RESUMO: O presente estudo visa abordar alguns aspectos referentes ao Estatuto do Desarmamento, Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003. O objetivo principal não é tomar um posicionamento favorável ou desfavorável às questões relativas à comercialização, uso, posse e porte de armas de fogo no Brasil, nem tampouco influenciar o leitor a seguir argumentações aqui expostas. O objetivo maior é apresentar e tentar esclarecer os motivos que influenciaram a criação da referida Lei, bem como analisar sua aplicabilidade e efeitos perante a sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: arma de fogo, desarmamento, homicídio, porte, posse.
1. INTRODUÇÃO:
Define-se como arma de fogo todo artefato produzido, industrial ou artesanalmente, com a finalidade de projeção de projeteis sólidos, denominados munições, por meio da expansão de gases obtidos com a queima de um elemento de propulsão, normalmente a pólvora. Desde a antiguidade, o homem se utiliza das armas de fogo com as mais diversas finalidades: caça, autodefesa ou a defesa dos seus domínios. Porém, essas mesmas armas podem também ser utilizadas com finalidades escusas, como instrumentos de intimidação ou ferramentas na prática de crimes mais graves.
Partindo do fato do Brasil ser notoriamente um país violento, com altos índices de criminalidade e aparecendo tristemente entre os líderes mundiais no número de óbitos intencionais, a controvérsia da dificuldade do controle do acesso às armas de fogo é uma das maiores ameaças à segurança pública e à paz social. Por um lado, o comércio ilegal abastece desde o crime organizado a infratores de menor potencial. Por outro, o comércio legalizado vende a ilusão da autodefesa, um perigo real e temível, camuflado pela falsa sensação de proteção. Por meio desse mercado, armamentos são vendidos a cidadãos comuns, no mais das vezes desprovidos dos conhecimentos adequados ao seu manuseio, elevando ainda mais os riscos de uma morte trágica.
Conforme relatório emitido em 2014 pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), o Brasil ocupa a segunda posição mundial em número de homicídios cometidos contra jovens até 19 anos. Só em 2012, ano em que o número de assassinatos ultrapassou a cifra monumental de 56 mil vítimas, mais de 11 mil jovens entre zero e 19 anos foram executados. No que diz respeito ao número de homicídios a cada 100 mil habitantes, o Brasil está em 6ª colocação, atrás de países como El Salvador e Haiti. Dentre outras causas, como consumo de drogas, aumento das desigualdades sociais – e consequente aumento da criminalidade – destaca-se o fácil acesso às armas de fogo.
Necessário, portanto, levando-se em conta o histórico macabro do país, criar norma mais rígida sobre o tema, no intuito de coibir o uso de armas de fogo e, consequentemente, reduzir a violência, além de auxiliar as autoridades competentes no exercício de um controle mais efetivo sobre o comércio, porte e posse de armas.
2. DO DIREITO A AUTODEFESA:
Todos os dias, os meios de comunicação veiculam notícias trágicas sobre latrocínios, sequestros, homicídios e mais uma infindável lista de crimes. Sejam estes delitos cometidos contra a vida, contra o patrimônio ou contra os costumes, tais notícias – muitas vezes transmitidas de forma sensacionalista e sem nenhum tipo de respeito à dignidade da pessoa humana – fomentam na sociedade a sensação de insegurança e falta de amparo por parte do Poder Público. Sem sombra de dúvida, a violência se tornou um câncer no seio da sociedade, difícil de ser combatido, sobretudo nos grandes centros urbanos.
O Estado, infelizmente, mostrou-se ineficaz no combate ao crime. Seja de forma preventiva ou punitiva, os meios empregados não surtem os efeitos esperados. No primeiro momento, o Brasil não consegue empregar com êxito práticas de prevenção à criminalização – principalmente dos jovens oriundos das classes menos favorecidas – por meio de políticas públicas que possibilitem a inclusão social e a erradicação da pobreza, através do acesso à educação, à cultura, à moradia e a empregos dignos, direitos assegurados pela Constituição Federal. No segundo momento, não consegue punir adequadamente os infratores, em razão de uma legislação falha e ultrapassada que tira toda a efetividade da pretensão punitiva, aumentando a impressão de impunidade e a ideia de que no Brasil, o crime compensa.
Em meio ao caos e ao descaso do Poder Público, sobra para o cidadão comum, refém da violência generalizada que assola o país, a sensação de abandono, de impotência e de insegurança. Assim, a posse de uma arma de fogo representa para alguns, uma forma – ou a única forma – eficaz de proteger a si e à sua família contra a ação violenta de criminosos.
Contudo, a realidade dos fatos comprova que tal crença no mais das vezes não passa de mera ilusão. Em primeiro lugar, para se defender o cidadão precisa estar apto, física e psicologicamente, a utilizar uma arma, o que nem sempre ocorre. Segundo, antes de reagir a uma situação de alto risco, como um sequestro relâmpago, por exemplo, é preciso agir rapidamente e com precisão, o que demanda um treinamento que não vem incluído com a aquisição de um revólver ou pistola.
Outro fator determinante para o controle da circulação de armas de fogo é a possibilidade concreta de uma tragédia ser causada por quem, sem ter a necessária condição psicológica, esteja portando uma. É o que acontece nos crimes motivados por questões que poderiam ser facilmente resolvidas e evitadas, como brigas de trânsito, de vizinhança e outras provocações injustas.
Portanto, fácil é perceber que para estar protegido o cidadão tem que estar além da mera posse de uma arma. Não basta ter, é preciso usar e principalmente, saber usar da forma correta, no momento correto e com sensatez.
Em hipótese alguma o direito à legítima defesa está sendo aqui questionado. O direito à vida figura como direito fundamental do homem na Carta Magna e é evidente que este pode e deve defender esse direito tanto quanto sua integridade física, seu patrimônio ou a inviolabilidade do seu domicílio.
Como é do conhecimento de todos, o Estado, por meio de seus representantes, não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, razão pela qual permite aos cidadãos a possibilidade de, em determinadas situações, agir em sua própria defesa. (GRECO, 2014, p. 341).
Assegura o Código Penal, no art. 25 que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente os meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.
Uma vez esclarecido o conceito de legítima defesa, é preciso responder às seguintes indagações: Já que, em determinadas situações, podemos agir por nós mesmos, quais são os bens possíveis de ser defendidos? Será que a vida, a integridade física, o patrimônio, a dignidade sexual, a liberdade, a honra, etc., estão amparados pela causa de justificação de legítima defesa se, efetivamente, estiverem sofrendo ou mesmo prestes a sofrer qualquer agressão? Tem-se entendido que o instituto da legítima defesa tem aplicação na proteção de qualquer bem juridicamente tutelado pela lei. Assim, pode-se, tranquilamente, desde que presentes seus requisitos, alegar a legítima defesa no amparo daquelas condutas que defendam seus bens, materiais ou não. (GRECO, 2014, p. 342).
Cabe ressaltar, que tal ação não pode ser imoderada, ultrapassando os limites do necessário à defesa do bem jurídico em questão, nem deve ser confundida com vingança pessoal. Ademais, não é excessivo lembrar que deve haver uma distinção clara entre agressão injusta e provocação injusta. Contra uma simples provocação injusta, não caberá legítima defesa, respondendo o agente pela conduta delituosa que acreditava estar protegida pelo instituto jurídico da legítima defesa.
Embora a agressão possa ser uma provocação (um tapa, um empurrão) nem toda provocação constitui verdadeira agressão (pilhérias, desafios, insultos). (GRECO, 2014, p. 346).
Destarte, o que questionamos não é o direito a autoproteção e sim o porte livre, indiscriminado e descontrolado de revólveres, pistolas, carabinas em todas as camadas da sociedade, além de outras maiores e com potencial destrutivo superior, a exemplo das usadas pelas organizações criminosas.
3. DO ESTATUTO E SUA APLICAÇÃO:
Diante de tanta violência e do medo crescente da sociedade, surge o Estatuto do Desarmamento como uma tentativa de coibir a comercialização e uso de armamentos por civis no território nacional, no intuito de dificultar a aquisição por quem seja desprovido de boas intenções, ou condições racionais de uso. O objetivo maior é reduzir o crescente número de homicídios – muitos deles perpetrados por banalidades – garantindo dessa forma, aos cidadãos de bem, um mínimo de segurança desejável.
Homicídio é a morte de um homem provocada por outro homem. É a eliminação da vida de uma pessoa praticada por outra. (CAPEZ, 2012, p. 23).
A vida é, seguramente, o maior e mais importante bem jurídico do homem. Todos têm o direito à vida. Pode-se inclusive afirmar que os outros bens jurídicos são decorrentes dela. Logo, o homicídio é, sem sombra de dúvidas, um crime de brutalidade e gravidade extremas, visto fazer cessar de forma abrupta o mais precioso direito do ser humano: o de viver. Por esta razão, tem o Estado o dever preponderante de proteger a vida, prevenindo e coibindo ato de tamanha ferocidade.
Por certo, considera-se motivo fútil a justificativa pífia para chegar à morte de alguém (ex.: negado uma venda fiada, para pagamento posterior, o agente mata o dono do estabelecimento – há incontestável distância entre o motivo e o resultado). A futilidade se caracteriza pelo contraste entre a razão da atitude do autor do crime e o resultado por ele provocado. É insignificante, vão, leviano, tirar a vida de alguém pelo simples fato de lhe ter sido negada uma venda para pagamento futuro. (NUCCI, 2013, p. 665).
É expressiva a quantidade de execuções levadas a efeito por motivos mínimos, causando dor e sofrimentos a inúmeras famílias pelo Brasil. Dores que poderiam ter sido evitadas, caso os assassinos não tivessem em seu poder uma arma de fogo. É evidente que havendo a intenção real de matar, no calor de uma discussão ou disputa, quando os ânimos se exaltam, o homicida poderia agir por outros meios e com outros “utensílios” no intuito de alcançar sua finalidade sinistra, porém nunca mataria com disparos de arma de fogo. Aliás, nesse sentido o disparo de arma de fogo guarda uma particularidade sombria: pode matar tanto a vítima pretendida, quanto vítimas não pretendidas, uma vez que não são escassos os episódios de mortes causadas pelas chamadas balas perdidas.
Analisando o Estatuto do Desarmamento, percebe-se grande evolução legislativa ao limitar sobremaneira a aquisição e o porte de armamentos pela população civil, buscando assim beneficiar a sociedade com a pretensão de diminuir extermínios da vida humana por motivos banais. No seu texto, a autorização expressa para portar armas fica restrita aos membros das forças armadas, ou aos agentes descritos no art. 144 da Constituição Federal: policiais federais, rodoviários e ferroviários federais, além de polícias civis, policiais militares e bombeiros militares. Esta prerrogativa é conferida a estes agentes em virtude de desempenharem atividades referentes à preservação e promoção da segurança e da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio e, por conseguinte, da manutenção paz social. A este rol podem são incluídos ainda os agentes e guardas prisionais, agentes de inteligência ou aqueles que desempenham atividades relacionadas à segurança pública. Incluem-se também agentes a serviço da segurança privada, desde que em serviço.
Ao cidadão comum, resta a possibilidade de aquisição por motivos especiais, desde que comprovada efetiva necessidade e atendidos os requisitos definidos nos termos do art. 4º: comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal; apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa; comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio.
Todavia, o problema maior não está no cidadão comum. Está na ação das organizações criminosas que comercializam armamentos, inclusive de grosso calibre e de uso restrito das Forças Armada e Forças Policiais à margem da lei, fornecendo assim as ferramentas necessárias à ação de outras organizações criminosas.
O § 1º do art. 1º da Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013 define crime organizado da seguinte forma: “considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional”.
A ação do crime organizado espalha o terror, gera o caos e dificulta o controle das armas de fogo, pois estas são vendidas à distância dos olhos das autoridades e fornecendo armamentos a outros grupos delinquentes, inclusive equipamentos bélicos de última geração e de uso restrito dos exércitos de diversos países, com poder de fogo muito superior aos equipamentos disponibilizados aos agentes da lei brasileiros e que posteriormente serão utilizadas nas mais variadas modalidades criminosas.
4. CONCLUSÃO:
No referendo realizado em 2005, a população brasileira foi consultada a respeito da proibição ou permissão da comercialização de armas de fogo em território nacional. Na época, ficou clara a rejeição da sociedade no que diz respeito à proibição da venda pretendida pela Lei. A maioria optou pelo não, o que significa que a comercialização destes armamentos deveria continuar permitida no país. Isso traduz claramente os baixos índices de confiança da população nos meios de proteção oferecidos pelo Estado contra a ação da criminalidade.
Confira-se exemplo de referendo invocado para a aprovação de dispositivo de lei, notando-se que ela não cria a norma, mas serve para acolher ou rejeitar o que já foi editado pelo Congresso Nacional: art. 35 da Lei 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento): “É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei § 1º. Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo popular, a ser realizado em outubro de 2005. § 2º. Em caso de aprovação do referendo popular, o disposto neste artigo entrará em vigor na data de publicação de seu resultado pelo Tribunal Superior Eleitoral”. O referendo ocorreu e venceu o “não”, motivo pelo qual o dispositivo não entrou em vigor e continua a possibilidade de comercialização de arma de fogo no Brasil. (NUCCI, 2013, p. 104, p. 105)
Apesar dos riscos de acidentes e outros transtornos mais graves de ocorrência provável pelo porte ou posse de armas de fogo por quem carece do preparo necessário para isso, o brasileiro ainda alimenta a crença de que estará mais protegido tendo, do que não tendo uma arma. Esse é o reflexo do descredito da população no Estado quanto às suas ações de fomento à segurança pública através da prevenção, combate e punição do crime.