Antes de qualquer consideração inicial é importante ressaltar o que se entende aqui como trabalho precarizado. Ricardo Antunes define a situação da classe trabalhadora no Brasil como sendo caracterizada pela superexploração da força de trabalho (Antunes, 2018), guiada pela lógica de longas jornadas de trabalho, o que desemboca no aumento da mais valia absoluta (visto que há a elevação da diferença entre salário e lucro), paralelamente à diminuição da remuneração paga ao trabalhador, cada vez mais insuficiente para que esse mantenha sua qualidade de vida, e o aumento da mais valia relativa (definida pela quantidade de trabalho necessária para que o trabalhador consiga suprir as suas necessidades mais imediatas). Segundo Antunes, o modo de exploração do trabalho, inerente ao sistema capitalista, não apresentou mudanças em seu modus operandi, mas houve uma explosão do setor de prestação de serviços. Esse fenômeno associado aos avanços tecnológicos intensificou a exploração do trabalho dado que as relações sociais se tornaram mais instantâneas e as demandas, mais imediatas.
Postas essas questões, é possível perceber que não há uma profissão ou um tipo de trabalhador específicos que sofrem com a precarização, já que a baixa remuneração e o aumento da jornada de trabalho são aspectos que fazem parte da realidade de uma gama de trabalhadores. Não é difícil perceber que o custo de vida nas grandes cidades vem aumentando nas últimas décadas ao passo que o aumento anual do salário mínimo não chega a ser significativo. A título de exemplo, o custo de vida na cidade do Recife até o início do segundo semestre de 2020 girava em torno de R$ 2.048,00 (Expastitan, 2020). Em contrapartida, o salário mínimo passou de R$ 998,00 em 2019 para R$ 1.045,00 em 2020, ou seja, abaixo do mínimo necessário para garantir a sobrevivência de um trabalhador nas condições exemplificadas. Nesses termos, o aumento da mais valia relativa se manifesta quando o trabalhador precisa trabalhar mais horas do seu dia, ou exercer mais de uma atividade, para garantir uma remuneração que possibilite que as suas necessidades mais básicas sejam atendidas.
No imaginário geral, o trabalho precarizado seria aquele no qual o trabalhador não tem os direitos presentes na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e nas demais legislações assegurados, ou seja, recebe menos que o salário mínimo ou o mínimo da categoria a qual faz parte, trabalha por várias horas extras não remuneradas e outras situações inseridas nesse contexto. De fato, a CLT foi um marco positivo na história do trabalho no Brasil e continua sendo indispensável para a manutenção de um mínimo de segurança jurídica para os trabalhadores. Considerando a forma como o direito liberal opera, o fato de os direitos estarem positivados pode importar na garantia de, ao menos, uma igualdade formal e na efetivação de direitos mais imediatos. No entanto, não basta que as relações de trabalho sigam o que está posto pelo direito para que sejam consideradas como não precarizadas, visto que não é a mera legalidade que define como os elos trabalhistas se desenvolvem materialmente.
Partindo para uma categoria específica de trabalhadores e, mais ainda, para um contexto determinado, a superexploração fica ostensiva, ao mesmo tempo em que parece difícil definir as categorias que envolvem esses trabalhadores. Trata-se das trabalhadoras e dos trabalhadores que fazem entregas por aplicativos e em como o seu papel social esteve em destaque nos últimos meses, inseridos no contexto da pandemia do Covid-19. A atividade de motoboy e motogirl não é novidade nos grandes centros urbanos, assim como o uso de aplicativos tem se tornado comum na rotina de parte das pessoas. O que surge como novidade para muitos são as condições as quais os trabalhadores que prestam serviços de entrega por aplicativos, e com os quais já se convivia a tanto tempo, estão sujeitos. Com a pandemia e o consequente aumento da necessidade desses serviços, os trabalhadores uberizados, como são chamados os que trabalham por intermédio de aplicativos e insertos na lógica da chamada “economia de compartilhamento” (Slee, 2017), passaram a trabalhar mais e a receber menos. Vários são os relatos de entregadores que precisam trabalhar em média 12 horas por dia para garantir uma renda mínima para sua sobrevivência. Entre fevereiro e março de 2020 o número de entregadores cadastrados na plataforma do Ifood passou de 131 mil para 170 mil (Tomazelli, 2020). Assim, embora tenha havido o aumento do número de pedidos, já que durante o isolamento as pessoas saíram menos de suas casas e pediram comida por delivery numa frequência maior, o aumento do número de entregadores nas ruas fez com que os valores das taxas de entrega caíssem.
Ainda que a pandemia tenha evidenciado a situação desses trabalhadores, já era uma realidade para muitos ter que trabalhar mais de 8 horas por dia para garantir que seu custo de vida fosse suprido. Desse modo, não foi o contexto desencadeado pela pandemia o responsável por criar essa situação, esse apenas escancarou o que já existia e, ainda, intensificou a exploração na medida em que os riscos em torno da profissão também aumentaram. Não bastassem os perigos do trânsito caótico das grandes cidades e o risco inerente de estar exposto às intempéries das ruas por muito tempo, passou a haver também a preocupação quanto à própria saúde e o inconveniente de ser contaminado por um vírus letal.
Nesse sentido, o trabalho precarizado foi revelado, teve a sua “face” perversa exposta para quem ainda não enxergava quão dura é a rotina de um trabalhador por aplicativo. Essa precariedade não se mostra apenas na realidade dos entregadores, mas também dos motoristas por aplicativos e de outras categorias que desenvolvem suas atividades dentro da lógica do aumento da prestação de serviços, como aponta o professor Ricardo Antunes, e do implemento da tecnologia nas relações de trabalho. A inserção da tecnologia na forma como os serviços passaram a ser prestados implica, necessariamente, no aumento da mais valia absoluta, pois houve uma diminuição do custo de produção envolvido nesse processo. Uma vez que os aplicativos, aparentemente, só cumprem o papel de estabelecer a conexão entre os consumidores e os fornecedores, o custo de produção e o tempo necessário para que o produto final chegue às mãos do usuário (já que a tecnologia tende a otimizar o tempo), são diminuídos, bem como não recai sobre os aplicativos qualquer imprevisto decorrente desse movimento. Em contrapartida, o lucro aumenta.
Feitos esses apontamentos, a precarização tal qual o professor Ricardo Antunes definiu, está posta em todas as suas nuances. A pandemia, como dito anteriormente, acentuou as formas como esses aspectos se impõem, dado o aumento do número de entregadores nas ruas, a diminuição no valor das taxas de entrega e a ampliação da jornada de trabalho, que geram uma maior diferença entre a remuneração e o lucro e, consequentemente, elevam a mais valia (o que, em termos gerais, não beneficia o trabalhador).
Somado a esses fatores, que facilmente poderiam ser alocados ao quadro do trabalho em situação de periculosidade definido pelo Direito do Trabalho, está a não regulação da atividade. O trabalho de entregador por aplicativo não encontra qualquer tipo de regulamentação, não sendo caracterizado como uma relação de emprego em nenhuma modalidade. Dessa forma, não está abarcado pela CLT e não possui nenhuma lei específica que se preste a dar segurança jurídica afim de minimamente garantir a efetivação dos direitos mais imediatos (como é de se esperar da lógica jurídica burguesa).
A falta de regulamentação dessa modalidade de trabalho legitima a exploração, na medida em que ocorre o esvaziamento do significado da categoria de trabalhador. Em torno disso, houve a construção de uma narrativa de que os trabalhadores são, na verdade, empreendedores de si mesmos e, portanto, trabalham por sua própria conta, devendo assumir os riscos da atividade desenvolvida. Assim, a ideia de que não há uma relação de emprego posta que demande por intervenção legislativa ou qualquer tipo de proteção trabalhista serve para fortalecer as grandes corporações, ao passo que os trabalhadores ficam expostos. Os aplicativos retiram de si qualquer responsabilidade com a saúde, a segurança e as condições mínimas de dignidade de trabalho para esses trabalhadores e trabalhadoras. De acordo com Tom Slee, no âmbito das relações entre os trabalhadores uberizados e os aplicativos, há uma regulamentação por meio dos algoritmos, o que, segundo o autor, é um processo fadado ao fracasso (Slee, 2017).
É pela falta de qualquer intervenção pró trabalhador por parte do Estado, que os entregadores vêm se mobilizando para pleitear por direitos básicos e, ainda, buscado formas de se organizarem como categoria. Um exemplo recente é o caso da cooperativa de entregadores organizada pelo movimento dos entregadores antifascistas do Rio de Janeiro, que tem como uma de suas lideranças a motogirl Eduarda Alberto. A iniciativa se propõe a estabelecer uma ligação direta entra os entregadores e entregadoras e os restaurantes, sem a necessidade da intervenção das plataformas de entregas convencionais. O movimento dos entregadores antifascistas, que tomou proporção nacional e está presente em várias capitais do Brasil, é só um dos exemplos de organização de trabalhadores que se constituiu e ganhou força durante a pandemia.
Embora haja uma mobilização importante entre os trabalhadores uberizados de entrega por aplicativo, é imprescindível que o Estado regulamente sua situação jurídica. Para tanto, não será suficiente uma mera legislação ou uma categorização que não assegure, efetivamente, a dignidade e as condições de autodeterminação desses trabalhadores. Isso só será possível se houver a ampla participação da categoria nas discussões e nas construções legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias sobre a conjuntura.