INTRODUÇÃO
Antes de tratar a respeito da responsabilidade civil no meio ambiente de trabalho, cumpre separar e delinear os conceitos do que vem a ser meio ambiente de trabalho e o que se considera responsabilidade civil propriamente dita, que, num primeiro momento, não é um conceito simples de se assimilar como integrante do universo do trabalho tendo em vista como distintos seus objetos de tutela, mas que ao fim passa a ser – o meio ambiente de trabalho - um direito humano fundamental que deve ser protegido.
O meio ambiente é um conjunto de elementos físicos, biológicos e químicos que possuem interpendência, influenciam e são influenciados pelos seres vivos ali inseridos. Dessa forma, tendo em vista que é no meio ambiente onde se realiza toda sorte de ações humanas, com um viés constitucional, trata-se de um sujeito de direitos demandante de proteção, conforme estabeleceu o Capítulo Sétimo da Constituição Equatoriana[1].
De forma sistêmica, a Magna Carta brasileira considera a proteção do meio ambiente como sendo de competência comum dos entes federativos, como estabelece no artigo 23, VI. Mais a frente, no artigo 170, determina que a ordem econômica nacional observe o princípio da “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação[2]”.
De forma mais explícita, a Constituição Federal reservou capítulo específico para a proteção do meio ambiente e de seu equilíbrio considerando-o como direito humano e garantindo sua preservação atual e para futuras gerações através da responsabilização daqueles que o agredirem.
O Direito Ambiental e o Direito do Trabalho possuem, num primeiro momento, objetos de tutela diferentes, mas que se inter-relacionam de alguma maneira. Não seria o meio ambiente onde se inserem os trabalhadores, local destinado a tal proteção constitucional e que, em caso de violação do equilíbrio ambiental, passível de responsabilização civil do agressor?
O que se percebe é uma quebra de paradigma, da visão monetizada da proteção do trabalhador para uma noção de real responsabilidade do empregador pela saúde e segurança do meio ambiente de trabalho. Os dilemas enfrentados com relação à insalubridade, periculosidade e penosidade não podem ter seu fim nos seus respectivos adicionais.
Nas palavras de Sayonara:
“(...) Em tal contexto, estão dispostos os dados normativos que permitem um giro paradigmático, saindo de uma visão de monetarização do risco pelo pagamento de adicionais irrisórios pelo trabalho em situação perigosa, insalubre ou penosa, para uma imperiosa tutela ao meio ambiente do trabalho. A nova tutela da proteção ao meio ambiente do trabalho não somente pugna por eliminar e reduzir os danos, como persiste no esforço de repará-los quando ocorrem.
Assegura não só indenizações substanciais adequadas ao princípio da reparação integral, como também utiliza técnicas processuais que possibilitem à vítima a tutela adequada ao restabelecimento do contrato em caso de despedida, e que estabeleçam a responsabilidade objetiva do empregador em face do princípio da assunção dos riscos do negócio. Ou seja, novas tutelas, no campo do direito material e processual, são necessárias para se fazer valer a proteção dos empregados em face das doenças profissionais, ocupacionais e demais acidentes de trabalho diante da centralidade da importância que assume a saúde na preservação da existência daqueles que laboram e só sobrevivem graças à sua força de trabalho.”[3] Grifou-se.
Nessa mesma esteira Norma Sueli Padilha diz que:
“A efetivação do direito ao equilíbrio do meio ambiente exige uma atuação integrada de todos os atores envolvidos, principalmente por meio do cumprimento das regras estabelecidas pela farta legislação sobre a matéria, mas principalmente pela mudança de cultura na priorização da vida, saúde, integridade e bem-estar dos trabalhadores no ambiente de trabalho[4]”.
Tal como direito humano difuso, o direito ao meio ambiente equilibrado passa ser direito fundamental do trabalhador incidindo em sua qualidade de vida. Passa a ser não apenas um direito de “dentro de fábrica”, mas também fora dela, buscando reformar a ideia de monetarização de riscos do trabalho estabelecida pelo regime constitucional anterior relativo à Segurança e Medicina do Trabalho[5].
CASO SHELL-BASFI
Tomando como exemplo de proteção do meio ambiente do trabalho, a recente condenação da empresa Shell-Basif em mais de 370 milhões de reais em sede de Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público do Trabalho, caracterizou a responsabilidade civil frente às agressões ambientais praticadas pela empresa contra seus funcionários e o meio ambiente[6].
A responsabilidade civil sob a perspectiva do meio ambiente de trabalho leva em consideração os princípios da prevenção, da reparação coletiva, da reparação integral e dos danos morais coletivos.
No caso em tela, as empresas foram processadas em 2007 pelo Ministério Público do Trabalho em Campinas, por expor trabalhadores a substâncias altamente tóxicas, como pesticidas e venenos. Em decorrência dessa exposição, 63 trabalhadores contraíram câncer e morreram por conta da contaminação, gerando indenização para suas famílias, ou seja, cumprindo aqui o princípio da primazia da reparação integral – de certo que não cabe falar em integral, mas houve reparação individual na tentativa de ressarcir as famílias de algum modo[7].
O acordo de indenização previu ainda a construção de um hospital de prevenção e diagnóstico precoce de câncer em Paulínea, São Paulo a cargo das reclamadas, inaugurado no dia 23 de maio do ano corrente, garantindo atendimento médico vitalício a 1.058 vítimas.
Com a construção desse hospital, pode-se dizer que houve aqui atenção quanto ao cumprimento dos princípios da prevenção, da reparação coletiva e danos morais coletivos, demonstrando com isso o mais alto grau de efetividade da responsabilidade civil em decorrente dos danos causados no meio ambiente de trabalho.
Nas palavras de Norma Sueli Padilha:
“Para a conquista da sadia qualidade de vida, a ser alcançada através da fruição de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, não existe soluções parciais, ou seja, em toda e qualquer atividade humana deve estar presente, como princípio irrefutável, o respeito ecológico. O meio ambiente do trabalho, segundo o redimensionamento imposto pela Constituição Federal à questão do equilíbrio ambiental, compreende o próprio “ecossistema” que envolve as inter-relações da força do trabalho humano com os meios e formas de produção, e sua afetação no meio ambiente em que é gerada.” Grifo nosso [8]
Decisões como a estabelecida acima reforçam o caráter difuso e irradiante dos direitos humanos fundamentais “sustentados pela abordagem holística e sistêmica onde se insere a questão ambiental” [9].
Quando se toma por base as situações retro apresentadas, vê-se que o Estado procura agir para tentar resolver a situação e garantir qualidade de vida no trabalho para os empregados. Entretanto, por vezes a Administração Pública, com intuito de promover políticas públicas, não leva em conta a segurança e saúde do trabalhador.
Porém, enquanto de um lado temos decisões na esteira como o do caso acima, de outro temos a própria Administração pública mitigando as normas de saúde e segurança do trabalho, ou seja, deixando de ser exemplo na correta aplicação delas em prol de ações extremamente necessárias, porém, travestidas com cunho populista, como é o caso a seguir.
CASO DO FUMACÊ CONTRA O SURTO DE DENGUE NO DF
O Distrito Federal teve um aumento significativo nos casos de dengue no primeiro semestre do ano corrente. O Ministério Público do Trabalho do Distrito Federal (MPT-DF) interditou o local em Taguatinga Norte aonde vinha sendo produzido o método profilático contra o Aedes aegypt, visto que não cumpria métodos seguros de fabricação, denominando a produção como sendo improvisada, sem qualquer proteção à integridade da saúde dos funcionários, além de estar sendo utilizados produtos fora do prazo de validade, conforme alegaram os procuradores do trabalho[10].
A Constituição Federal nos termos do artigo 21, XXIV, determina que é competência da União organizar, manter e executar a inspeção do trabalho.
Entretanto, o governador do Distrito Federal, após esclarecer que realizou as modificações necessárias para a continuidade da produção do fumacê, ao arrepio do que fora estabelecido pela Magna Carta, disse que não poderia esperar por uma nova vistoria do MPT, pois o povo do Distrito Federal “não podia aguardar a burocracia” e por isso determinou que fosse reativado imediatamente os serviços de proteção e controle da dengue[11].
Ora, a burocracia a que se referiu o governador trata-se de vistoria dos auditores fiscais do trabalho, responsáveis técnicos para determinar se o local de trabalho atende as normas de saúde e segurança, ou seja, se o meio ambiente de trabalho consegue garantir a incolumidade dos trabalhadores.
Há evidente choque de regras no caso concreto, e como regras, - conforme elucida Ronald Dworking[12] - deve-se seguir a regra do tudo-ou-nada, isto é, a subsunção à norma. Se o constituinte originário determinou que compete à União a fiscalização do trabalho, constata-se usurpação de competência e, como bem salientou a procuradora do trabalho designado para o caso, tal fato enseja em improbidade administrativa e crime de desobediência.[13]
É inegável que a população não pode suportar o ônus da burocracia com a sua própria saúde, porém, o Direito Administrativo determina que a Administração Pública aja com base no princípio da prevenção. É senso comum que nas épocas chuvosas a aumento nas ocorrências de casos de dengue, sendo assim, é necessário que a Administração aja com prevenção, realizando métodos profiláticos constantemente para que isso seja evitado. Se houve desatenção ao referido princípio, não deverão os trabalhadores sacrificar o seu meio ambiente de trabalho. [14]
O princípio da prevenção, esculpido no artigo 225 da Constituição Federal, se antecipa ao dano ambiental, incluído o do trabalho. Casos como o descrito acima podem fazer surgir ações reparatórias com base na responsabilidade objetiva do Estado, tendo em vista que se trata de um Estado-garante, pois, suas ações estão revestidas pelo manto dos princípios da legalidade e legitimidade.
Até então se vê que os casos aqui trazidos há sempre a atuação das autoridades com competência para vistoriar, cobrar, cumprir e fazer cumprir as determinações legais em decorrência da hipossuficiência do trabalhador.
Mas, e quando o Direito do Trabalho se depara com movimentos econômicos que alteram as típicas relações de trabalho para os quais não há resposta suficientemente clara e cogente que possa realmente proteger o trabalhador e seu meio ambiente de trabalho, como é o caso da terceirização?
A PRECARIZAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO NA TERCEIRIZAÇÃO
O fenômeno social da precarização do meio ambiente de trabalho promovido pela terceirização, ou seja, quando finalmente há real efetividade do direito no contexto da responsabilização do dano, o arcabouço jurídico do qual dispõe o Estado se mostra insípido para as novas relações de trabalho que surgem sem as proteções outrora garantidas pela CLT.
A terceirização não é novidade para o Direito do Trabalho, grosso modo, trata-se de um processo onde o dono do empreendimento contrata uma empresa prestadora de serviços que possui funcionários que realizam as mesmas atividades dos empregados do empreendimento[15].
Esse fenômeno relaciona-se com a globalização na medida em que facilita a descentralização e pulverização da fabricação de produtos, fornecimento de serviços e capitais, proporcionando um maior acúmulo de riquezas, mas para isso acontecer há um custo[16].
Quando ocorre a terceirização dos serviços, os trabalhadores deixam de estabelecer identidade profissional relacionada à atividade exercida e passam a se considerar terceirizados. Estes não usufruem da mesma remuneração e das condições de trabalho quando comparados aos que são contratados de maneira efetiva pelo dono do empreendimento[17].
Além disso, normalmente, não estão sujeitos aos benefícios coletivamente conquistados por categorias estruturadas, experimentam a fragmentação do coletivo dos trabalhadores, que mitiga a força combativa do movimento sindical. A “eficiência” da terceirização relaciona-se com o barateamento de mão-de-obra e redução em geral de forma direta ou indireta, dos custos do negócio[18].
Um exemplo da precarização positivado na norma de contratação de trabalhadores temporários, Lei nº 6.019/74, com redação do artigo 4º-C, §1º dada pela Lei nº 13.467/2017, consiste na liberalidade da empresa tomadora em remunerar ou não o trabalhador temporário com o mesmo valor do seu empregado contratado direto. A mesma Lei estabelece no §4º do artigo 5º-A que:
“A contratante poderá estender ao trabalhador da empresa de prestação de serviços o mesmo atendimento médico, ambulatorial e de refeição destinado aos seus empregados, existente nas dependências da contratante, ou local por ela designado[19]”.
O simples termo poderá, cria uma realidade de existência de empregados de segunda classe e isso, consequentemente, afeta o meio ambiente de trabalho, criando pressões psicológicas capazes de afetar a saúde e bem-estar do trabalhador. Mesmo assim, a própria Lei garante que não há qualquer possibilidade de formação de vínculo trabalhista com a empresa tomadora do serviço, transferindo toda a responsabilidade para a empresa contratada. E é assim, com essa forma de externalização dos riscos que as empresas tomadoras conseguem aumentar seus lucros e ganhos de capital.
Nesse condão afirma Graça Druck:
“A terceirização é um escudo para as empresas tomadoras dos serviços. Ao nominar outra pessoa física ou jurídica como responsável pelo trabalhador, a contratante quase sempre se exime, na prática, da adoção de medidas para preservação da sua integridade física. Mesmo quando a tomadora efetua alguma medida, é sistematicamente aquém do que oferece aos empregados que formaliza. Quando existem, as ações tendem a ser insuficientes e pautadas pela transferência da responsabilidade ao ente interposto, primeiro nominado por qualquer infortúnio [20]”.
Dessa forma, é necessário que se estabeleça de quem é a responsabilidade civil quando ocorre afronta às normas de saúde e segurança no ambiente de trabalho. Esquecem-se as empresas de que a elas é incumbido o dever constitucional de redução dos riscos inerentes ao trabalho, constante no artigo 7º, inciso XXII, cabendo ainda à coletividade (trabalhadores, empregadores e a sociedade em geral) defender o ambiente do trabalho ecologicamente equilibrado (art. 225) [21].
Cabe ao empregador promover uma gestão humanizada com base em parâmetros mínimos de saúde e segurança, o que gera a ele responsabilidade nos acidentes de trabalho, tendo em vista o que estabelece o artigo 2º da CLT, isto é, “os riscos da atividade econômica” [22].
Assim, como se trata o presente artigo sobre a responsabilidade civil, o Código Civil, em interpretação aplicada a essa modalidade de trabalho, estabelece em seu art. 942 que “São solidariamente responsáveis com os autores, os coautores (...)”.
Sebastião Geraldo de Oliveira ensina que:
(...) aquele que se beneficia do serviço deve arcar, direta ou indiretamente, com todas as obrigações decorrentes da sua prestação [...] o art. 942 do Código Civil estabelece a solidariedade na reparação dos danos dos autores, coautores (...) fundamento esse sempre invocado nos julgamentos para estender a solidariedade passiva do tomador dos serviços. [23]
Observa-se que, em certa medida, não há a comunicação entre os ramos do Direito, gerando com isso solo fértil para o nascimento de contradições vantajosas para os que veem o trabalho como mercadoria e assim, eximem-se de quaisquer responsabilidades para com os trabalhadores e a proteção de seu meio ambiente de trabalho.
CONCLUSÃO
Com a realização do presente artigo, pode-se perceber que, enquanto existe uma forte tentativa do Direito calcificar princípios, regras, entendimentos acerca do meio ambiente de trabalho e da responsabilidade de todos os atoares a ele relacionados, a voracidade econômica força o surgimento de novas modalidades de trabalho e as lançam para que o Direito regulamente.
Porém, enquanto há desentendimentos, noções dissonantes entre juristas e aplicadores, os trabalhadores veem seus direitos e garantias serem flexibilizados e, muitas das vezes, anulados em prol do desenvolvimento econômico.
Sob a ameaça incessante do desemprego, os trabalhadores aceitam ser funcionários de segunda classe sem qualquer mobilização sindical, apenas meros instrumentos do acumulo de capitais das empresas tomadores que, por sua vez, lhes negam as garantias das normas de segurança e saúde do meio ambiente de trabalho e eximem-se das responsabilidades civis a elas concernentes.