A Importância da Documentação Médica para uma Prática Médica Ética e Transparente


16/12/2024 às 13h36
Por Paula Pignatari Rosas Menin - Advocacia Especializada

Por Paula Pignatari Rosas Menin - Advogada – OAB/SP 195.594

A relação médico-paciente, antes baseada na confiança e no juramento hipocrático, hoje se insere em um cenário complexo de legislações, regulações e crescente judicialização da saúde. A busca por indenizações por supostos erros médicos tornou imprescindível a documentação médica clara, precisa e bem estruturada. Nesse contexto, a documentação médica deixa de ser mera formalidade e se torna vital para proteger o profissional de saúde e manter a qualidade da assistência ao paciente.

A documentação médica não é apenas um registro burocrático; é também expressão da responsabilidade ética e do compromisso do profissional com a segurança do paciente e com a própria proteção jurídica. Em um ambiente com demandas judiciais crescentes, a documentação bem elaborada é a principal defesa contra alegados erros ou omissões.

1. Proteção Legal e Defesa em Litígios

O aumento de ações judiciais contra profissionais e instituições de saúde é indiscutível. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o número de processos relacionados à saúde cresce de forma alarmante, evidenciando a necessidade de medidas preventivas. Nesse cenário, a documentação médica desempenha papel crucial na proteção dos interesses do médico, atuando como ferramenta essencial em todas as fases do processo, da fase pré-processual à execução da sentença.

1.1. Legislação Pertinente

A prática médica no Brasil está submetida a um arcabouço legal robusto, com diversas normas e resoluções. Destacam-se:

Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2217/2018): Define direitos e deveres dos médicos, enfatizando a responsabilidade pessoal do profissional e a importância de atuar com diligência, prudência e competência (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2018).

Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002): Regula a responsabilidade civil, contratual e extracontratual, e estabelece parâmetros para a obrigação de indenizar em casos de erro profissional (BRASIL, 2002).

Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990): Aplica-se à relação médico-paciente em situações de consumo, conferindo maior proteção ao paciente (BRASIL, 1990).

Lei nº 13.787/2018: Regulamenta a digitalização e o armazenamento de prontuários médicos, garantindo a integridade e segurança das informações (BRASIL, 2018a).

Essas normas fornecem suporte legal para uma prática médica segura e ética, exigindo atualização constante dos profissionais para evitar conflitos.

2. Atualização e Conformidade com a Legislação

A legislação médica está em constante evolução, exigindo acompanhamento contínuo do profissional para garantir conformidade com as normas. A documentação médica deve ser elaborada com atenção aos padrões legais e éticos, protegendo o profissional e o paciente.

2.1. Normativas e Conselhos

Além das leis gerais, a prática médica é orientada por resoluções e normas do Conselho Federal de Medicina (CFM). Algumas normas importantes são:

Resolução CFM nº 2.314/2022: Regulamenta a telemedicina, com regras para consultas, prescrições e atendimento remoto (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2022).

Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD - Lei nº 13.709/2018): Impõe obrigações no tratamento de dados pessoais sensíveis dos pacientes, exigindo medidas de segurança (BRASIL, 2018b).

A conformidade com essas normas é essencial para evitar sanções éticas, administrativas e legais, desde multas por infrações à LGPD até penalidades dos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) por condutas antiéticas.

3. Gestão de Riscos e Prevenção de Conflitos

A documentação médica deve ser vista como ferramenta para prevenir conflitos e gerenciar riscos. Documentos bem elaborados, como prontuários e consentimentos informados, são cruciais para demonstrar a conduta profissional correta e prevenir litígios.

3.1. Exemplo de Documentos Cruciais

Prontuário Médico: Registro detalhado do histórico clínico do paciente, incluindo exames, diagnósticos, tratamentos e evoluções. É a principal prova em ações judiciais, documentando as interações entre médico e paciente.

Exemplo: Registrar a recusa do paciente em seguir uma recomendação médica.

Importância Jurídica: A ausência de prontuário detalhado pode gerar presunção de culpa do médico. Um prontuário completo e organizado serve como defesa.

Jurisprudência: EMENTA: (...) CIRURGIA REPARADORA. CICATRIZES DESPROPORCIONAIS. (...) PROVA PERICIAL. Realizada prova pericial, inconclusiva, ante a inércia dos réus em colacionar os documentos médicos imprescindíveis (Prontuário Médico integral e legível) referentes a todos os procedimentos cirúrgicos e atendimentos médicos realizados na autora, a fim se se aferir se atuaram, ou não, com culpa, impõe-se a procedência da pretensão indenizatória. 4. DANOS MORAIS. QUATUM. (...) (TJ-GO 0021062-58.2016.8.09.0051, Relator: DESEMBARGADOR NORIVAL SANTOMÉ, 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: 28/06/2022).

Consentimento Informado: Garante a autonomia do paciente na tomada de decisões sobre o tratamento, detalhando riscos, benefícios e alternativas.

Exemplo: Em cirurgias bariátricas, o consentimento deve incluir riscos de complicações, benefícios esperados e opções alternativas.

Importância Jurídica: Protege o médico contra acusações de omissão ou falta de informação, evidenciando que o paciente foi esclarecido e concordou com o procedimento.

Jurisprudência: EMENTA: REPARAÇÃO DE DANOS – ERRO MÉDICO – Autor que foi submetido à cirurgia de hérnia de disco, da qual resultaram complicações, com o surgimento de fístula liquórica, tornando necessários novos procedimentos para amenizar as complicações – Sentença de parcial procedência que afastou a existência de erro médico, porém reconheceu a ocorrência de danos decorrentes da falta de informação dos riscos do procedimento, fixando indenização por danos morais em R$ 10.000,00 – (...) – Termo de consentimento assinado pelo autor que contém apenas alusão genérica de que foram prestadas informações e nem sequer conta com a assinatura do profissional que teria esclarecido as questões relativas ao tratamento – Autor que consentiu com o tratamento sem ter sido devidamente informado dos seus riscos e das possíveis complicações – Violação ao dever de informação – (...) (TJ-SP - AC: 1013096-66.2017.8.26.0003 SP 1013096-66.2017.8.26.0003, Relator: Marcus Vinicius Rios Gonçalves, Data de Julgamento: 22/07/2022, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/07/2022).

Termo de Recusa de Tratamento: Formaliza a decisão do paciente em não seguir orientação médica, resguardando o médico de alegações de negligência ou omissão.

Exemplo: Pacientes que recusam transfusões de sangue por questões religiosas.

Importância Jurídica: Demonstra que o paciente foi informado sobre os riscos da recusa e assumiu a responsabilidade por sua escolha.

Jurisprudência: EMENTA: AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – Autorização para realização de transfusão de sangue – Recusa da paciente por motivo de crença religiosa (Testemunha de Jeová) – Sentença de procedência da ação principal e improcedência da reconvenção – Apelação dos réus – Alegação de perda do objeto – Falecimento da paciente no curso do feito – Desacolhimento – Concessão de tutela de urgência – Confirmação na sentença – Cabimento – Ilegitimidade passiva da corré que acompanhou a paciente – Afastamento – Corré também assinou o termo de responsabilidade/recusa de tratamento – Reconvenção – Pleito de indenização por danos morais – Desacolhimento – Paciente internada em estado grave, em choque hemorrágico – Necessidade de transfusão de sangue para estabilização do quadro clínico – Procedimento realizado de acordo com orientação e ética médica, com o fim de evitar óbito da paciente – Inocorrência de ofensa, humilhação, tratamento degradante ou tortura – Direito à liberdade de crença que não prevalece sobre o direito fundamental à vida – Sentença mantida – RECURSO IMPROVIDO. (TJ-SP - Apelação Cível: 1012823-62.2021.8.26.0451, Relator: Benedito Antonio Okuno, Data de Julgamento: 03/04/2024, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04/04/2024).

Contrato de Prestação de Serviços Médicos: Regula a relação entre médico e paciente ou terceiros, como hospitais e planos de saúde. Deve conter cláusulas claras sobre responsabilidades, honorários, confidencialidade, condições de rescisão e foro de eleição.

Exemplo: Definir detalhadamente valores de honorários e condições de pagamento, além de cláusulas de rescisão.

Importância Jurídica: Em litígios, o contrato pode ser usado como prova de que o médico cumpriu suas obrigações e os termos do acordo.

Jurisprudência: EMENTA: CIVIL, CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. DESISTÊNCIA DO CONTRATANTE ANTES DE INICIAR O TRATAMENTO. DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS. ART. 472 DO CÓDIGO CIVIL. CLÁUSULA PENAL COMPENSATÓRIA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. INOCORRÊNCIA. RECURSO IMPROVIDO. (...) 3. Da rescisão contratual. 3.1. A controvérsia cinge-se à devolução dos valores pagos ante a desistência do autor após contratar a ré para o procedimento contratado e não iniciado. 3.2. Nos termos do contrato firmado, em caso de cancelamento, foi acordada a retenção de multa contratual de 20% sobre o valor total, a título de custos operacionais e despesas administrativas. (...) 4.1 Desse modo, como a pretensão de extinção do contrato decorreu de iniciativa exclusiva do autor-apelado, por desistência, este deve suportar, tão somente, os encargos decorrentes da cláusula penal prevista e livremente pactuada entre as partes. (...) (TJ-DF 0738242-80.2021.8.07.0001 1667199, Relator: JOÃO EGMONT, Data de Julgamento: 01/03/2023, 2ª Turma Cível, Data de Publicação: 17/03/2023).

4. Benefícios da Documentação Bem Elaborada

A documentação médica completa e clara blinda o profissional contra litígios, preserva sua reputação e garante tranquilidade no exercício da medicina.

Redução de Riscos: Minimiza chances de litígios e sanções.

Fortalecimento da Relação Médico-Paciente: Registros claros e transparentes geram confiança.

Proteção do Patrimônio do Médico: Em caso de condenação, documentos bem estruturados podem limitar responsabilidades.

Exercício Profissional Seguro: Garante atuação em conformidade com normas legais e éticas.

5. Conclusão

A documentação médica é alicerce para uma prática médica ética, segura e transparente. Profissionais que investem em registros detalhados e em conformidade com a legislação protegem suas carreiras e reforçam o compromisso com a excelência e a segurança do paciente. Em um contexto de crescente judicialização da saúde, boas práticas de documentação médica são essenciais para garantir a segurança jurídica e a tranquilidade do médico.

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Referências

Doutrina:

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

DANTAS, Eduardo. Direito Médico. 7ª Ed. São Paulo: Editora Jus Podium, 2023.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 29. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

NETTO, Felipe Braga. Novo Manual de Responsabilidade Civil. 4ª ed. São Paulo: Editora Jus Podium, 2024.

SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Responsabilidade Civil do Médico. São Paulo: Saraiva, 2007.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Responsabilidade Civil. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

Legislação:

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BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível em:2 [URL inválido removido]. Acesso em: 16 dez. 2024.

BRASIL. Lei nº 13.787, de 27 de dezembro de 2018. Dispõe sobre a digitalização e a utilização de sistemas informatizados para a guarda, o armazenamento e o manuseio3 de prontuário de paciente. Brasília, DF: Presidência da República,4 2018a. Disponível em: [URL inválido removido]. Acesso em: 16 dez. 2024.

BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet).5 Brasília, DF: Presidência da República, 2018b. Disponível6 em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm.7 Acesso em: 16 dez. 2024.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA.8 Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Brasília, DF: CFM, 2018. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217.9 Acesso em: 16 dez. 2024.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 2.314, de 5 de maio de 2022. Define e regulamenta a telemedicina. Brasília, DF: CFM, 2022. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2022/2314. Acesso em: 16 dez. 2024.



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