Por Paula Pignatari Rosas Menin - Advogada – OAB/SP 195.594
A relação médico-paciente, antes baseada na confiança e no juramento hipocrático, hoje se insere em um cenário complexo de legislações, regulações e crescente judicialização da saúde. A busca por indenizações por supostos erros médicos tornou imprescindível a documentação médica clara, precisa e bem estruturada. Nesse contexto, a documentação médica deixa de ser mera formalidade e se torna vital para proteger o profissional de saúde e manter a qualidade da assistência ao paciente.
A documentação médica não é apenas um registro burocrático; é também expressão da responsabilidade ética e do compromisso do profissional com a segurança do paciente e com a própria proteção jurídica. Em um ambiente com demandas judiciais crescentes, a documentação bem elaborada é a principal defesa contra alegados erros ou omissões.
1. Proteção Legal e Defesa em Litígios
O aumento de ações judiciais contra profissionais e instituições de saúde é indiscutível. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o número de processos relacionados à saúde cresce de forma alarmante, evidenciando a necessidade de medidas preventivas. Nesse cenário, a documentação médica desempenha papel crucial na proteção dos interesses do médico, atuando como ferramenta essencial em todas as fases do processo, da fase pré-processual à execução da sentença.
1.1. Legislação Pertinente
A prática médica no Brasil está submetida a um arcabouço legal robusto, com diversas normas e resoluções. Destacam-se:
Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2217/2018): Define direitos e deveres dos médicos, enfatizando a responsabilidade pessoal do profissional e a importância de atuar com diligência, prudência e competência (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2018).
Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002): Regula a responsabilidade civil, contratual e extracontratual, e estabelece parâmetros para a obrigação de indenizar em casos de erro profissional (BRASIL, 2002).
Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990): Aplica-se à relação médico-paciente em situações de consumo, conferindo maior proteção ao paciente (BRASIL, 1990).
Lei nº 13.787/2018: Regulamenta a digitalização e o armazenamento de prontuários médicos, garantindo a integridade e segurança das informações (BRASIL, 2018a).
Essas normas fornecem suporte legal para uma prática médica segura e ética, exigindo atualização constante dos profissionais para evitar conflitos.
2. Atualização e Conformidade com a Legislação
A legislação médica está em constante evolução, exigindo acompanhamento contínuo do profissional para garantir conformidade com as normas. A documentação médica deve ser elaborada com atenção aos padrões legais e éticos, protegendo o profissional e o paciente.
2.1. Normativas e Conselhos
Além das leis gerais, a prática médica é orientada por resoluções e normas do Conselho Federal de Medicina (CFM). Algumas normas importantes são:
Resolução CFM nº 2.314/2022: Regulamenta a telemedicina, com regras para consultas, prescrições e atendimento remoto (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2022).
Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD - Lei nº 13.709/2018): Impõe obrigações no tratamento de dados pessoais sensíveis dos pacientes, exigindo medidas de segurança (BRASIL, 2018b).
A conformidade com essas normas é essencial para evitar sanções éticas, administrativas e legais, desde multas por infrações à LGPD até penalidades dos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) por condutas antiéticas.
3. Gestão de Riscos e Prevenção de Conflitos
A documentação médica deve ser vista como ferramenta para prevenir conflitos e gerenciar riscos. Documentos bem elaborados, como prontuários e consentimentos informados, são cruciais para demonstrar a conduta profissional correta e prevenir litígios.
3.1. Exemplo de Documentos Cruciais
Prontuário Médico: Registro detalhado do histórico clínico do paciente, incluindo exames, diagnósticos, tratamentos e evoluções. É a principal prova em ações judiciais, documentando as interações entre médico e paciente.
Exemplo: Registrar a recusa do paciente em seguir uma recomendação médica.
Importância Jurídica: A ausência de prontuário detalhado pode gerar presunção de culpa do médico. Um prontuário completo e organizado serve como defesa.
Jurisprudência: EMENTA: (...) CIRURGIA REPARADORA. CICATRIZES DESPROPORCIONAIS. (...) PROVA PERICIAL. Realizada prova pericial, inconclusiva, ante a inércia dos réus em colacionar os documentos médicos imprescindíveis (Prontuário Médico integral e legível) referentes a todos os procedimentos cirúrgicos e atendimentos médicos realizados na autora, a fim se se aferir se atuaram, ou não, com culpa, impõe-se a procedência da pretensão indenizatória. 4. DANOS MORAIS. QUATUM. (...) (TJ-GO 0021062-58.2016.8.09.0051, Relator: DESEMBARGADOR NORIVAL SANTOMÉ, 6ª Câmara Cível, Data de Publicação: 28/06/2022).
Consentimento Informado: Garante a autonomia do paciente na tomada de decisões sobre o tratamento, detalhando riscos, benefícios e alternativas.
Exemplo: Em cirurgias bariátricas, o consentimento deve incluir riscos de complicações, benefícios esperados e opções alternativas.
Importância Jurídica: Protege o médico contra acusações de omissão ou falta de informação, evidenciando que o paciente foi esclarecido e concordou com o procedimento.
Jurisprudência: EMENTA: REPARAÇÃO DE DANOS – ERRO MÉDICO – Autor que foi submetido à cirurgia de hérnia de disco, da qual resultaram complicações, com o surgimento de fístula liquórica, tornando necessários novos procedimentos para amenizar as complicações – Sentença de parcial procedência que afastou a existência de erro médico, porém reconheceu a ocorrência de danos decorrentes da falta de informação dos riscos do procedimento, fixando indenização por danos morais em R$ 10.000,00 – (...) – Termo de consentimento assinado pelo autor que contém apenas alusão genérica de que foram prestadas informações e nem sequer conta com a assinatura do profissional que teria esclarecido as questões relativas ao tratamento – Autor que consentiu com o tratamento sem ter sido devidamente informado dos seus riscos e das possíveis complicações – Violação ao dever de informação – (...) (TJ-SP - AC: 1013096-66.2017.8.26.0003 SP 1013096-66.2017.8.26.0003, Relator: Marcus Vinicius Rios Gonçalves, Data de Julgamento: 22/07/2022, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 22/07/2022).
Termo de Recusa de Tratamento: Formaliza a decisão do paciente em não seguir orientação médica, resguardando o médico de alegações de negligência ou omissão.
Exemplo: Pacientes que recusam transfusões de sangue por questões religiosas.
Importância Jurídica: Demonstra que o paciente foi informado sobre os riscos da recusa e assumiu a responsabilidade por sua escolha.
Jurisprudência: EMENTA: AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER – Autorização para realização de transfusão de sangue – Recusa da paciente por motivo de crença religiosa (Testemunha de Jeová) – Sentença de procedência da ação principal e improcedência da reconvenção – Apelação dos réus – Alegação de perda do objeto – Falecimento da paciente no curso do feito – Desacolhimento – Concessão de tutela de urgência – Confirmação na sentença – Cabimento – Ilegitimidade passiva da corré que acompanhou a paciente – Afastamento – Corré também assinou o termo de responsabilidade/recusa de tratamento – Reconvenção – Pleito de indenização por danos morais – Desacolhimento – Paciente internada em estado grave, em choque hemorrágico – Necessidade de transfusão de sangue para estabilização do quadro clínico – Procedimento realizado de acordo com orientação e ética médica, com o fim de evitar óbito da paciente – Inocorrência de ofensa, humilhação, tratamento degradante ou tortura – Direito à liberdade de crença que não prevalece sobre o direito fundamental à vida – Sentença mantida – RECURSO IMPROVIDO. (TJ-SP - Apelação Cível: 1012823-62.2021.8.26.0451, Relator: Benedito Antonio Okuno, Data de Julgamento: 03/04/2024, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 04/04/2024).
Contrato de Prestação de Serviços Médicos: Regula a relação entre médico e paciente ou terceiros, como hospitais e planos de saúde. Deve conter cláusulas claras sobre responsabilidades, honorários, confidencialidade, condições de rescisão e foro de eleição.
Exemplo: Definir detalhadamente valores de honorários e condições de pagamento, além de cláusulas de rescisão.
Importância Jurídica: Em litígios, o contrato pode ser usado como prova de que o médico cumpriu suas obrigações e os termos do acordo.
Jurisprudência: EMENTA: CIVIL, CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS MÉDICOS. DESISTÊNCIA DO CONTRATANTE ANTES DE INICIAR O TRATAMENTO. DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS. ART. 472 DO CÓDIGO CIVIL. CLÁUSULA PENAL COMPENSATÓRIA. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. INOCORRÊNCIA. RECURSO IMPROVIDO. (...) 3. Da rescisão contratual. 3.1. A controvérsia cinge-se à devolução dos valores pagos ante a desistência do autor após contratar a ré para o procedimento contratado e não iniciado. 3.2. Nos termos do contrato firmado, em caso de cancelamento, foi acordada a retenção de multa contratual de 20% sobre o valor total, a título de custos operacionais e despesas administrativas. (...) 4.1 Desse modo, como a pretensão de extinção do contrato decorreu de iniciativa exclusiva do autor-apelado, por desistência, este deve suportar, tão somente, os encargos decorrentes da cláusula penal prevista e livremente pactuada entre as partes. (...) (TJ-DF 0738242-80.2021.8.07.0001 1667199, Relator: JOÃO EGMONT, Data de Julgamento: 01/03/2023, 2ª Turma Cível, Data de Publicação: 17/03/2023).
4. Benefícios da Documentação Bem Elaborada
A documentação médica completa e clara blinda o profissional contra litígios, preserva sua reputação e garante tranquilidade no exercício da medicina.
Redução de Riscos: Minimiza chances de litígios e sanções.
Fortalecimento da Relação Médico-Paciente: Registros claros e transparentes geram confiança.
Proteção do Patrimônio do Médico: Em caso de condenação, documentos bem estruturados podem limitar responsabilidades.
Exercício Profissional Seguro: Garante atuação em conformidade com normas legais e éticas.
5. Conclusão
A documentação médica é alicerce para uma prática médica ética, segura e transparente. Profissionais que investem em registros detalhados e em conformidade com a legislação protegem suas carreiras e reforçam o compromisso com a excelência e a segurança do paciente. Em um contexto de crescente judicialização da saúde, boas práticas de documentação médica são essenciais para garantir a segurança jurídica e a tranquilidade do médico.