INTRODUÇÃO
O presente desenvolveu-se com abordagem qualitativa, de caráter exploratório, utilizando-se de pesquisa bibliográfica e de normas jurídicas, e tem como objetivo precípuo a análise teórica sobre a existência de um direito postulável a respostas adequadas da jurisdição baseado nos valores incorporados ao direito brasileiro a partir da redação do artigo 926 do Código de Processo Civil (“CPC”). A esse efeito, importa estabelecer primeiramente, em linhas gerais, os fundamentos do princípio ou direito fundamental da igualdade e sua relação fundante com a coerência enquanto valor a ser incorporado na prática jurisdicional. Após, será demonstrado que, a partir da teoria dos direitos fundamentais, e da existência de mecanismos de harmonização da jurisprudência, inclusive com hipóteses de pronunciamentos vinculantes, que há, ao menos em um plano teórico, certo padrão normativo que pode ter reclamada a sua aplicação em certos casos frente ao direito fundamental à igualdade. Por derradeiro, será estabelecido um nexo entre os mecanismos de harmonização de jurisprudência e o direito à obtenção de respostas adequadas, não desconhecendo as críticas a respeito da correção material do direito.
Objetiva-se analisar a existência de uma via juridicamente tutelada pela qual o cidadão jurisdicionado, envolvido em um caso no qual se enquadra na hipótese de receber a aplicação de pronunciamento vinculante, pois relevantemente semelhante ao caso em que formulada tal regra jurisprudencial, possa vir a reclamar esta observância baseado no dever de coerência e, em última análise, no direito fundamental à igualdade.
Para tanto, a partir do método lógico dedutivo, parte-se da análise sobre a ligação existente entre a igualdade e a coerência, e como a coerência satisfaz o direito fundamental à igualdade, pelo menos no contexto em que analisado, o das decisões judiciais. Ato seguinte, deverá ser explorado quais os meios processuais adequados que a própria sistemática jurídica promove para a assunção da chamada harmonização jurisprudencial, pensada exatamente para satisfazer, dentre outros direitos fundamentais, o direito fundamental à igualdade. Por fim, baseado nas premissas elencadas, deverá ser explorada, por encadeamento, a existência (ou não) de um direito a respostas adequadamente fundamentada advindas do Poder Judiciário, exatamente à luz do dever de coerência e do direito fundamental à igualdade. O desafio está lançado.
1 IGUALDADE E COERÊNCIA
Intimamente imbricada à noção de constitucionalismo e de direitos fundamentais está o valor da igualdade. É a partir da igualdade que foi reconhecida a cada membro da comunidade política o mesmo núcleo essencial de respeito e consideração, não apenas no exercício da democracia representativa, mas também enquanto cidadão, sujeito à tutela do Estado. A igualdade tem papel central em um Estado democrático de direito, de forma não apenas a legitimar a instituição de um governo, mas dar-lhe sentido e propósito. De modo que se estivermos diante de um sistema político em que todos os indivíduos não sejam igualmente considerados pelo governo a que estão submetidos, este não é legitimo, ou perdeu sua legitimidade, e é injustamente tirânico (DWORKIN, 2005, p. IX).
A igualdade, analisada frente à separação entre os tipos normativos de regras e princípios, significará, enquanto regra, uma a proibição de tratamento discriminatório, e enquanto princípio, a instituição de um dever de promover um estado igualitário (ÁVILA, 2016, p. 192). E o direito brasileiro, enquanto fruto da tradição da Europa ocidental, necessariamente exige que sua materialização se dê de modo igualitário, atribuindo respostas semelhantes às lides fundadas em fatos relevantemente similares, aos quais já foram atribuídas, dentro do sistema, respostas jurídicas razoavelmente racionais e desejáveis. Nota-se que a presença do valor da igualdade em um sistema jurídico propicia indiretamente a proteção do princípio da segurança jurídica (ÁVILA, 2019, p. 241).
Deste modo, tanto em uma faceta de metanorma[1] do sistema jurídico, quanto como regra[2] ou princípio[3], a igualdade fundamenta a noção de quando as circunstâncias são iguais, ou relevantemente semelhantes[4], as consequências devem ser as mesmas. Assim, a igualdade serve como instrumento para a garantia de tratamento não-desigual, estabelecendo que pelo simples fato de um caso ter recebido solução à controvérsia em um sentido já se constitui razão suficiente para que se exija tratamento igualitário, quando cabível. E nessa toada a igualdade não apenas terá o condão de exigir o tratamento equânime das causas, mas exigirá, e fundamentará, o dever da coerência, enquanto qualidade a ser alcançada pelos sistemas jurídicos (MACCORMICK, 2006, p. 198).
A coerência[5] tem, portanto, o papel de garantir que o sistema jurídico se manifeste, primordialmente, de maneira segura, isto é, que os resultados dados pelo poder público às controvérsias jurídicas sejam conhecidos, por que historicamente aplicados, ou calculáveis, à maneira de não inovar de forma irracional e injusta na ordem jurídica.
A coerência, enquanto qualidade incorporada por uma ordem jurídica[6], deve garantir um tratamento igualitário aos indivíduos que pugnam ao Estado, em situações relevantemente semelhantes, de modo que suas respostas sejam orientadas pelas mesmas razões, quando cabíveis, e por fundamentadas razões diversas quando incabíveis (ALEXY, 2020, p. 237-238). Igualmente, a coerência deve garantir que o sistema jurídico se manifeste, primordialmente, de maneira segura, isto é, que os resultados dados pelo poder público às controvérsias jurídicas sejam, se não já conhecidos, por que historicamente aplicados, calculáveis, ou então previsíveis, à maneira de não inovar de forma irracional, incoerente e injusta na ordem jurídica.
É que, quando não há colaboração na realização do direito material, e quando os textos normativos têm diversas interpretações, o que importa é o decidido judicialmente, momento em que a dimensão normativa dos textos encontra expressão, em detrimento da possibilidade abstrata de cada textualidade-normatividade inerte. E esse texto, instrumento político da expressão jurídica, não engloba em si todo o sentido material que deve expressar para ser concretizado[7]. Daí que exsurge o problema de implementação do sistema jurídico enquanto instrumento de evocação da justiça formal mediante logicismos e uma normatividade racionalmente específica, “a ponto de culminar numa sistematicidade simplesmente formal que considera fungíveis ou que fica mesmo intencionalmente indiferente aos conteúdos normativos materiais, com a sua problematicidade e historicidade concretas” (CASTANHEIRA NEVES, 2002, p. 26).
Assim, já que o direito é um sistema de significação jurídico-social, inserto em um plano histórico, e se pretende estabelecedor de uma ordem estável, segura, uniforme e previsível, deve-se preocupar também com a questão do sentido dos signos por ele expressado, isto é, deve ser constitutivamente conectado, ou pelo menos não desprezando, os valores daquela realidade histórico-social. No mesmo sentido, não se pode admitir o direito com algo diferente do que um continuum constituendo, um produto inacabado, ainda em processo de formulação e acabamento, mas cujas premissas, fundamentos e teleologia devem ser respeitados e concretizados. É que uma sociedade em normal mutação e evolução não pode aceitar um direito como um fim nele mesmo, mas este deve constituir-se de um instrumento de meio, flexível e com elementos indeterminados prontos a serem interpretados e aplicados adequadamente (PERELMAN, 1996, p. 424).
Dessa forma, não se pode ignorar o plano da realidade em detrimento de um plano estritamente jurídico, tampouco podem os juízes se afastar das exigências do mundo fenomênico[8] a pretexto de manter a ordem[9] a qualquer custo. É nesse sentido que se deve relacionar o uso dos precedentes sob a ótica de uma teoria fraca da coerência[10], a qual considera a harmonização jurisprudencial necessária, mas não suficiente, para o raciocínio jurídico, porquanto outros elementos são necessários para a justificação, aliada com uma formulação modesta da coerência[11] (MORAL SORIANO, 2003, p. 305-306). Assim, como afirmava MacCormick (2006, p. 197), o sistema jurídico se diz coerente quando as diversas expressões normativas fazem sentindo e, é certo que decisões judicias tomadas em um mesmo sentido lógico, propiciam o caráter coerente do sistema judicial, “que faz a mesma justiça a todos, independentemente de quem forem as partes do caso e de quem está julgando” (MACCORMICK, 2008, p. 191), de modo que não se considera racionalmente justificável, em uma mesma experiência jurídica, a existência de julgadores decidindo casos relevantemente semelhantes de maneira divergente, inclusive em hipóteses em que àquelas situações jurídicas já houve delineamento de tese jurídica razoável, coerente e justa, aceita pela comunidade.
O direito se realiza através da interpretação e aplicação das disposições normativas que advêm do Estado legislador, em um materializar de textos, via de regra, imprecisos e vagos (HART, 2001, p. 138). É por isso que a segurança jurídica e a segurança no direito, exigem que no direito exista preocupação objetiva com a segurança dos significados, isto é, da compreensibilidade das normas jurídicas. E são os sucessivos julgamentos que darão coerência e sentido ao direito (MACCORMICK, 2008, p. 211), impondo constrangimento importante aos juízes, para que sigam aos precedentes e a jurisprudência, sobretudo por haver um dever jurídico e moral de demonstrar que as decisões decorrem do direito preexistente ou que, mesmo diante de uma situação absolutamente inédita, os fundamentos usados para solução de casos estão em sintonia com princípios gerais aceitos pela comunidade[12] (MACCORMICK, 2008, p. 265).
Percebe-se que a jurisprudência consolidada garante a igualdade dos cidadãos perante a distribuição da justiça, porque situações assemelhadas são tratadas do mesmíssimo modo, e a democracia participativa exige a paridade de trato entre os membros da comunhão social. O tratamento desigual pelos tribunais é forte indício de injustiça em pelo menos um dos casos. Tão-somente justificadas razões peculiares autorizam o desvio da história decisional do judiciário, como consubstanciado nos mecanismos de harmonização de jurisprudência, p.e., os precedentes obrigatórios (TUCCI, 2004, p. 296). Portanto, a igualdade é facilmente concretizada quando se encontram instrumentos que a garantam dentro de um sistema jurídico, constituindo verdadeira via de postulação de resposta adequada do judiciário, tendo como parâmetro as decisões prévias e válidas.
Mas o que de verdade são os mecanismos de harmonização de jurisprudência?
2 OS MECANISMOS DE HARMONIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA E O DIREITO FUNDAMENTAL À IGUALDADE
Como elucidado, o direito se realiza através da interpretação e aplicação das disposições normativas que advêm do Estado legislador, em um materializar de textos, via de regra, imprecisos e vagos (HART, 2001, p. 138). São os sucessivos julgamentos que darão coerência e sentido ao direito (MACCORMICK, 2008, p. 211), impondo constrangimento real e importante a juízes e tribunais para que sigam aos precedentes vinculantes e a sua própria jurisprudência, bem como a dos tribunais que estejam hierarquicamente vinculados, sobretudo por haver um dever jurídico e moral de demonstrar que as decisões decorrem do direito preexistente ou que, mesmo diante de uma situação absolutamente inédita, os fundamentos usados para solução de casos estão em sintonia com princípios gerais aceitos pela comunidade jurídico-política (MACCORMICK, 2008, p. 265). Feita essa necessária regressão, continua-se.
Então, vislumbra-se um sistema jurídico coerente enquanto um ordenamento jurídico como um todo que possa, não isoladamente, encontrar seus fundamentos a partir da análise das decisões jurídicas e contingenciais, de maneira a poder extrair o sentido axiológico-normativo de coordenação das condutas sócio-humanas.
Daí que o direito conceitualmente necessita de mecanismos aptos a garantir e indicar aos aplicadores do direito quais são as respostas juridicamente aceitáveis a serem replicadas aos casos relevantemente semelhantes em que tal resposta se mostre razoável e adequada. Assim, a instrumentária dos precedentes vinculantes e obrigatórios mostram-se como ferramentas apropriadas a harmonizar a jurisprudência e garantir o respeito adequado à segurança jurídica e à igualdade. Todavia, o precedente é originalmente derivado da cultura do common law, em que se preocupa com uma prática deliberativa cooperativa e continuada, cuja intenção imediata não é a aplicação ou criação de normas de condutas aprioristicamente, como tradicionalmente é nos ordenamentos jurídicos de cultura romano-germânica, mas a de solução judicativa de problemas práticos[13] que surgem da vida em sociedade.
Percebe-se que a jurisprudência consolidada garante a igualdade dos cidadãos perante a distribuição da justiça, porque situações assemelhadas são tratadas do mesmíssimo modo, e a democracia participativa exige a paridade de trato entre os membros da comunhão social. O tratamento desigual pelos tribunais é forte indício de injustiça em pelo menos um dos casos. Tão-somente justificadas razões peculiares autorizam o desvio dos precedentes judiciais. (TUCCI, 2004, p. 296). A jurisprudência sempre vinculou persuasivamente o intérprete, mas, no Brasil, se vê uma crise decisória, marcadamente chamada de jurisprudência lotérica (CAMBI, 2001, p. 2-3).
Nesse contexto, foram criados no Brasil, os precedentes cuja vinculatividade de sua ratio decidendi é imperativo-categórica aos casos relevantemente semelhantes; tais hipóteses, pensadas para garantir maior isonomia, segurança jurídica e economia processual do sistema jurídico (ROSITO, 2012, p. 158), encontram-se na Lei nº 13.256/2015, notadamente no rol exemplificativo do artigo 927, e nas hipóteses de cabimento dos dois institutos pensados para compelir a vinculatividade obrigatória de alguns julgamentos, quais sejam, a Reclamação, prevista nos artigos 988 e ss./CPC, e o Regime de julgamento de Recursos Repetitivos, cuja observância é requisitada a partir de uma interpretação teleológico-sistemático do artigo 927, inciso III, do Código de Processo Civil. Aqui a vinculatividade se dá em “razão do princípio da universalidade e na regra formal de justiça de tratar igualmente os iguais. Casos semelhantes, em seus aspectos essenciais, devem receber semelhantes interpretações e qualificações jurídicas” (GAVIÃO FILHO, 2016, p. 35).
O legislador de 2015 não se bastou a essa sistemática de precedentes, no entanto ela é de peso teórico e relevância jurídico-processual mais importante. Com efeito, as hipóteses de cabimento da reclamação[14] evidenciam muito bem esse esforço legislativo de resolução do problema da celeridade da prestação jurisdicional. Em específico, nos artigos 988 a 993, do Código de Processo Civil, estão reguladas as hipóteses de cabimento da reclamação, incluindo, em seus objetivos, a manutenção da obediência aos precedentes vinculantes. Os incisos I e II trazem a função primeira atribuída a reclamação, qual seja, a preservação da competência do tribunal e a garantia de autoridade de suas decisões. Quanto à preservação de competência do tribunal, normalmente a reclamação se dá frente a ato judicial que lhe tenha usurpado. Já a garantia da autoridade da decisão de tribunal, pressupõe um processo prévio que tenha originado a decisão que se busca garantir. Já no inciso III, consta a possibilidade de reclamação para garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de decisão do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade[15]. Por fim, o inciso IV inova nas possibilidades de ajuizamento da reclamação, que passa a ser cabível também para garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou incidente de assunção de competência.
É importante perceber que o intuito do legislador pátrio, ocasionado pelo problema da litigiosidade de massa e a elevada taxa de congestionamento dos juízos e tribunais – segundo o CNJ a taxa de congestionamento geral no ano-base de 2019 foi de 71% (BRASIL, 2020, p. 36) – fez com que todas essas movimentações de alteração da ótica processual fosse impulsionada para a aceleração da resolução de casos pelo Poder Judiciário, sendo o motivo chave de toda a nova dinâmica processual a efetividade da prestação jurisdicional e, de certa forma, a padronização da resposta jurisdicional, prezando a segurança jurídica – mas, talvez, nem tanto a igualdade.
Mas, ao se valer da ótica dos mecanismos de harmonização da jurisprudência, e ao se preocupar com a manutenção da isonomia – além da segurança jurídica e da proteção da confiança – o legislador pátrio abriu uma vereda para que a concretização do direito fundamental à igualdade seja exigido – tanto em sua faceta formal, quanto em sua faceta material.
Portanto, a igualdade é concretizada quando se encontram instrumentos que a garantam dentro de um sistema jurídico, constituindo verdadeira via de postulação de resposta adequada do judiciário, tendo como parâmetro as decisões prévias e válidas.
Relevante notar – e adiantar pontos de crítica sob a utilização desses mecanismos de harmonização de jurisprudência – que não se admitiria, sobretudo na formulação de teorias que busquem a racionalização do discurso jurídico e a aproximação da concretização de critérios de justiça, coerência e universalidade das razões (MACCORMICK, 2008, p. 264), que tais noções conduzissem a um produto jurídico que o padronizasse para sempre, em uma imutável ordem de cogência ahistórica. Nesse sentido, os instrumentos jurídicos que servem de referencial interpretativo para solucionar casos análogos e futuros, diz-se, precedentes, servem para promover, de maneira mais fácil, a estabilidade e a harmonização da jurisprudência, quando cabível, a ponto de afastar ultrajantes arbitrariedades e promover segurança jurídica ao sistema.
Do mesmo modo, conceitualmente e a partir de mecanismos processuais, admite-se que os precedentes podem ter suas teses revistas, adaptas e atualizadas, não correndo o risco de promover a estagnação ahistórica do direito. Portanto, a igualdade, enquanto princípio, muito se beneficia quando encontra respaldo garantidor dentro de uma sistemática funcional de um dos poderes do Estado, nesse caso, do Poder Judiciário.
Em outro ponto sujeito à críticas – sobre o conteúdo da jurisprudência que se universaliza – tem-se que não é de se olvidar que o julgador aplique as disposições legais que vinculam juridicamente apenas quando no seu conteúdo contiver a autêntica e intencional-material expressão do direito, uma vez que este é fenomenologicamente manifestado na realização de uma justiça cuja aplicação se dê de forma segura e equânime, devendo fazê-lo imprescindivelmente dentro de uma ordem de validade que atente a estes critérios mínimos de correção dos mandamentos jurídicos.
Mas então, essas preocupações com a prestação jurisdicional racional, coerente e igualitária, mediante não exclusivamente a utilização dos instrumentos processuais que buscam harmonizar a jurisprudência, fazem nascer um direito material dos jurisdicionados que exija, para além de só constranger, os juízes a fundamentarem adequadamente suas decisões?
3 O DIREITO À RESPOSTAS ADEQUADAMENTE FUNDAMENTADAS
O direito, enquanto fruto da prática social-comunitária, fundada na observância de princípios universais, dentre os quais estão sensivelmente presentes os princípios da igualdade e da segurança jurídica, não é satisfeito apenas pela interpretação e aplicação racional das normas jurídicas, porquanto necessariamente deve ter sua prática coordenada sob uma perspectiva histórico-institucional de salvaguarda das justas expectativas dos cidadãos, bem como de seus direitos de serem tratados, quando iguais perante quaisquer circunstâncias relevantemente semelhantes, e tendo como paradigmas respostas juridicamente aceitáveis, igualmente. Desse modo, para uma melhor interpretação teleológica da ordem jurídica como um todo é imprescindível que ela se funde em uma prática racionalizada, que resolva os problemas que emergem da sociedade e não discrimine quem não possa ser discriminado, daí que necessariamente deve-se postular por uma jurisprudência harmoniosa sob o aspecto da prática coerente do direito.
A interpretação e aplicação dos precedentes obrigatoriamente vinculantes são os pontos chave para sua efetiva utilização e cristalização enquanto fonte do normativa direito[16]. Primeiramente deve-se diferenciar a(s) ratio(s) decidendi(s) insculpida(s) na decisão cujo status vai atribuído hipoteticamente, dos meros obiter dictum, isto é, daquelas partes da decisão dos quais não se extrai conteúdo jurídico essencial à compreensão da tese jurídica utilizada para a resolução do caso (TUCCI, 2004, p. 12).
Assim, necessária a observância das circunstâncias de fato que embasaram a discussão da controvérsia originária, isto é, do precedente paradigma. De modo que a aplicação do precedente P, cuja tese T foi insculpida a partir de uma situação de fatos S, deverá ser analisado se a T, consubstanciada no pronunciamento P, poderá ser utilizada para a resolução da situação S’; e o poderá se, além de T ainda apresentar-se corrigido, S’ é relevantemente semelhante à S. Caso não seja hipótese de aplicação de T em virtude de um descompasso histórico de reverberação social, deverá ser afastado do caso, podendo ainda sofrer, no common law, o overruled (revogação de sua ratio) é formalmente excluído das fontes e perde, por via de consequência, qualquer valor, e, no civil law, o revirement da jurisprudência, ou seja, quando determinado posicionamento pretoriano, até então dominante, é substancialmente alterado por um julgado que se transforma em novo precedente, pela atuação dos tribunais superiores (TUCCI, 2004, p. 16).
Assim, toda vez que o direito da parte esteja amparado em decisões que contenham efeito vinculante, isto é, tenham por si, ou ope legis, reconhecido o status diferenciado de vinculatividade, sirvam de base racional-argumentativo-lógica para a consecução do discurso jurídico que visa a resolver a questão de direito. Se, contudo, o juiz operar a inobservância desses extratos da racionalidade histórico-institucional do direito, não lhe promovendo respeito à integridade-higidez do direito, à coerência normativa e ao direito fundamental à igualdade, não poderá ver seu decisium como fazendo parte do plexo propositivo de autêntico desenvolvimento do direito enquanto meio promovedor de tutela dos direitos e fim em si próprio de persuadir os participantes da dialética sobre a quaestio iuris de que a decisão vai bem argumentada e justificada.
E, mais do que isso, os jurisdicionados tem direito constitucional a reclamar uma adequada fundamentação (art. 93, inciso IX, da Constituição Federal), a qual determina a obrigatoriedade de fundamentação das decisões, sob pena de nulidade. Além disso, o artigo 489, §1º, inciso VI, do Código de Processo Civil, considera como não fundamentada a decisão que deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento firmado no precedente que se vai superando.
Mas o que significa ter direito a algo?
Alexy (2011) responde ao elaborar a base teórica do porquê direitos fundamentais são direitos subjetivos. Alexy começa explicitando que direitos são postulações que um indivíduo tem em face de outro, da seguinte maneira “(1) a tem, em face de b, um direito a G” em que, nessa relação triádica, o a postula ser reconhecido como destinatário de um direito, cujo objeto é G. De modo que a forma mais geral desse enunciado, se representarmos a relação triádica como R, da relação RabG (ALEXY, 2011, p. 194).
Assim, em RabG, poderemos ter situações completamente diversas a depender do real significado de cada uma das significantes. Ao falarmos de direitos fundamentais, ou ainda de direitos associados a direitos fundamentais, como se quer postular ser o direito ao recebimento de uma resposta adequada, tem-se de ter em mente que o direito será sempre uma ação ou abstenção da parte adversa ao destinatário do direito.
Alexy (2011, p. 194-195), com maestria, explica que de um direito fundamental decorrem vários outros direitos, e que, portanto, como já enunciava Kant em sua Metafísica dos Costumes, e como bem desenvolveu Kelsen em sua Teoria Pura do Direito, direitos não são puramente reclamações de alguém sobre algo. Isso é uma simplificação reducionista. Bem na verdade, direitos são decorrentes de uma série de relações históricas diversas que concretizam vitórias importantes, em se tratando de direitos fundamentais, importantes conquistas democrático-constitucionais. Mas, um direito, qual for sua natureza, decorre de uma relação triádica que estipula que o direito a algo decorre não apenas da competência de exigi-lo ou satisfazê-lo, mas da liberdade de se poder desenvolver para a consecução do mesmo.
Assim, Alexy (2011, p. 194-195) explica que do direito insculpido no art. 2º, §1º, 1, da Constituição Alemã (“todos têm o direito à vida”), decorre não apenas um direito genérico de permanecer vivo, mas também a proteção negativa de proíbe o homicídio estatalmente organizado, ou ainda as prestações positivas em torno do fomento à conservação e proteção da vida.
Assim, no caso do direito que se advoga, se teria também duas faces do direito – que postulamos já existir, mas que se postula sua mera descoberta – uma negativa, de que haja abstenção pelo Poder Judiciário de que se profiram decisões que não considerem os pronunciamentos vinculantes existentes sobre a matéria, o que de certa forma já é sistematizado pelos artigos 93, inciso IX, da CF, e pelos artigos 489, §1º, inciso VI, e 988, ambos do CPC. E outra positiva, no sentido de que o jurisdicionado teria a possibilidade de exigir estritamente a observância, pelo magistrado, do entendimento que lhe é favorável, e que possivelmente tenha fundamentado seu reclamo.
Com efeito, o reconhecimento deste direito acessório fundamenta-se também pelo argumento da economia processual, porquanto a não deferência ao pronunciamento vinculante indicado ensejaria, não apenas os recursos cabíveis às instâncias superioras ou ao pleno dos tribunais – ou ainda aos órgãos especiais que tem o exato fito de harmonizar a jurisprudência interna dos tribunais –, o cabimento da reclamação fundada no seu inciso I, para a competência do tribunal (incluindo STJ e STF) que tenham proferido o entendimento que se vai desrespeitando.
Assim, seja por qual motivo for, ou por todos eles, parece evidente que, se ainda não existe, parece ter sido criada toda uma sistemática que se permite dizer haver um direito à adequada fundamentação das decisões judiciais à luz do dever de coerência e do direito fundamental à igualdade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observa-se que é pressuposto lógico da juridicidade a existência de um direito à resposta adequada advinda do Estado frente à história institucional e jurisprudencial, e que o mesmo se funda na coerência e no direito à igualdade. Além disto, verificou-se a existência de instrumentos processuais que tem o condão de impor o entendimento obrigatoriamente vinculante descumprido, nas hipóteses descritas em lei, e que devem ser respeitados não só por atender aos requisitos citados, mas também à economia processual.
Assim, parecem suficientes as premissas elencadas e a construção argumentativo-racional feita para que se advogue, por último e mais uma vez no presente, a existência de um direito anexo às postulações de direitos sobre as quais já há resposta com status de vinculante – seja por qual motivo for – de modo a racionalizar, harmonizar e justificar as prestações jurisdicionais pelo Estado. Sem coerência, não há que se falar de ordem jurídica, e isso não precisa ficar restrito apenas à materialidade legislativa, porquanto esta não é a única instância que produz ou altera o sentido normativo-material do direito, mas também ao judiciário, em sua atividade típica, a de decidir sobre questões.
[1] A igualdade enquanto postulado faz com que a interpretação de outras normas implique em uma aplicação igualitária, uma vez que quando as pessoas são protegidas por um princípio, ele gera igualdade de direitos e, deste modo, conteúdo de qualquer norma implica no tratamento igualitário (ÁVILA, 2016, p. 139-140).
[2] A igualdade enquanto regra constitui norma material, estritamente para ser aplicada, ou não, pelo Estado, influindo na aplicação de todas as outras que devem ser aplicadas de modo uniforme; e recebe influência de todas as outras que lhe preenchem os elementos estruturais (ÁVILA, 2016, p. 142).
[3] A igualdade enquanto princípio fica sujeita à ponderação e à aplicação, sendo otimizada como uma norma objeto-instrumento de garantia de e busca de um estado ideal de igualdade (ÁVILA, 2016, p. 140-141).
[4] Um caso relevantemente semelhante a outro, a merecer a mesma tutela jurisdicional, significa que o caso em que se postula a aplicação do entendimento de caso já julgado está acontecendo em um panorama de realidades fáticas e jurídicas semelhante ao caso em que fora esculpida a tese vinculativa, isto é, nos pontos mais prejudiciais da quaestio judicis (ALEXY, 2020, p. 238).
[5] Aqui trata-se da coerência em sua faceta normativa, a qual fundamenta o sistema do direito, enquanto conjunto de proposições cujo fundamento de validade se identifique e indique um sentido, constituindo um empreendimento teleológico válido (FULLER, 1963, p. 145). Não se confundindo com sua faceta narrativa, a qual determina que os fatos narrados em uma decisão judicial devem fazer parte de uma sequência inteligível de eventos (MACCORMICK, 2008, p. 247-249).
[6] Adere-se à noção de coerência no raciocínio jurídico (RAZ, 1992, p. 285) como sendo aquela que abarca os conceitos de unidade, sistema e integridade como sendo postulados essenciais, além de marcos-históricos importantes na construção das teorias coerentistas no direito; no qual i) a unidade é o elemento mais básico da coerência, pois transmite a concepção de que o direito não é um mero conglomerado de regras jurídicas, porquanto é fundado em determinados valores que configuram “núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes” (BARROSO, 2009, p. 202); ii) o conceito de sistema, abarca a necessidade da valoração de princípios comuns a certo sistema jurídico, que apresentaram “função aglutinadora” (CANARIS, 2008, p. 81), ou seja, darão base principiológico-valorativa à interpretação das regras jurídicas existentes. Afora isso, Canaris (2008, p. 104) argumenta que um sistema deve ser “aberto”, não correndo risco de estagnação do direito, sendo modificável, e tendo por fonte a ratio juris, e não a ratio legis; iii) quanto a integridade, conceito muito mais amplamente interpretado, tem-se que advêm da teoria do direito como integridade de Dworkin, a qual é pautada na noção de ser o direito uma prática interpretativo-social. Para Dworkin (2011, p. 171), o direito é um ramo da moralidade política, que é um ramo da moral pessoal que é um galho de uma “teoria do que seria um bem viver”, isto é, abstraído daqueles valores comunitários que pautam uma prática social. Igualmente, para Dworkin o direito nasce de um processo de construção e justificação, e deve culminar em um projeto de direito normativo e político, entrelaçando os conceitos de legalidade, Estado de direito e do “direito como integridade” (MOTTA, 2018, p. 136). Deste modo, “a noção do direito como integridade supõe que as pessoas têm direito a uma extensão coerente, e fundada em princípios, das decisões políticas do passado, mesmo quando os juízes divergem profundamente do seu significado” (MOTTA, 2018, p. 136). Dworkin explica que há uma necessária integridade política, ou seja, a necessidade de “o governo tenha uma só voz e aja de modo coerente e fundamentado em princípios com todos os seus cidadãos, para estender a cada um os padrões fundamentais de justiça e equidade que usa para alguns” (DWORKIN, 1999, p. 201).
[7] Para Castanheira Neves (1995, p. 41), o direito, enquanto aquele autêntico fenômeno jurídico, é essencialmente um axiológico-normativo e um transpositivo de sua validade. Mas, a lei é um instrumento político-jurídico onde a intenção é ideológica – enquanto acto e manifestação do Estado, não englobando assim o sentido prático, o que deverá advir do momento de realização do direito, e sua aplicatio pelos Tribunais (CASTANHEIRA NEVES, 1995, p. 284).
[8] Para Heidegger (1997, p. 299) o direito não necessita de um fundamento metafísico de validade, necessita sim de fundamentos ontológicos prático-reais e materiais do fenômeno jurídico daquele tempo, ou seja, um ser-aí (dasein).
[9] Aliás, tal constatação, de que os juízes não devem procurar manter uma ordem acima de quaisquer circunstâncias, é deveras antiga, Aristóteles (2001, p. 121) já afirma que “o equitativo é justo e superior a uma espécie de justiça, embora não seja superior à justiça absoluta, e sim ao erro decorrente do caráter absoluto da disposição legal. Desse modo, a natureza do equitativo é uma correção da lei quando esta é deficiente em razão de sua universalidade”.
[10] Amaya vê maior aceitação da teoria da coerência fraca como prejudicial à evolução dos modelos teóricos, consigna-se, entretanto, que o modelo fraco da coerência é o modelo mais adequado para utilização no direito, uma vez que assegura, não uma mera coerência, de fundação em quaisquer razões axiomáticas, mas sim, uma coerência de um sistema que se pretenda moralmente corrigido e racionalmente justificado; além de se apresentar um modelo que busca dar mais racionalidade ao processo decisório judicial, porquanto postula que a justificação judicial necessariamente deverá abarcar outros elementos (AMAYA, 2015, p. 67).
[11] Assim, uma decisão judicial é considerada correta se justificada conforme o direito, que deve ser racional e juridicamente válido. A exigência de correção está justificada, portanto, ao refletir uma pretensão de justificabilidade, uma vez que a justificação é a atividade racional de arrazoar a sustentabilidade da correção formal e material de uma decisão particular. E a noção modesta de coerência foca exatamente em como construir estruturas de argumentos sustentadores coerentes, consoante uma perspectiva pluralista, uma vez que juízes seriam instruídos a levar em conta todas as razões relevantes (MORAL SORIANO, 2003, p. 308).
[12] Não é caro lembrar que para MacCormick (2008), as razões elucidativas de uma decisão devem atender ao critério da universazibilidade, isto é, de que os argumentos possam ser replicados, não por serem genéricos, mas por serem adequadamente e racionalmente utilizados, e do critério da análise das consequências, como pressuposto lógico de justeza de qualquer decisão. Como se elucidará melhor no decorrer desta fundamentação teórica.
[13] Por casos práticos não se deve entender apenas que eles se desenvolvem sobre quaestio juris que se acontecem no seio da sociedade, mas como um direito que se desenvolve a partir da análise tópica e da decisão individualizada para cada caso, isto é, analisando e justificando a decisão em cada contexto e em cada instante, ainda que se valha de precedente judiciais indicativos da interpretação que se vá adotar. De modo que não é praxiológicamente possível – ainda que filosófico-juridicamente se exija – que em cada instante haja uma formulação diferente para cada situação concreta e distante, como advogava Gadamer (1997, p. 461).
[14] Para um estudo mais aprofundado sobre a utilização da Reclamação no contexto dos precedentes, ver COELHO, Fernanda Rosa; PAULO, Lucas Moreschi. A reclamação como instrumento para manutenção da jurisprudência estável, íntegra e coerente à luz do Código de Processo Civil de 2015. In: GAVIÃO FILHO, Anizio Pires; LEAL, Rogério Gesta (org.). Coletânea do V Seminário Nacional Tutelas à Efetivação de Direitos Indisponíveis. Porto Alegre: FMP, 2019, p. 229-240.
[15] O artigo 103-A da Constituição Federal disciplina o procedimento de edição, revisão e cancelamento das súmulas vinculantes. Já a observância de decisão proferida em controle concentrado de constitucionalidade pode ser vista como uma espécie de desdobramento do disposto no inciso II, que garante a autoridade das decisões do tribunal.
[16] Para Aarnio (1991, p. 123), fonte do direito é “toda a razão que – de acordo com as regras geralmente aceitas na comunidade jurídica – pode ser usada como base justificatória da interpretação”. Tucci (2004, p. 19-20) recorda que a locução fonte do direito, no campo do discurso jurídico, tem dupla acepção, significando, por um prisma, a origem do direito objetivo e, por outro, o veículo de conhecimento do direito. Assim, pelo ângulo da história, fala-se em fonte de cognição para indicar tudo aquilo de que se pode valer o estudioso para conhecer o direito de uma determinada experiência jurídica do passado ou o lócus onde ele se revela. A ciência jurídica tradicional, por outro lado, designa como fontes formais de produção do direito os modos pelos quais o direito se manifesta, ou seja, as formas de expressão do direito. Contrario sensu, Gavião Filho (2011, p. 222) define os precedentes jurisprudenciais enquanto fontes argumentativas do direito, isto é, não formais do direito. No entanto, em texto posterior ao Código de Processo Civil, e a edição dos novos precedentes de observância obrigatória, Gavião Filho (2016, p. 35) reconheceu, ao tratar da vinculatividade vertical – que não se aplica apenas aos precedentes obrigatórios –, que os juízos a quo devem obedecer aos precedentes frente a hierárquica estrutura do sistema de justiça, não apenas em razão razão do princípio da universalidade e na regra formal de justiça de tratar igualmente os iguais, ou pelo fato de que casos semelhantes, em seus aspectos essenciais, devem receber semelhantes interpretações e qualificações jurídica, mas pela força hierárquica e processual deles.