CONTRATO ADMINISTRATIVO – Vinculação do valor total do contrato à modalidade de licitação que o originou As exigências dos Tribunais de Contas – Princípios da Legalidade, Economicidade, Razoabilidade, Anterioridade – Competências e Jurisdição – Possibilidade de Prorrogação dos Ajustes contratuais.
Indubitavelmente, um dos aspectos mais debatidos nos últimos anos tem sido a vinculação do valor total do contrato à modalidade de licitação que o originou. Cabe-nos a imersão neste assunto com vistas a trazer à luz alguns pontos que, comumente, são passíveis de posições conflitantes na esfera administrativa, jurisdicional, doutrinária e jurisprudencial.
Para melhor adentrar-se ao tema, deve-se esmiuçar o papel dos órgãos de controle externo com vistas a supressão do debate quanto a atividade judicante ou legislativa dos tribunais de contas, pois não raras são as vezes que ver-se a tênue linha da divisão de poderes, tão professada por Montesquieu, em seu festejado Espírito das Leis, sendo ultrapassada pelos diversos órgãos componentes do Estado.
É válido ressaltar que a Constituição Federal da república, disciplina em seu artigo 71 as atribuições do Tribunal de Contas da União, órgão vinculado ao Poder Legislativo, o qual detém em seu bojo precípuo a fiscalização das contas dos órgãos componentes do Poder Público, podendo inclusive apreciar a constitucionalidade de leis e atos do Poder Público, prerrogativa assegurada na súmula 347 do STF em julgamento do pleno ocorrido em 1963.
É necessário destacar a importância de órgãos de controle externo para a garantia da lisura e das práticas salutares à administração dos recursos públicos e a sociedade não deve transigir à sua existência. Contudo, torna-se comum questionamentos sobre os limites de atuação de tais órgãos, proveniente principalmente do Poder Executivo, que por ser ele, como o próprio nome induz, executor das ações administrativas do Estado, inquieta-se ante as orientações e exigências impostas por estes órgãos de controle, o que gera um debate que eleva inclusive ante a constitucionalidade de dos papéis exercidos por este Tribunais, enfocando a extravagância de suas competências e jurisdição.
Deve-se a priori, trazer a pleno conhecimento a real motivação do debate em tela, que como exposto, trata-se da interpretação da norma estabelecida para compras e contratações, assentadas na lei 8.666/93, cujo estabelecimento de modalidades licitatórias encontram-se dispostas. Não bastaria se trouxéssemos ao debate pontos já exauridos e exaustivamente delineados no ordenamento jurídico. O que se quer, neste artigo é o debate aprofundado da vinculação do valor total do contrato à modalidade de licitação que o originou.
Como se sabe, a supracitada lei de licitações e contratos administrativos, traz consigo em seu artigo 20, os moldes elencados para cada tipo de contratação de acordo com uma estimativa orçamentária, são eles:
I - concorrência;
II - tomada de preços;
III - convite;
IV - concurso;
V - leilão.
Tanto a doutrina quanto a jurisprudência, são unânimes em reconhecer que tais modalidades constituem formas eficazes de contratação, cada uma com sua peculiaridade e definições cuja usabilidade encontra-se inclinada uniformemente ante o universo jurídico. Não obstante a isso, surge a discussão sobre a aplicabilidade das modalidades vinculadas ao valor total da contratação, e é justamente neste ponto que se encontram as divergências técnicas e teóricas, bem como exigências questionadas pelo poder executivo.
Não parece razoável a apreciação do contexto da necessária vinculação, pois há que se ponderar diversas variáveis onde a primeira delas aparece imediatamente quando da análise do Princípio da Legalidade. No intuito de direcionar esta abordagem, faz-se necessária a análise da força vinculante das decisões dos Tribunais de Conta. Importa consignar que não há, por enquanto, no âmbito do Tribunal de contas, mecanismo similar à Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, pois o que existe, ainda que no campo das decisões é a chamada orientação doutrinária e julgamentos similares que, fossem na esfera judicial, poderiam facilmente figurar como decisões jurisprudenciais e passar a integrar a ordem jurídica nacional.
Após esta breve análise, deve-se abordar de forma contundente o tema em debate. Efetivamente, o que se discute, é a exigência de vinculação da modalidade licitatória, observando a execução total do contrato, adequando-o orçamentariamente a 60 meses.
Não há como deixar de discordar deste entendimento tão comum nas hostes dos órgãos de controle externo, pois tem-se por inexigível a conduta da autoridade competente no sentido de contratar durante 60 meses com a mesma empresa, conforme preceitua jurisprudência do STF acerca do tema:
"Não há direito líquido e certo à prorrogação de contrato celebrado com o poder público. Existência de mera expectativa de direito, dado que a decisão sobre a prorrogação do ajuste se inscreve no âmbito da discricionariedade da administração pública. (...)." (MS 26.250, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 17-2-2010, Plenário, DJE de 12-3-2010.)
Abordando didaticamente o tema, tem-se, por exemplo, a seguinte situação hipotética:
- O serviço a ser licitado trata-se de terceirização de mão-de-obra para fins de limpeza e conservação, serviço de natureza contínua portanto;
- A modalidade escolhida foi a Carta Convite, visto ter o valor estimativo anual, permanecido dentro do limite estabelecido para esta modalidade, como exemplo, pode-se ter um valor de R$ 78.000,00.
Diante da exigência da vinculação do valor total do contrato à modalidade de licitação que o originou, tal contratação não poderia sofrer prorrogação ou qualquer reajuste, mesmo que a lei 8.666/93 em seu § 1º no artigo 65 quando trata da alteração contratual permita, ainda que devidamente justificado. Muito menos poder-se-ia haver a renovação contratual, pois por esta tese, o valor total do contrato deveria ser R$ 390.000,00, ou seja, a modalidade para esta licitação deveria ser a Tomada de Preços.
Resta clarividente que, em obrigar a autoridade competente a ter que vincular um processo licitatório por 60 meses, o órgão que o exige, desconsidera a vontade do administrador e o interesse da administração, e por conseqüência o mediato interesse público, visto que a empresa vencedora do certame criaria, aí sim, uma expectativa de direito consubstanciada no planejamento de longo prazo, pois incide sobre tal medida inclusive nuances financeiras que impactariam a participação de empresas de menor porte, pois neste caso, na exigência editalícia de garantias ou análise do capital social, poderia haver a inabilitação de empresas que conseguiriam cumprir eficientemente o contrato proposto.
Ainda no tocante ao planejamento de longo prazo, encontrar-se-ia uma barreira intransponível, a não ser quando da utilização de subterfúgios empíricos para o fazer. Trata-se das variáveis cuja previsão não pode ser feita, como exemplo, na situação hipotética neste trabalho aventada, os dissídios trabalhistas, os aumentos salariais, as demissões, aposentadorias ou morte de trabalhadores, quando da prestação continuada do serviço.
É inaceitável o argumento da possibilidade de acrescer todos os riscos no valor inicial para fins de licitação com vistas ao atendimento da orientação vinculadora à modalidade. Ora é no mínimo estranho ao princípio da economicidade tal artifício, pois exorbitaria os valores comumente praticados para as contratações simples e que podem perfeitamente ser avaliadas anualmente, inclusive levando em consideração a qualidade da prestação do serviço.
Exige-se ainda a análise da situação sob a luz do Princípio da Razoabilidade, pois somente ele esclarece alguns aspectos de tal exigibilidade de órgãos dos controle externo. Para se ter maior clareza é necessário um questionamento, qual seja; é razoável acrescer os gastos do poder público com publicação em jornal de grande circulação, comprometimento orçamentário de cinco anos em apenas um exercício financeiro, a redução da discricionariedade constitucional do agente público, a exacerbação de poderes de órgãos fiscalizadores, por mero receio à fraude? Pois tal exigência, em seu conteúdo subjetivo, trata de elevar o administrador público à condição de criminoso em potencial. Tal enfoque padece no mínimo de razoabilidade.
Incabível é admitir que seja o órgão fiscalizador agente legislativo da vontade da administração, assim, ultrapassaria o liame da tripartição de poderes e adentraria na esfera judicante, bem como, e principalmente na esfera executiva. Cabe ao legislador, caso avalie que tal orientação decorre de motivos devidamente justificados, adequar a norma a esta realidade, contudo, por momento, perdurará tal debate e a contraposição de idéias, o que, destaque-se, é salutar para a democracia, porém, incorre na total inépcia qualquer tentativa de punição ao administrador que utilize-se do expediente da contratação fora das exigências dos tribunais, pois desde as bancas acadêmicas apreende-se a seguinte lição:
Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal, ou em bom latim: “Nullum crimem, nulla poena sine praena lege".
Pedro Roberto Pontual de Carvalho Júnior
Advogado