticados os que forem necessários a fim de se observarem as prescrições legais.
Parágrafo único. Dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados desde que não resulte prejuízo à defesa de qualquer parte.[117]
Repetiu o Novo Código de Processo Civil as disposições dos artigos 249 e 250 do Código processual de 1973, pelo qual se prestigia a economia processual, a duração razoável do processo e o princípio da finalidade.
Aliás, José Roberto Bedaque, em acertado posicionamento doutrinário expôs que:
A visão formalista, que valoriza a forma sem indagar os motivos por que o legislador a impôs, pode ser apontada como uma das principais causas da morosidade do processo, pois dela decorrem anulações desnecessárias transformando o instrumento em método ineficaz, palco propício para as burocratas do Direito desenvolverem a única atividade que conseguiram aprender: o culto à forma.[118]
Todavia, há situações em que é difícil cogitar o saneamento de alguns atos passíveis de nulidade, como as supracitadas existência de órgão investido de Jurisdição e o impedimento do magistrado para julgamento da causa. Nestes casos, a gravidade do vício é tamanho que a regra impõe a decretação de nulidade. Tais casos, por assim dizer, são exceções à regra.[119]
Desse modo, podemos concluir que, no campo das nulidades, não deve haver a automática e obrigatória decretação de nulidade pelo magistrado, mesmo quando deva agir de ofício, entre aquelas que se refiram a matérias de ordem pública.[120]
5 AS DECISÕES DE OFÍCIO
Como vimos, decidir de ofício não é sinônimo de decisão inaudita altera parte. A decisão de ofício, resultante da possibilidade de o magistrado, frente a uma matéria de ordem pública, levantar a questão, apesar de bastante confundida com decisões sem a oitiva das partes, com esta não se confunde.
Na nova sistemática processualista brasileira, só é possível a tomada de decisões de ofício sem a provocação das partes quando houver a necessidade de velar pela ordem pública. Não obstante, sempre foi assim. Todavia, o NCPC trouxe expressa vedação a tomada de decisões sem a audiência das partes, mesmo que não trate de questões meritórias ou que sejam de ordem pública.
Aliás, na legislação alienígena é comum a menção expressa a vedação de decisões de ofício sem a oitiva das partes. O artigo 183, § 2º do Código de Processo Civil italiano, verbi gratia, impõe ao juiz indicar às partes as questões de ordem pública para que só após a sua oitiva, seja proferida uma decisão. Questões como a competência absoluta, a litispendência, a capacidade processual, comparecimento de litisconsorte necessário e nulidade de citação devem ser objeto de oitiva das partes no direito italiano. De igual modo a questão é tratada na Zivilprozessordnung, onde o artigo 139 merece destaque ao tratar que as questões de direito não podem ser tratadas pelo juiz sem o prévio contraditório das partes.[121]
Fredie Didier Júnior explicita que:
Uma circunstância é o juiz poder conhecer de ofício, poder agir de ofício, sem provocação da parte. Outra circunstância, bem diferente, é poder o órgão jurisdicional agir sem ouvir previamente as partes. Poder agir de ofício é poder agir sem provocação; não é o mesmo que agir sem ouvir as partes, que não lhe é permitido.[122]
Para Daniel Amorim Assunção Neves:
Infelizmente não se percebe a diferença basilar entre decidir de ofício e decidir sem a oitiva das partes. Determinadas matérias e questões devem ser conhecidas de ofício, significando que, independentemente de serem levadas ao conhecimento do juiz pelas partes, elas devem ser enfrentadas e decididas no processo. Mas o que isso tem a ver com a ausência de oitiva das partes? Continua a ser providência de ofício o juiz levar a matéria ao processo, ouvir as partes e decidir a respeito dela. Como a surpresa das partes deve ser evitada em homenagem ao princípio do contraditório, parece que, mesmo nas matérias e questões que deva conhecer de ofício, o juiz deve intimar as partes para manifestação prévia antes de proferir sua decisão, conforme inclusive consagrado na legislação francesa e portuguesa.[123]
Ricardo de Carvalho Aprigliano indaga:
Afinal, o que é mais adequado, violar o princípio constitucional do contraditório e gerar decisão não prevista, não anunciada e que, pior, não resolve a crise de direito material trazida a juízo, ou permitir prévia manifestação, intimadas as partes em momento anterior à própria decisão, cujo convencimento não terá sido ainda integralmente formado?[124]
Assim, se faz necessária uma adequação da comunidade jurídica brasileira frente à nova perspectiva processual brasileira, notadamente a conceituação do que seriam decisões de ofício, não devendo se difundir que as decisões de ofício devem ser apreciadas sem a oitiva das partes, com a equivocada utilização da técnica das matérias de ordem pública.
6 O NOVO CPC E A VEDAÇÃO DAS DECISÕES SURPRESA
A aplicação do contraditório em seu aspecto substancial deságua no que denominamos “vedação às decisões surpresa” ou “vedação às decisões por emboscada”[125], tendo o novel código processualista brasileiro avançado a passos largos, acompanhando a tendência processualista de diversas legislações europeias, especialmente a portuguesa e alemã, devendo o contraditório estar presente em todo o procedimento, não só no momento da prolação da sentença de mérito[126].
Para José Roberto dos Santos Bedaque:
A liberdade conferida ao julgador, quanto à identificação da norma jurídica aplicável, também deve compatibilizar-se, todavia, com o princípio do contraditório. Não podem as partes ser surpreendidas com a incidência de regra não cogitada, especialmente se as consequências forem diversas daquelas submetidas à discussão.[127]
Leonardo Carneiro da Cunha arremata:
É preciso observar o contraditório, a fim de evitar um “julgamento surpresa”. E, para evitar “decisões surpresa”, toda questão submetida a julgamento deve passar antes pelo contraditório. Quer isso dizer que o juiz tem o dever de provocar, preventivamente, o contraditório das partes, ainda que se trate de uma questão que possa ser conhecida de ofício, ou de uma presunção simples. Se a questão não for submetida ao contraditório prévio, as partes serão surpreendidas com decisão que terá fundamento numa questão que não foi objeto de debate prévio, não lhes tendo sido dada oportunidade de participar do convencimento do juiz. A decisão, nesse caso, não será válida, faltando-lhe legitimidade, haja vista a ausência de participação dos litigantes na sua elaboração.[128]
Daniel Amorim Assunção Neves problematiza a ofensa ao princípio do contraditório frente ao iura novit curia, defendendo que tanto no processo coletivo como no individual, o magistrado deve proceder com a oitiva das partes mesmo quando deva decidir de ofício.[129] Afinal de contas, “infelizmente não se percebe a diferença basilar entre decidir de ofício e decidir sem a oitiva das partes”.[130]
Afinal, o que se verifica é que o termo ‘ordem pública’ se torna para os juízes e autoridades um motivo para negarem autorização para a realização de determinados atos, ou para anularem a sua realização, toda vez que julgarem serem eles incompatíveis com os princípios fundamentais do Estado, dos quais sejam órgãos do Poder.[131]
Caberia, contudo, o questionamento de que o efetivo contraditório estaria superprivilegiado frente ao princípio da duração razoável do processo, tendo em vista a argumentação de que a abertura de contraditório, até mesmo em questões não meritórias em que o juiz deva decidir de ofício, faria com que as partes praticassem atos processuais desnecessários, contribuindo para o engessamento do poder jurisdicional.
O Código Processual Português, apesar de também privilegiar o efetivo contraditório, contém expressa disposição normativa no sentido de dispensar a abertura do contraditório em caso de manifesta desnecessidade.
ARTIGO 3.º Necessidade do pedido e da contradição
1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a Ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida.
3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.[132] (Grifos nossos)
Apesar de não especificar quais seriam os casos de “manifesta desnecessidade”, segundo o jurista português António Santos Abrantes Geraldes, o contraditório pode ser dispensado para que o magistrado possa indeferir, verbi gratia, qualquer nulidade invocada por uma das partes ou, quando necessário em procedimentos cautelares com o fito de garantir o resultado útil da demanda.[133]
Para o doutrinador Carlos Alberto Álvaro de Oliveira:
[...] a necessidade de diálogo efetivo compõe o tempo fisiológico do processo – e não o seu tempo patológico. A efetividade do processo que se busca no marco teórico do processo civil no Estado Constitucional, é uma efetividade-virtuosa e não uma efetividade-perniciosa.[134]
Ocorre que apesar de razoável, a disposição normativa trata-se de um conceito jurídico indeterminado, abrindo margem a excessos, visto que se mal aplicada a norma pode favorecer o aparecimento de decisões surpresa, descaracterizando o próprio objetivo do texto da norma que visa garantir o efetivo contraditório e o direito das partes de influir no convencimento do magistrado que proferirá as decisões jurisdicionais.
Entendemos que neste caso o legislador português, ao invés de ter editado dispositivo com conceito jurídico indeterminado, deveria ter explicitado taxativamente no diploma processual as hipóteses em que seria possível a mitigação ao Princípio do Contraditório, evitando-se assim que fosse aberto espaço para tais arbitrariedades.
O código de processo civil brasileiro, por sua vez, previu no artigo 9º hipóteses em que não se privilegia o Princípio do Contraditório frente a prevalência de outro princípio constitucional, o da efetividade da tutela jurisdicional, visto que em alguns casos se aberto o contraditório em momento anterior à decisão provisória de urgência, pode-se perecer o objeto litigioso do processo.
Neste caso, deverá haver a postecipação do princípio do contraditório, sendo este ponderado pela efetividade através do postulado normativo da proporcionalidade e da razoabilidade.
Avulta, como se observa, um conflito entre a exigência constitucional do contraditório e o princípio da efetividade da tutela jurisdicional. Com efeito, tomando-se na devida conta o princípio do contraditório, deve-se conferir às partes a oportunidade de tentar contribuir com o convencimento do magistrado, trazendo argumentos e elementos que demonstrem a correção de sua tese e a necessidade de se rejeitar a pretensão da parte contrária. Por outro lado, a obediência ao contraditório não poderia chegar ao ponto de subtrair da prestação jurisdicional a efetividade garantida pelo mesmo texto constitucional, fazendo com que pereça o direito da parte, que precisa de um provimento de urgência destinado a conferir penhor e efetividade à sua postulação.[135]
Por se tratar de um tema polêmico, nalgumas vezes, em sentido diametralmente oposto, a ENFAM (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados), órgão oficial de treinamento de juiz de direito e juízos federais brasileiros, com previsão constitucional expressa pela emenda constitucional de nº 45, aprovou enunciados sobre a aplicação dos dispositivos normativos que se referem ao Efetivo Contraditório no Novo Código de Processo Civil.
Neste sentido:
1) Entende-se por “fundamento” referido no art. 10 do CPC/2015 o substrato fático que orienta o pedido, e não o enquadramento jurídico atribuído pelas partes.
2) Não ofende a regra do contraditório do art. 10 do CPC/2015, o pronunciamento jurisdicional que invoca princípio, quando a regra jurídica aplicada já debatida no curso do processo é emanação daquele princípio.
3) É desnecessário ouvir as partes quando a manifestação não puder influenciar na solução da causa.
4) Na declaração de incompetência absoluta não se aplica o disposto no art. 10, parte final, do CPC/2015.
5) Não viola o art. 10 do CPC/2015 a decisão com base em elementos de fato documentados nos autos sob o contraditório.
6) Não constitui julgamento surpresa o lastreado em fundamentos jurídicos, ainda que diversos dos apresentados pelas partes, desde que embasados em provas submetidas ao contraditório.[136]
O Item 3 refere-se ao que Daniel Amorim Assunção Neves coloca como Contraditório Inútil. Aponta o doutrinador que:
O contraditório é moldado essencialmente para a proteção das partes durante a demanda judicial, não tendo nenhum sentido que o seu desrespeito, se não gerar prejuízo à parte que seria protegida pela sua observação, gere nulidade de atos e até mesmo do processo como um todo. E nesses termos não estão incluídas no art. 9.º do NCPC hipóteses procedimentais consagradas no texto legal em que o contraditório é afastado, mas a decisão beneficia a parte que não teve oportunidade de se manifestar, tal como ocorre no julgamento liminar de improcedência consagrado no art. 332 e o indeferimento da petição inicial previsto no art. 330, ambos do Novo Código de Processo Civil.[137]
Entende o doutrinador que quando a ausência do contraditório não gerar prejuízo à parte descabe a aplicação do instituto da nulidade processual.
Entendemos que o posicionamento é assertivo, tendo em vista que no julgamento liminar de improcedência e no indeferimento da petição inicial previsto no artigo 330 do Novo Código de Processo Civil, por exemplo, além de não gerar nenhum prejuízo à parte, esta ainda estaria favorecida pelo pronunciamento jurisdicional, o que tornaria a abertura do contraditório em momento anterior, de certa forma, inútil.
Malgrado entendamos por acompanhar a assertiva do autor, não é forçoso reconhecer que se trata de uma exceção à regra geral, tendo em vista que na ampla maioria dos casos, se não houver a abertura do contraditório poderá haver prejuízo para as partes.
O item 3 do enunciado nos parece um pouco vago, impreciso. Entendemos que o intérprete deveria ter sido mais elucidativo, tendo em vista que o enunciado poderá abrir margem a arbitrariedades. Afinal, quais seriam os casos em que uma possível manifestação das partes não influiria na solução da causa?
Aliás, o artigo 9º do Código de Processo Civil dispôs os casos em que o magistrado poderá proferir decisões inaudita altera parte, ou seja, quando se tratar de tutela de urgência ou evidência e nos casos de Ação Monitória em que o direito do autor restar evidente.
O item 4 se refere a declaração de incompetência absoluta, onde entendem que a parte final do disposto no artigo 10 do Código de Processo Civil, que se refere a decisões de ofício, não se aplica ao caso.
Entendemos que, via de regra, se trata de casos de contraditório inútil, devendo-se levar em consideração, como parâmetro, a regra da kompetenzkompetenz, pela qual todo juízo é competente para julgar a sua própria incompetência.[138]
Ademais, em sendo o caso, é possível a aplicação da translatio iudicii, conforme § 3º do artigo 64 do Código de Processo Civil, onde os autos deverão ser encaminhados ao juízo competente, o que, em regra, não traria nenhum prejuízo às partes, justificando-se, portanto, a inutilidade da abertura do contraditório nesses casos.
Art. 64: A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação.
§ 1o A incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição e deve ser declarada de ofício.
[...]
§ 3º Caso a alegação de incompetência seja acolhida, os autos serão remetidos ao juízo competente.[139]
Aliás, o § 1º do artigo 64 do Código de Processo Civil subscrito, ao descrever que a incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição, além de dever ser declarada de ofício, por si só, não dá o poder ao magistrado de decidir inaudita altera parte e sim a possibilidade de abertura de contraditório inútil, visto que não trará nenhum prejuízo às partes, tratando esta de exceção à regra.
Contudo, se observarmos a possibilidade de algum prejuízo às partes e, consequentemente a inexistência de contraditório inútil, deve o magistrado ao invés de imediatamente realizar o translatio iudicii, ou extinguir o processo sem a resolução do mérito, intimar as partes para que se manifestem.
O item 5, por sua vez, nos parece um pouco incoerente, visto que se a prova foi constituída sob o manto do princípio do contraditório, a possível decisão do magistrado, com base na prova submetida a contraditório não feriria de modo algum o referido princípio.
O item 6, por sua vez, nos parece que se remete ao instituto da prova emprestada. Também concordamos ser válida a utilização das provas emprestadas, desde que submetidas ao contraditório.
O Fórum Permanente de Processualistas Civis também se manifestou a respeito dos princípios do contraditório efetivo e da cooperação processual editando alguns enunciados de súmula, pelos quais destacamos os seguintes:
70. (art. 580) Do laudo pericial que traçar a linha demarcanda, deverá ser oportunizada a manifestação das partes interessadas, em prestígio ao princípio do contraditório e da ampla defesa. (Grupo: Procedimentos Especiais) [...]
81. (art. 932, V) Por não haver prejuízo ao contraditório, é dispensável a oitiva do recorrido antes do provimento monocrático do recurso, quando a decisão recorrida: (a) indeferir a inicial; (b) indeferir liminarmente a justiça gratuita; ou (c) alterar liminarmente o valor da causa. (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo) [...]
282. (arts. 319, III e 343) Para julgar com base em enquadramento normativo diverso daquele invocado pelas partes, ao juiz cabe observar o dever de consulta, previsto no art. 10. (Grupo: Petição inicial, resposta do réu e saneamento).[140]
Conforme se depreende dos enunciados acima expostos, entenderam os processualistas, ao interpretar a disposição normativa expressa no artigos 580 do NCPC, que trata do procedimento especial de demarcação, que do laudo elaborado pelo perito que traça a linha demarcanda, após o oferecimento de defesa pelos réus, também deve ser oportunizado às partes o direito de manifestação, prestigiando-se assim, o princípio do contraditório e da ampla defesa.
Entendemos que a interpretação é acertada, visto que pelo dever de consulta e pelo princípio do contraditório efetivo, sempre que não se tratar de contraditório desnecessário, deve-se oportunizar a manifestação das partes de modo a garantir o poder de influenciar no pronunciamento jurisdicional.
Por sua vez, o enunciado normativo de nº 81 supracitado refere-se ao que Daniel Amorim Assunção Neves denomina como contraditório inútil[141], sendo totalmente justificável a desnecessidade de manifestação da parte recorrida antes do provimento monocrático do recurso que indeferir a inicial, indeferir liminarmente a justiça gratuita ou alterar liminarmente o valor da causa, tendo em vista que a decisão não traz para o recorrido nenhum prejuízo e, portanto, nenhuma ofensa ao princípio do contraditório.
O enunciado de nº 282, por sua vez, ao tratar da possibilidade de enquadramento normativo pelo magistrado ao fundamentar sua decisão pela qual não fora invocado pelas partes também merece aplausos, tendo em vista que as partes não devem ser surpreendidas com decisões pelas quais não fora oportunizado a possibilidade de manifestação.
Desse modo, pelo dever de consulta decorrente da cooperação processual, deve o magistrado oportunizar às partes o direito de manifestação acerca de questões de direito não suscitadas pelas mesmas, de modo a ter o direito de influir no convencimento do julgador.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A positivação dos princípios do Contraditório Efetivo e da Cooperação Processual no Código de Processo Civil de 2015 demonstra uma nova tendência no direito processual pátrio, acompanhando as legislações italiana, francesa, alemã e sobretudo a portuguesa.
O Princípio do Contraditório não mais deve ser visto apenas como a mera possibilidade de oitiva das partes, de serem informadas dos atos processuais. Deve, sobretudo, garantir que influam sobre o pronunciamento jurisdicional.
Desse modo, o papel do magistrado passa de um ser centralizador, o juiz hércules, para exercer a função de construção de um processo democrático dentro da cooperação processual, devendo os sujeitos processuais cooperarem entre si para que se busque sempre a busca da verdade real possível pautando-se nos princípios da probidade e boa-fé processual.
O Processo Civil, desse modo, deve ser entendido como uma verdadeira comunidade de trabalho, estando os sujeitos processuais em condições de igualdade, lealdade e respeito, com a finalidade de atingir a proteção do bem jurídico tutelado, sempre privilegiando as decisões de mérito em detrimento das decisões terminativas.
O presente trabalho ainda destinou forças a distinguir as matérias de ordem pública de decisões de ofício e decisões inaudita altera parte, que não se confundem.
Assim, ao contrário do que se imagina, o Novo Código de Processo Civil não acabou com o reconhecimento das matérias de ordem pública ex officio. Apenas deve o julgador, pautado num modelo processual cooperativo, conceder a oportunidade das partes se manifestarem.
Por conseguinte, os magistrados ainda podem e devem reconhecer as matérias de ordem pública – sejam aquelas entendidas como de questões de ordem pública ou questões de interesse público – ex officio, todavia, respeitando-se o princípio do contraditório. Este visualizado em uma nova faceta, agora combinado com a Cooperação Processual e os deveres de consulta, esclarecimento, lealdade e proteção a ela inerentes.
Ademais, por força da Cooperação Processual e do Efetivo Contraditório, deve se eliminar as denominadas decisões surpresa, como visto anteriormente, mormente aquelas em que se determine extinções anômalas dos processos o que, em sua imensa maioria, resulta em forte prejuízo às partes.
Deve o juiz, portanto, primar pelo dever de consulta, um dos pilares da cooperação processual, intimando as partes para que se manifestem, a menos que a decisão não cause nenhum prejuízo às partes, mormente aquelas em que beneficiem o réu, como no julgamento liminar de improcedência ou, no indeferimento da petição inicial, previsto no artigo 330 do Código de Processo Civil.
Desse modo, podemos concluir com bastante convicção que se não tratar de contraditório inútil, como nos casos de julgamento liminar de improcedência e indeferimento da petição inicial ou nos casos de postecipação do contraditório, notadamente nas hipóteses de concessão de tutela provisória de urgência e de evidência, as decisões por emboscada são decisões nulas.