INTRODUÇÃO
Sabe-se que foi publicada, no dia 07 de outubro, a Lei 13.344/16, conhecida como Lei de Tráfico de Pessoas, cuja vacatio legis foi de 45 dias, e entrou em vigor dia 21 de novembro de 2016.
Neste contexto, a supracitada Lei incrementou a luta contra o tráfico de pessoas, estabelecendo mecanismos de prevenção e repressão, criando, assim, um novo crime, tipificado no art. 149-A do CP.
Além disso, a referida Lei promoveu alterações no Código de Processo Penal, fortalecendo e favorecendo a investigação criminal por meio da ampliação do poder requisitório do delegado de polícia, permitindo que este e, também, o membro do Ministério Público requisitem, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem, imediatamente, os meios técnicos adequados para acesso aos dados telefônicos ou telemáticos de localização da vítima e/ou suspeitos do crime.
Por outro lado, além de tais mudanças, a supramencionada Lei causou certa perplexidade no ordenamento jurídico, pois ao permitir que o delegado de Polícia e/ou o membro do Ministério Público requisite o acesso aos dados telefônicos ou telemáticos, abriu margem à discussão sobre a constitucionalidade de tal instituto.
Sendo assim, foi interposta, no dia 17 de janeiro do presente ano, a ADI nº 5642, a qual suscita a inconstitucionalidade do art. 11 da supramencionada lei, alegando que ao fornecer os dados telefônicos ou telemáticos de localização, da vítima ou do suspeito do delito, fere-se o direito à intimidade e privacidade da pessoa.
Neste diapasão, o presente trabalho pretende evidenciar o tema proposto, por meio dos seus objetivos e do método de pesquisa, analisando as alterações que a Lei nº 13.344 trouxe o ordenamento jurídico brasileiro, ampliando os meios requisitórios do delegado de Polícia e, consequentemente, favorecendo a investigação criminal, mas, ao mesmo tempo, causando certas discussões à respeito dos dados e comunicação de dados, suscitando, até mesmo, a proposição de uma ADI para decidir se o fornecimento dos dados telefônicos ou telemáticos é inconstitucional por ferir o direito à intimidade e privacidade da pessoa.
2 AS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI Nº 13.344
Consoante explanado anteriormente, no dia 21 de novembro de 2016, a Lei 13.344/16, chamada Lei de Tráfico de Pessoas, entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, inovando ao criar o delito de Tráfico de pessoas, tipificado no art. 149-A, do Código Penal.
Vale lembrar, que a matéria já possuía disciplina em tratado internacional, sendo combatido pelo Protocolo Adicional à Convenção da ONU contra o Crime Organizado relativo à prevenção, repressão e punição do tráfico de pessoas, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 5.017/04.
Contudo, em que pese o compromisso assumido pelo Brasil na órbita internacional, o tráfico de pessoas era reprimido criminalmente pelo ordenamento jurídico nacional apenas em sua forma de exploração sexual, por meio de crimes hospedados no próprio Código Penal (arts. 231 e 231-A do CP).
Sendo assim, esse cenário mudou com a edição da novel lei, de modo que o Brasil desonera-se dessa obrigação e estabelece mecanismos de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas.
Deste modo, outras formas de exploração passaram a ser punidas (remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão e adoção ilegal), o que representa inegável avanço no combate ao tráfico de pessoas, respeitando, sobretudo, o disposto no artigo 3º do pacto internacional.
Interessante constatar que a Lei 13.344/16, na linha do que dispõe o tratado de direitos humanos, é calcada em três eixos, a saber: prevenção, repressão e assistência à vítima (art. 1º, parágrafo único).
Ademais, além de incrementar a luta contra o tráfico de pessoas, estabelecendo mecanismos de prevenção e repressão, e criando novo crime no art. 149-A do CP, a referida Lei promoveu alterações no Código de Processo Penal, fortalecendo a investigação criminal por meio da ampliação do poder requisitório do delegado de polícia e acrescentando dois dispositivos no CPP: arts. 13-A e 13-B.
Neste diapasão, o art. 13-A do CPP, menos complexo, trata da requisição de dados cadastrais (informações atinentes à própria identidade, como nome, data de nascimento, RG, CPF, filiação e endereço), ou seja, permite que, em determinados crimes que envolvem restrição da liberdade da vítima, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia requisite, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, informações cadastrais da vítima ou de suspeitos, sendo que a ordem deve ser atendida em 24 horas.
Vale ressaltar, ainda, que a obtenção direta de dados cadastrais já possuía previsão na legislação, uma vez que a requisição de dados cadastrais pela Polícia Judiciária ou Ministério Público no âmbito da persecução penal possui amparo também na Lei do Crime Organizado (art. 15 da Lei 12.850/13) e na Lei de Lavagem de Capitais (art. 17-A da Lei 9.613/98), que se referem expressamente ao investigado, e não estipulam prazo para cumprimento.
De outro norte, o art. 13-B, do CPP, é mais abstruso e dispõe sobre o acesso direto pelo delegado de polícia ou Ministério Público, ou indireto após autorização judicial, de dados telefônicos ou telemáticos de localização, assim, estabelece que, na investigação de crime de tráfico de pessoas, o membro do Parquet ou o delegado de Polícia pode requisitar, mediante autorização judicial, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem, imediatamente, os meios técnicos adequados, como sinais, informações e outros, que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso. Todavia, como a própria norma explica (§1º do art. 13-B), sinal significa posicionamento da estação de cobertura, setorização e intensidade de radiofrequência (as chamadas ERBs – estações radio base).
Deste modo, observa-se que tais alterações favorecerem o investigação criminal, tornando-a mais célere, e, sobretudo, ampliando o poder requisitório do delegado de Polícia.
2.1 O crime de tráfico de pessoas
Conforme ventilado anteriormente, a novel Lei incrementou um novo crime no Código Penal, tipificado no art. 149-A, o qual configura o tráfico de pessoas, delito este que abrange condutas como agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso.
Assim, vale ressaltar o que dispõe o referido artigo, ipsis litteris:
Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual.
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência;
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. § 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa.
Trata-se de tipo misto alternativo, ou seja, crime de ação múltipla que pode ser perpetrado mediante a prática de qualquer das condutas supracitadas, mas, de outro lado, há atos que denotam permanência, tais como transportar e alojar, casos em que a consumação se prolonga no tempo. É um crime bicomum, não existindo condição especial do agente ou da vítima e, ainda, admite-se a forma tentada do referido crime.
Desta feita, como elemento subjetivo do tipo, demanda-se a finalidade especial, não, necessariamente, a exploração sexual, mas, alternativamente, a remoção de órgãos, trabalho escravo, servidão ou adoção ilegal.
Sendo assim, a consumação do delito independe da efetiva concretização da vontade específica, bastando a realização de um dos núcleos do tipo mediante violência física ou moral, fraude ou abuso.
Além disso, enquanto nos crimes dos artigos 231 e 231-A a violência ou fraude atuava como majorante, no crime de tráfico de pessoas passa a fazer parte do próprio tipo penal.
No entanto, vale lembrar, que os referidos artigos foram revogados (tráfico internacional e interno para fim de exploração sexual), contudo não se cuida de abolitio criminis, pois houve apenas a revogação formal do tipo penal, mas não a supressão material do fato criminoso, ou melhor, ocorreu, na verdade, a incidência do princípio da continuidade normativo-típica, pois a conduta continua sendo definida como crime, muito embora tenha havido a alteração topográfica do tipo penal.
Outrossim, se o dissentimento é requisito do crime, o consentimento válido do ofendido exclui a tipicidade da conduta (não atuando como causa supralegal de exclusão da ilicitude).
Não deve ser considerada válida a concordância de pessoa vulnerável, entendida como o menor de 18 anos. O critério corresponde ao conceito de vulnerável emoldurado no artigo 218-B do CP, que protege o menor de 18 anos contra a exploração sexual, e não o patamar de 14 anos definido no artigo 217-A do CP, que tipifica o crime de estupro de vulnerável. Afinal, se o menor de 18 anos não pode consentir na sua exploração sexual, também não pode aquiescer validamente para seu tráfico com outras finalidades. Esse é o entendimento que se coaduna com o compromisso internacional assumido pelo Brasil, que especificamente remete à essa idade.
De outro norte, diferentemente do tratado internacional, a Lei 13.344/16 não listou o pagamento de benefícios como meio de execução do delito, o que significa que em tese seria lícito o tráfico de pessoas mediante contraprestação aceita pelo indivíduo, porém é muito difícil essa situação não envolver abuso ou fraude.
A legislação tornou mais rigorosas as penalidades. Logo, em se tratando de lex gravior, a lei não pode retroagir para prejudicar o réu.
As majorantes (1/3 à 1/2) definidas no parágrafo 1º incidem no caso de: (a) crime cometido por funcionário público, (b) contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência, (c) prevalência de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função, (d) retirada da vítima do território nacional.
Deste modo, fácil notar que o tráfico internacional de pessoas, em vez de constituir crime próprio, traduz uma causa de aumento de pena. O problema é que o legislador considerou como majorante apenas a retirada da vítima do país, olvidando-se de sua colocação no território nacional, em lamentável equívoco.
Por outro lado, no parágrafo 2º está estampada a figura do tráfico de pessoas minorado (1/3 à 2/3), cabível ao agente primário que não integra organização criminosa.
O delito de tráfico de pessoas, em que pese não hediondo ou equiparado, sofre uma restrição relativa àquela categoria de crimes: requisito temporal mais severo (cumprimento de mais de 2/3 da pena) para obtenção do livramento condicional (art. 83, V do CP). Todavia, contra esse crime não incidem as demais vedações da Lei 8.072/90.
A ação penal é pública incondicionada, e a atribuição para investigação é da Polícia Civil, salvo se houver repercussão interestadual ou internacional (art. 144, §1º da CF), ocasião em que a apuração será deslocada para a Polícia Federal. Já a competência é da Justiça Estadual, em regra, devendo atuar a Justiça Federal em caso de transnacionalidade (art. 109, V da CF).
2.2 O Poder de requisição do Delegado de Polícia e a Lei nº 13.344
O fato de a lei autorizar a autoridade de Polícia Judiciária a adotar medidas acautelatórias, em atuação complementar ao Judiciário, decorre da própria reminiscência histórica da carreira.
Desta feita, a figura do delegado de polícia exercia muitas funções judiciais por delegação. Tudo começou com a criação da Intendência Geral de Polícia em 1808, onde o Intendente-Geral era um desembargador de justiça com status de ministro de Estado, o qual podia designar pessoas para exercer a jurisdição por delegação (daí a nomenclatura delegado).
Ademais, a partir da independência, em 1822, e o advento do Código Criminal de 1832, sobreveio a figura do Chefe de Polícia da Corte, nomeado entre desembargadores e juízes de direito, cabendo chefiar os juízes de paz e delegados de polícia.
Outrossim, os delegados de polícia realizavam, além da investigação, a instrução criminal e juízo preliminary, sendo que, posteriormente, com a Lei 2.033/1871 e o respectivo Decreto 4.824/1871, houve a definitiva separação entre as funções policiais e judiciais, muito embora as funções tenham continuado umbilicalmente conectadas.
Essa íntima conexão entre as carreiras é evidenciada inclusive por normas internacionais, como por exemplo o que dispõe o art. 7.5., da Convenção Americana de Direitos Humanos:
Artigo 7. Direito à liberdade pessoal: 5 Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
Por outro lado, a partir da Constituição da República de 1988, muitas instituições ligadas à persecução penal ganharam força, especialmente o Poder Judiciário e o Ministério Público, que, por meio das prerrogativas estabelecidas ao longo do texto constitucional, passaram atuar com ampla autonomia e independência funcional.
Ocorre que, o legislador esqueceu-se da porta de entrada do sistema criminal, isto é, a Delegacia de Polícia, uma vez que o Delegado é o primeiro agente estatal a dar um contorno jurídico aos fatos, aparentemente, criminais do cotidiano social, fazendo justiça quase que de maneira imediata, ora decretando a prisão em flagrante de criminosos, ora restituindo o status libertatis de pessoas detidas de maneira ilegal ou arbitrária.
Neste diapasão, tendo em vista que a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia é responsável por subsidiar quase 100% das ações penais, tornou-se imprescindível a sua valorização, ainda mais num momento em que a criminalidade está cada vez mais organizada, assim, cabe ao Estado fortalecer suas instituições.
Quando se fala em segurança pública, a primeira coisa que se destaca é o recrudescimento das leis penais, como se o Direito Penal fosse a solução para todos os problemas.
Por outro lado, pouco se fala no fortalecimento das polícias judiciárias, que desempenham papel extremamente relevante no correto exercício do direito de punir pertencente ao Estado, já que, infelizmente, os “especialistas” em segurança pública, bem como os governantes e legisladores, não se atentaram para o fato de que mais importante que a severidade da pena, é a certeza da pena, o que só é possível por meio de uma escorreita investigação criminal.
Ademais, levando em consideração os fatos supramencionados, no dia 20 de junho de 2013, foi publicada a Lei Federal n°12.830/13, a qual dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado de Polícia, cujo objetivo deste diploma normativo foi regulamentar, ou melhor, explicitar, algumas das atribuições da Autoridade de Polícia Judiciária, conferindo-lhe uma maior autonomia e independência na condução do inquérito policial.
Assim sendo, a referida lei, em seu artigo 2º, deixa claro que as funções de Polícia Judiciária e apuração de infrações penais realizadas por Delegado de Polícia são “de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado”, sendo que no mesmo artigo, em seu § 2º, resta evidenciado o chamado “Poder Requisitório” do Delegado de Polícia, eis que no exercício de suas legítimas funções lhe é dado, por força da lei, o poder de requisitar quaisquer “informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”.
Desta feita, é notório que os dados cadastrais e respectivas documentações constantes de arquivos e bancos de dados de empresas de telecomunicação móvel ou fixa ou mesmo de instituições financeiras, se adequam perfeitamente a essa espécie de informação a ser colhida diretamente pelo Delegado de Polícia na presidência do Inquérito Policial ou de qualquer outra investigação de Polícia Judiciária.
Nesse sentido, são robustas as palavras utilizadas pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, ao apreciar o tema em questão:
Assim, o inquérito policial, ainda que visto como procedimento administrativo pré-processual, é um instrumento prévio e de triagem contra acusações levianas e precipitadas, uma verdadeira garantia do cidadão e da sociedade, tendo dentro dele uma significativa parcela de procedimento jurídico, vez que poderá ensejar prisão e outras providências cautelares que afetam os direitos individuais. Um inquérito policial bem elaborado presta-se tanto à justa causa para a subsequente ação penal, quanto à absolvição do inocente.
Desta forma, não há que se contestar a atribuição constitucional das Polícias Judiciárias, chefiadas por Delegados de Polícia de Carreira, para a persecução criminal, nos estritos termos do artigo 144, I e IV e § 4º, CF, assim sendo, vale mencionar o entendimento do referido artigo:
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
IV - polícias civis;
§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
No entanto, não é apenas implicitamente que tais poderes requisitórios são atribuíveis ao Delegado de Polícia. Nos termos do artigo 4º, CPP, cabe à Polícia Judiciária, dirigida pelas “Autoridades Policiais” (Delegados de Polícia) em suas respectivas circunscrições, a apuração das infrações penais e sua autoria, devendo, obviamente, para tanto, serem dotadas dos instrumentos necessários.
Neste ínterim, o artigo 6º, inciso III, do mesmo codex determina que cabe à Autoridade Policial “colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”.
Não é outra a lição de Jeferson Botelho Pereira, senão vejamos:
O sobredito poder requisitório permite à Autoridade Policial adotar todas as providências que se fizerem necessárias à coleta das provas, para a mais breve e salutar elucidação dos fatos em apuração, podendo assim requisitar a particulares, a agentes públicos, bem como a estabelecimentos públicos ou privados o auxílio necessário à identificação e instrumentalização das provas, a exemplo, da requisição de imagens registradas por circuito interno de gravação próprio e de informações não acobertadas por sigilo legal, materializando-as na investigação policial.
Não bastasse o já exposto, vem a lume a Lei 12.850/13, a qual em seu artigo 15 estabelece textualmente sem deixar sombra de qualquer dúvida:
O Delegado de Polícia e o Ministério Público terão acesso, independentemente de autorização judicial, apenas aos dados cadastrais do investigado que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos na Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito.
Nesta baila, percebe-se que a Lei 12.850/2013, a qual é posterior à Lei 12.830/2013, veio com o objetivo de aclarar e nortear o poder geral de requisição previsto no art.2°, §2°, desse último diploma normativo, especificando as hipóteses em que o Delegado de Polícia poderá requisitar informações diretamente às empresas telefônicas, instituições financeiras etc.
De outro norte, muito embora as supracitadas Leis já tivessem explanado à respeito do poder requisitório do Delegado de Polícia, a novel Lei nº 13.344 alterou o art. 13-A, do CPP, ampliando tal poder do Delegado, assim, insta citar o texto da lei que se refere à esta alteração:
Art. 11. O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido dos seguintes arts. 13-A e 13-B:
Art. 13-A. Nos crimes previstos nos arts. 148, 149 e 149-A, no § 3º do art. 158 e no art. 159 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e no art. 239 da Lei no8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderá requisitar, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos.
Deste modo, o art. 13-A do CPP, trata da requisição de dados cadastrais (informações atinentes à própria identidade, como nome, data de nascimento, RG, CPF, filiação e endereço), ou seja, permite que, em determinados crimes que envolvam restrição da liberdade da vítima, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia requisite, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, informações cadastrais da vítima ou de suspeitos, sendo que a ordem deve ser atendida em 24 horas.
Vale lembrar que a requisição de dados cadastrais pela Polícia Judiciária ou Ministério Público no âmbito da persecução penal possui previsão, também, na Lei do Crime Organizado (art. 15 da Lei 12.850/13) e na Lei de Lavagem de Capitais (art. 17-A da Lei 9.613/98), que se referem expressamente ao investigado, e não estipulam prazo para cumprimento.
Assim, a supramencionada Lei permite que a requisição do delegado, após omissão do juiz, independa de parecer do Ministério Público, isto é, a lei não exigiu essa formalidade, considerando que a presidência do inquérito policial é do delegado de polícia, bem como é inconteste a necessidade de celeridade na investigação de crime dessa natureza.
Além do mais, a lei postou o delegado de polícia e o membro do Parquet em idêntico patamar requisitório, o que faz desarrazoada qualquer perda de tempo em busca de parecer opinativo de um em relação ao outro.
2.2.1 Cautela subsidiária por inércia e a reserva de jurisdição temporária
Consoante, mencionado anteriormente, a Lei nº 13.344 alterou o art. 13-B, do CPP, segue o texto:
Art. 13-B. Se necessário à prevenção e à repressão dos crimes relacionados ao tráfico de pessoas, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderão requisitar, mediante autorização judicial, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso.
Nesta baila, segundo o §4º do referido artigo, não havendo manifestação judicial no prazo de 12 horas, a autoridade competente requisitará às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem, imediatamente, os dados, os quais permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso. Trata-se de cláusula de reserva de jurisdição temporária, pois, num primeiro momento, a medida é postulada em juízo, e, somente em caso de não apreciação judicial com celeridade, a obtenção da informação passa para a esfera de requisição, com determinação direta à operadora de telefonia.
O caminho estabelecido pela lei (postulação em juízo num primeiro momento, e requisição direta em caso de inércia judicial) não é estranho aos pilares da nossa ordem juridical, afinal, se a lei poderia ter, simplesmente, dispensado a autorização judicial, dada a ausência de cláusula constitucional de jurisdição, pode adotar solução intermediária.
Demais disso, não é a primeira vez que o legislador cria mecanismos para suprir a omissão estatal, bastando lembrar da ação penal privada subsidiária da pública (art. 29 do CPP e art. 5°, LIX da CF); trata-se de mais uma ferramenta de controle de efetividade dos órgãos e Poderes.
Todavia, é perfeitamente plausível que o delegado de polícia exerça funções judiciais em situações pontuais, já que o ordenamento jurídico concede essa permissão na liberdade provisória com fiança (art. 322 do CPP), prisão em flagrante (art. 304 do CPP), condução coercitiva (arts. 201, §1º, 218, 260, 278 e 319 do CPP), ação controlada (art. 8º, §1º da Lei 12.850/13, art. 16 da Lei 13.260/16 e art. 9º da Lei 13.344/16), dentre outras hipóteses.
Destarte, quanto aos dados telefônicos e telemáticos de localização, em regra podem ser acessados pela autoridade investigativa ou pela parte acusadora sem prévia ordem judicial. Por isso, é lícita a requisição junto à operadora de telefonia, pelo delegado de polícia, de informações pretéritas das ERBs utilizadas pelo investigado.
3. A ADI 5642
Como se sabe, a Lei nº 13.344 é, atualmente, objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI Nº 5642, a qual foi interposta em 17 de janeiro deste ano pela Associação Nacional das Operadoras de celulares –ACEL, e que vem suscitando debates, devido a sua repercussão geral, sobre a inviolabilidade do sigilo e acesso aos dados e informações cadastrais de usuários dos mais diversos meios de comunicação.
Segundo a alegação presente na ADI 5642, a referida lei, em seu artigo 11 estaria, supostamente, viciada por uma inconstitucionalidade que vai contra o dispositivo constitucional presente no artigo 5º, incisos X e XII da CF ao estabelecer a seguinte alteração, já mencionada anteriormente, do Código de Processo Penal:
Art. 11. O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar acrescido dos seguintes arts. 13-A e 13-B:
Art. 13-A. Nos crimes previstos nos arts. 148, 149 e 149-A, no § 3º do art. 158 e no art. 159 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e no art. 239 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderá requisitar, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos.
Parágrafo único. A requisição, que será atendida no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, conterá:
I - o nome da autoridade requisitante;
II - o número do inquérito policial; e
III - a identificação da unidade de polícia judiciária responsável pela investigação.
Art. 13-B. Se necessário à prevenção e à repressão dos crimes relacionados ao tráfico de pessoas, o membro do Ministério Público ou o delegado de polícia poderão requisitar, mediante autorização judicial, às empresas prestadoras de serviço de telecomunicações e/ou telemática que disponibilizem imediatamente os meios técnicos adequados – como sinais, informações e outros – que permitam a localização da vítima ou dos suspeitos do delito em curso.
Deste modo, a inconstitucionalidade desta lei federal residiria na requisição, por parte do Ministério Público ou do Delegado de Polícia, de dados e informações cadastrais de usuários suspeitos, por diversos meios de comunicação, sem a devida autorização judicial, o que estaria em desconformidade ao previsto constitucionalmente, uma vez que se estabelece que é inviolável o sigilo de comunicações telefônicas, e de demais meios de comunicação, salvo por ordem judicial, conforme dispõe o art. 5º, XII, da CF, supramencionado.
Contudo, o que se discute é a diferença entre dados telefônicos e comunicação de dados telefônicos, bem como a proteção constitucional que é dada à ambos. Assim, faz-se necessário a análise dos dois institutos, a fim de tentar, ao menos, compreender se a referida Lei está viciada no que tange à ampliação do poder requisitório do Delegado de Polícia quanto à requisição, por exemplo, de dados telefônicos da vítima ou suspeito do crime de tráfico de pessoas, o que sera analisado no próximo capítulo.
4. DADOS X COMUNICAÇÃO DE DADOS
Como se sabe, a Lei nº 13.344 causou certa perplexidade quando o assunto diz respeito ao sigilo dos dados telefônicos, o que gerou muitas discussões sobre o tema e, até mesmo foi interposta uma ADI, a qual será analisada no próximo capítulo.
Assim, viu-se que a novel Lei autorizou o acesso direto pelo delegado de polícia ou Ministério Público, ou indireto após autorização judicial, de dados telefônicos ou telemáticos de localização.
De outro norte, à título introdutório, vale lembrar que os dados telefônicos correspondem aos registros no aparelho móvel, tais como as ligações telefônicas, as chamadas originadas ou recebidas, além das informações quanto à localização das Estações Rádio Base (ERB) acessadas com o aparelho, nas proximidades, que podem levar à localização aproximada de uma pessoa.
Desta forma, a CF em seu art. 5º, X, não trata, especificamente, da quebra de sigilo de dados telefônicos, como faz o inciso XII, do mesmo diploma legal, ao tartar das comunicações de dados telefônicos.
Por outro lado, calha ressaltar que a comunicação dos dados (art. 5º, XII da CF) possui tratamento diferente dos dados em si (art. 5º, X da CF), consoante supramencionado, uma vez que, no caso da comunicação, a Constituição estabelece cláusula absoluta de jurisdição, exigindo ordem judicial para sua captação, sendo assim, importante analisar o que aborda o art. 5º, XII, da CF:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Já quanto aos dados, em princípio, submetem-se à cláusula apenas relativa de jurisdição, ficando o Judiciário não com a primeira palavra, mas com a última, podendo o Estado-Investigação ou Estado-Acusação acessar diretamente certas informações. O que não impede que a legislação infraconstitucional demande chancela judicial prévia para determinados dados.
Neste contexto, vale ressaltar o escólio do renomado doutrinador, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, acerca do tema: “o objeto protegido pelo inc. XII do art. 5.º da CF – ao assegurar a inviolabilidade do sigilo – não são os dados em si, mas a sua comunicação. A troca de informações (comunicação) é que não pode ser violada por sujeito estranho à comunicação”, ou seja, o inciso XII não cuida da tutela dos dados em si (cuja proteção encontra-se abrangida pelo inciso X), mas apenas da sua comunicação.
Ademais, da análise da doutrina alienígena, conclui-se que não se admitem mais direitos absolutos, pois, conforme afirma Gilmar Mendes: “da análise dos direitos individuais pode-se extrair a conclusão direta de que direitos, liberdades, poderes e garantias são passíveis de limitação ou restrição”, e ainda a esse respeito, Virgílio Afonso da Silva ensina, que “todo direito fundamental é, portanto, restringível”, o que leva à conclusão que absolutizar o direito à intimidade, inviabilizaria o exercício de outros direitos de igual importância.
Nesse sentido, o legislador fez questão de diferenciar, na norma explicativa do §2º, I, do art. 13-B, dados, de um lado, e comunicação de dados, de outro, ao dizer que o sinal “não permitirá acesso ao conteúdo da comunicação de qualquer natureza, que dependerá de autorização judicial”.
Destarte, quanto aos dados telefônicos e telemáticos de localização, em regra podem ser acessados pela autoridade investigativa ou pela parte acusadora sem prévia ordem judicial. Por isso, é lícita a requisição junto à operadora de telefonia, pelo delegado de polícia, de informações pretéritas das ERBs utilizadas pelo investigado.
Todavia, para a obtenção de tais dados de localização em tempo real, o legislador, que poderia ter deixado o acesso na esfera exclusiva do poder requisitório da autoridade de Polícia Judiciária, passou a exigir autorização judicial, assim, procurou adotar um meio termo, relativizando a demanda por chancela do Judiciário se houver inércia de algumas horas, tendo em vista a urgência de investigação envolvendo vítima traficada, é o que se chama de cautela subsidiária por inércia, já mencionada anteriormente.
Deste modo, no que tange aos dados cadastrais, existe uma polêmica com duas posições divergentes. A primeira é no sentido de que eles não diriam respeito à intimidade da pessoa, não tendo, portanto, a proteção de sigilo, sendo, portanto, prescindível a decisão judicial para quebra; a segunda, em sentido oposto, de que tais dados estariam relacionados à vida privada, gozando dessa proteção.
Parte considerável da jurisprudência entende que os dados cadastrais não estão acobertados pelo sigilo, prescindindo o seu fornecimento de necessidade de uma autorização judicial; já outra vertente entende que há sigilo a ser resguardado, sendo que devem ser fornecidos apenas se houver ponderação do Judiciário.
Neste diapasão, faz-se mister citar o entendimento do Supremo Tribunal Federal, e do Superior Tribunal de Justiça à respeito do tema:
Não há ilegalidade na quebra do sigilo de dados cadastrais de linhas telefônicas os quais, conforme o tribunal de origem, foram obtidos por autoridade policial que recebeu de magistrado senha fornecida pela Corregedoria de Polícia Judiciária. Isso porque, conforme entendimentos do STF e do STJ, o disposto no artigo 5º, XII, da CF não impede o acesso aos dados em si, ou seja, o objeto protegido pelo direito à inviolabilidade do sigilo não são os dados em si, mas tão somente a comunicação desses dados. O entendimento do tribunal de origem é que sobre os dados cadastrais de linhas telefônicas inexiste previsão constitucional ou legal de sigilo, já que não fazem parte da intimidade da pessoa, assim como sobre eles não paira o princípio da reserva jurisdicional. Tal entendimento está em consonância com a jurisprudência do STJ” (AgReg no HC 181546/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, 5ª. Turma, DJ 11.02.2014, DJe 18.02.2014).
E ainda:
“O teor das comunicações efetuadas pelo telefone e os dados transmitidos por via telefônica são abrangidos pela inviolabilidade do sigilo - artigo 5.º, inciso XII, da Constituição Federal -, sendo indispensável a prévia autorização judicial para a sua quebra, o que não ocorre no que tange aos dados cadastrais, externos ao conteúdo das transmissões telemáticas. Não se constata ilegalidade no proceder policial, que requereu à operadora de telefonia móvel responsável pela Estação Rádio-Base o registro dos telefones que utilizaram o serviço na localidade, em dia e hora da prática do crime. A autoridade policial atuou no exercício do seu mister constitucional, figurando a diligência dentre outras realizadas ao longo de quase 7 (sete) anos de investigação” (HC 247331/RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, 6ª. Turma, DJ 21.08.2014, DJe 03.09.2014).
Assim sendo, embora a lei possa ser criticada por flexibilizar uma garantia constitucional, o legislador pretendeu uma conciliação entre o resguardo da intimidade (cuja quebra só poderia se dar por ordem judicial) e a eficiência na investigação e prevenção de crimes (dada a necessidade de acesso das autoridades aos dados, em caso de urgência, o que se justifica ainda mais ante a inércia judicial), sobretudo nas hipóteses urgentes e graves, como a localização de uma vítima em situação de perigo.
Todavia, o que se pode debater é apenas o fato de restringir essa previsão para a hipótese de crimes praticados em contexto de tráfico de pessoas (o que suscitará questionamentos, não sendo razoável a restrição do cabimento do acesso imediato a tais dados, sobretudo diante da mora judicial), afinal, por que foi feita a alteração para incluir o dispositivo justamente no Código de Processo Penal, que trata de todos os crimes previstos no ordenamento jurídico.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
À vista de tudo que foi explanado, convém, pois, entender que a redação da norma certamente poderia ter sido melhor, mas nem por isso se deve chegar ao extremo de defender a sua inconstitucionalidade, conforme a ADI 5642 propõe em seu texto.
Portanto, a Lei 13.344/16 é de suma relevância para o ordenamento jurídico pátrio, pois além de reprimir o tráfico de pessoas, reforçou o poder requisitório do delegado de polícia, preocupando-se em municiá-lo dos meios necessários para coletar provas de forma célere e eficaz em benefício da coletividade.