Repercussão da Ação Penal no Processo Administrativo Disciplinar


14/01/2017 às 15h54
Por Bernardes Pereira - Consultoria, Assessoria e Educação Jurídica

RESUMO

O Processo Administrativo Disciplinar é um instituto do Direito no qual recai uma grande responsabilidade que será de julgar os atos ilícitos praticados por um servidor público na esfera dos três poderes sem qualquer influência do poder Judiciário, uma vez que a Administração tem total autonomia para apuração das irregularidades por ventura ocorridas. Obrigatoriamente, este ato se violar condutas tipicamente penais, também será instaurado a competente instrução penal para averiguação e apuração dos fatos, através da aplicação das normas do Código de Processo Penal brasileiro. Busca-se em meio de estudo da doutrina, jurisprudência e norma positivada estabelecer um liame de condutas e procedimentos para que em havendo absolvição em uma esfera esse efeitos se projetem em outra. Claramente se vê há insuficiência de recursos técnicos, periciais disponíveis à Administração para apuração de condutas funcionais que violam normas dos estatutos que regem determinado órgão público. A lei específica 8.112/90 é omissa em alguns casos como se vê adiante, sendo necessária constante intervenção extralegal para a correta aplicação do direito ao caso concreto, qual sejam, doutrina, jurisprudência e princípios ferais do Direito. Espera-se que assim como ocorre na relação do Direito Civil com o Penal, onde a coisa julgada penal faz coisa julgada civil, ocorra também na seara Administrativa. Busca-se tal objetivo, aplicando assim o Direito de forma plena e inequívoca, mantendo sempre os princípios basilares do Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Ação Penal. Processo Administrativo. Servidor Público.

1 INTRODUÇÃO

A influência do Direito Penal no âmbito do Direito Administrativo tem grande relevância para toda a sociedade, pois invade o que é de mais precioso para o indivíduo, sua liberdade, conjugada com o direito de exercer determinado trabalho para o sustento próprio, e por vezes de uma família, buscando manter a dignidade da pessoa humana.

Imbuído da preocupação com algumas dificuldades que os operadores do direito esbarram quando da aplicação dos efeitos da absolvição penal ou a sua desconsideração por parte de alguns juízes, que aferroados na independência das instâncias abstraem o poder de alcance de uma sobre a outra, resolve-se trazer ao debate a presente situação.

Pela leitura dos artigos 125 e 126 da Lei 8112/90, pode-se abstrair alguns questionamentos que a Lei sucinta duvidar: Há a possibilidade de suspensão do Processo Administrativo Disciplinar enquanto não há julgamento do mesmo fato no Processo Penal, assim como ocorre no Processo Civil? O Processo Administrativo possui meios eficientes, assim como dispões a Polícia Técnica Judiciária, para desvendar os enigmas de um crime e/ou infração disciplinar?

Essas situações são comuns tantos nas lides forenses, como também nos procedimentos disciplinares. Uma vez que o poder-dever de punir encontra limites traçados pelo Direito e pelos valores morais, pelas próprias características do Estado Democrático de Direito.

Nessa vanguarda, tem-se como ponto de equilíbrio o garantismo jurídico que surge exatamente da observação desse cenário de descompasso entre as normas estatais e o mundo real de práticas autoritárias nas atuações administrativas e penais. A ideia é aproximar essas duas realidades díspares, mas que não deveriam ser antagônicas. O garantismo visa então unir a normatividade à efetividade. Na preleção de Rangel (2013):

A teoria do garantismo penal defendida por Luigi Ferrajoli é originária de um movimento do uso alternativo do direito nascido na Itália nos anos setenta por intermédio de juízes do grupo Magistratura Democrática (dentre eles Ferrajoli), sendo uma consequência da evolução histórica dos direitos da humanidade, que, hodiernamente, considera o acusado não como objeto de investigação estatal, mas sim como sujeito de direitos, tutelado pelo Estado, que passa a ter o poder-dever de protegê-lo, em qualquer fase do processo (investigatório ou propriamente punitivo). Segundo a fórmula garantista, na produção das leis (e também nas suas interpretações e aplicações), seus conteúdos materiais devem ser vinculados a princípios e valores estampados nas constituições dos estados democráticos em que vigorem.

Destaque-se que as bases conceituais do garantismo penal subsidiam uma teoria geral do garantismo, aplicáveis, pois, a todos os demais ramos do direito, dentre eles o direito administrativo disciplinar, por sua proximidade com o direito penal.

Tanto o Direito Penal, como o Administrativo, buscam em seus independentes e autônomos procedimentos a busca da verdade, para que em nome dela possam tipificar a infração, com o objetivo de uma futura punição, ou que da absolvição surta o devido efeito legal. Prima-se cada vez mais pela eficiência da Administração Pública, e que esta seja alcançada da forma mais transparente e inequívoca possível.

Busca-se abordar as controvérsias, similaridades e vicissitudes existentes na doutrina, jurisprudências e normas positivadas para que o fim do Direito seja alcançado, qual seja a pacificação social. Pretende-se trazer ao conhecimento do leitor as linhas gerais do instituto do Processo Administrativo disciplinar e a similaridade com possível instauração da Ação Penal paralela à apuração dos fatos.

Assim, a teoria do garantismo jurídico garante a possibilidade de interpretação da norma estatutária à luz de princípios penais basilares presentes na Carta Magna, estabelecendo nova conexão entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Disciplinar. Para Dezan (2005):

Os princípios e institutos de direito penal, secularmente estudados e desenvolvidos, são plenamente aplicáveis ao direito administrativo disciplinar, mormente quando direitos e garantias fundamentais constitucionalmente qualificados são objetos de relação jurídica, formal e material, formada entre o Estado-administração, no exercício do poder disciplinar, e o servidor público acusado, em instrumento apuratório e punitivo, de cometimento de falta grave ou média.

O estudo do tema irá basear-se na abordagem qualitativa, através de pesquisa bibliográfica, teórica com levantamento documental, analisando doutrinas, pesquisas científicas na área e jurisprudências. O método de abordagem adotado será o dialético, pois se elabora uma conclusão a partir de contradições e teses e o método de procedimento consubstanciará de forma comparativa, evidenciando semelhanças e oposições sobre o assunto.

2 PROCESSO E PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

Para que se possa adentrar ao estudo do Processo Administrativo Disciplinar faz-se necessário estabelecer algumas noções de conceituação sobre o tema, visando diferenciar as várias formas processual e procedimental que trata o Direito brasileiro. Como se sabe o Direito Processual é uma ciência autônoma no campo da dogmática jurídica, sendo formada por princípios próprios, decorrentes da função do processo, tendo este por objeto específico.

Em face da clássica dicotomia que divide o direito público e o privado, o direito processual claramente esta incluído no primeiro, uma vez que governa a atividade jurisdicional do Estado. Envolvendo-se as suas normas com a de todos os demais campos do direito, suas raízes principalmente prendem-se estreitamente ao tronco do direito constitucional.

Pepeu (2011, p. 1, grifos do autor), tece as seguintes considerações sobre processo e procedimento:

De todas as conceituações existentes acerca de Processo e Procedimento, existe uma equação simples que se pode aplicar: [Procedimento (=rito) + Litigância = Processo]Da leitura atenta da expressão acima exposta, chega-se a algumas conclusões: a) existe procedimento sem processo; b) não existe processo sem procedimento; e c) o elemento essencial caracterizador do processo quer seja ele judicial ou administrativo é a litigância. Dentre os diversos tipos de processo existente no direito positivo pátrio tais como o civil, o penal, o trabalhista, emerge nesta exposição o Processo Administrativo Disciplinar que é espécie do gênero Processo Administrativo. (itálico e negrito do autor).

O direito processual objetiva o sistema de princípios e regras, mediantes os quais se obtém a prestação jurisdicional do Estado, necessárias a solução de litígio entre os particulares ou entre o Estado e estes. No entanto, o processo administrativo está previsto na CF em seu artigo 5º, LV, que dita: ‘aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com meios e recursos a ela inerentes’.

Portanto, o processo administrativo é o ato que regula todo o procedimento adotado pela Administração Pública, seja ela direita ou indireta, desde que estes sejam devidamente documentados, sejam eles de contratação ou de punição. Daí a existência das várias espécies de Procedimento Administrativo de punição como: Processo Administrativo do trabalho, de abastecimento e ao tabelamento de preços, de direito urbanístico, de pesos e medidas, de infrações de trânsito, de vigilância sanitária, de infrações contra a ordem econômica (COSTA, 1997, p.154).

A expressão Processo Administrativo foi escolhida para englobar os procedimentos adotados pela Administração, com intuito de registrar seus atos, o controle da conduta de seus agentes e administrados, a compatibilização do interesse público e privado, a outorga de direitos e a solução de controvérsias entre essa e seus administrados e agentes.

O processo administrativo em linhas gerais, segundo Gasparini (1995, p.48): “[...] pode versar sobre os mais diversos temas, tratando de a padronização de um bem, a aplicação de uma penalidade, objetivar uma decisão; encerrar uma denúncia e até exigir um tributo”.

Daí, pode-se inferir que o processo administrativo é essencial para o bom andamento da máquina administrativa, tendo, em linhas gerais, uma caracterização latu senso sobre este instituto do Direito, enquanto que o Processo Administrativo Disciplinar é tido por strictu senso, como se verá adiante.

3 DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

O processo administrativo é uma Garantia Constitucional aos cidadãos e foi regulamentado tardiamente pala Lei 9.784/99, na administração pública Federal. No âmbito das administrações Estaduais e Municipais, seria demasiadamente difícil pesquisar cada nuance de legislação processual administrativa. Embora muitas das Leis Estaduais e Municipais tragam basicamente em seu corpo, o que foi regulamentado pela Lei Federal. (PEPEU, 2008, p.1).

É notório que muito se perdeu com a regulamentação tardia do assunto, uma vez que só ocorreu onze anos depois da promulgação da Constituição Federal de 1988 e nove anos após a criação do Estatuto do Servidor Público Civil da União - Lei 8112/90. Tem-se aí um longo período sem qualquer regulamentação, a qual permitia ao administrador agir discricionariamente em seus atos os quais podiam levar a constantes procedimentos despóticos. Os abusos e a arbitrariedade reinavam no âmbito da administração pública, muito foi revisto com relação a essas práticas.

Dentre as várias nuances sobre Processo Administrativo existentes, destaca-se o processo que trata da questão disciplinar, quanto à conduta do funcionário público ou a ele equiparado. A medida, ora exemplificada, consta no ordenamento-mor, qual seja a CF, que disciplina em seu artigo 41, § 1º, II, in verbis:

Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. § 1º - o servidor público estável só perderá o cargo:

[...]

II – mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa.

A Constituição Federal traz garantias tanto aos seus servidores, como o devido processo legal, o direito à estabilidade bem como assegura à Sociedade a devida apuração, inclusive com a perda do cargo público àqueles que desvirtuam-se da sua função, causando dano, tanto à Administração quanto aos administrados.

3.1 Dos Quesitos para a Aplicabilidade Formal do Processo Administrativo Disciplinar

Para a indubitável aplicação do procedimento administrativo, além do respeito ao princípio do contraditório e da ampla defesa, já expostos, é necessário ter em mente que outros vícios, sejam eles formais ou não, podem corroborar com a inaplicabilidade do princípio da eficiência, arrolada no artigo 37 da CF. A inobservância a este tipo de procedimento pode lesar tanto o Estado como o administrado. Dessa forma, o processo deve ser compreendido, na visão de (BITTENCOURT, 2005), como:

Uma garantia de todo aquele que está sendo acusado de uma determinada falta. Nesse sentido, o servidor, acusado de uma infração disciplinar, terá a oportunidade de apresentar a sua defesa e comprovar suas alegações no desenvolvimento de um processo administrativo. Este será o ambiente adequado e idôneo em que o acusado poderá defender-se.

Qualquer cidadão responsável e comprometido com os princípios da moralidade e do interesse público tem o direito de formular denúncia contra servidores públicos, a ser recebida desde que com a obediência dos quesitos legais de admissibilidade que o artigo 144 da Lei 8.112/90 dispõe: “Art. 144. As denúncias sobre irregularidades serão objetos de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade”.

A denúncia para o ente federal deverá estar em conformidade com o artigo acima descrito, para que se instaure sindicância ou processo administrativo, sob pena de nulidade do feito. Isto se deve, em respeito ao princípio da legalidade e a garantia do devido processo legal. Em conseqüência, não se instaura feito disciplinar fundamentado em denúncia apócrifa que não atenda os requisitos legais.

O vilipêndio a esse artigo é considerado vício procedimental originário, ensejando arquivamento do feito. O servidor prejudicado poderá ingressar em juízo pedindo trancamento do processo, através de mandado de segurança. Por outro lado, se a Administração vislumbrar razoável possibilidade da existência dos fatos denunciados anonimamente poderá promover diligências e a partir de indícios coligidos nesse trabalho, instaurar o processo, desvinculando-o totalmente da infração anônima.

3.3 Da Forma, Tempo e Lugar dos Atos do Processo.

O capítulo VIII da Lei 9784/99, nos artigos 22 a 25, trata da forma, tempo e lugar dos atos do processo administrativo no âmbito federal, ou seja, há requisitos formais que devem ser cumpridos, evitando-se assim possíveis nulidades por vícios formais, dando ao referido instituto um caráter solene. Exige-se, portanto, que o processo esteja situado no espaço-tempo, considerando o espaço a sede do órgão responsável pela apuração dos fatos; e tempo o horário de expediente dos funcionários constituídos para a comissão, que será composta por três servidores estáveis, conforme previsão do artigo 149 da Lei 8112/90. Busca-se assim, evitar qualquer prejuízo ao administrado ou mesmo à Administração Pública, quando da alegação de vícios formais.

3.4 Fases do Processo Disciplinar

O processo administrativo desdobra-se em três fases, conforme dispõe o artigo 151 e seus incisos da Lei 8112/90, a saber:

Art. 151. O processo disciplinar se desenvolve nas seguintes fases:

I – instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão;

II – inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório;

III – julgamento.

Assim, para a instauração do processo administrativo será necessário que se siga algumas formalidades legais, para que como visto acima, se evite prejuízos e vícios na apuração dos fatos considerados ofensivos à Administração Pública.

3.4.1 Da instauração da comissão

A instauração do processo administrativo disciplinar tem início com a publicação da portaria que constituiu as comissões processantes, compostas de três servidores estáveis designados pela autoridade competente como dispõe o artigo 149 da Lei n. 8.112/90. Observa-se, portanto, que, em virtude do princípio da oficialidade, compete à Administração, o impulso de ofício do processo. A autoridade que tiver conhecimento de infração no serviço público está obrigada a realizar a sua apuração imediata.

Eventuais impedimentos e suspeições com relação aos membros da comissão devem ser levantados para evitar a nulidade do processo administrativo. A Lei n. 8.112/90 determina que "não poderá participar de comissão de sindicância ou de inquérito, cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau" (artigo 149, § 2º). Outras hipóteses de impedimento ou suspensão estão previstas nos artigos. 18 a 21 da Lei n. 9.784/99, que pode ser utilizada subsidiariamente no âmbito federal. Quando se fala em direito estadual, distrital ou municipal é necessário que se tenha criado Lei específica instituidora de comissões processantes, o que na realidade nada mais é do que uma cópia da Lei Federal com as modificações pertinentes.

Para que se crie uma comissão processante eficiente, será necessária a nomeação de servidores responsáveis e conscientes da importante função que irão desempenhar e da verdadeira finalidade desse instituto.

Desse modo, destaca-se a importância de instituir comissões permanentes de sindicância e processo disciplinar no interior da Administração, em respeito ao princípio do juiz natural, conforme expressamente previsto na CF em seu artigo 5º, incisos XXXVII – "não haverá juízo ou tribunal de exceção"; e LIII - "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente". Respeitando-se tais determinações, garante-se a imparcialidade do processamento do feito, bem como a independência do juízo em relação às partes envolvidas, para se alcançar um julgamento objetivo e sem qualquer prejulgamento.

3.4.2 Do inquérito

Inquérito é palavra de origem latina que significa pesquisa, procura, é a busca da verdade que determina a fase investigatória dos fatos, de modo a ensejar o juízo do administrador sobre as supostas irregularidades praticadas. O Inquérito Administrativo é dividido em três subfases: Instrução, Defesa e Relatório.

3.4.2.1 Instrução

Na instrução são apurados de forma precisa os fatos que deram origem ao Processo Administrativo Disciplinar. A instrução é a principal fase investigatória do Processo Administrativo Disciplinar, pois nela que é que devem estar contidos os maiores números de evidências, fatos, depoimentos, etc., capazes de confirmar ou negar as acusações que pesam sobre o servidor. Durante a coleta de provas, podem ser ouvidas testemunhas indicadas pela própria comissão, arroladas pelo acusado ou por terceiros. Caso haja contradição entre os depoimentos, é possível a utilização do instrumento da "acareação", bem como a utilização de peritos técnicos.

Concluídos os procedimentos, a comissão decidirá se o servidor acusado deverá ou não ser indiciado. Em caso afirmativo deve o servidor ser citado para que apresente sua defesa escrita (GUIMARÃES, 1998).

Os professores Alexandrino e Vicente (2010, p.105) citam uma característica peculiar do Processo Administrativo Disciplinar, in verbis:

Aqui cabe uma observação interessante. Vemos que no Processo Administrativo Disciplinar ocorre uma inversão da ordem dos procedimentos se compararmos ao processo judicial civil. Neste, logo após a inicial, o réu é citado para apresentar sua defesa escrita (contestação) e indicar as provas que possui e as que pretende produzir. Só então, no processo judicial, tem início à instrução. No Processo Administrativo Disciplinar, como acabamos de ver, a instrução precede a citação e a defesa escrita (que, aqui, não recebe o nome de contestação).

3.4.2.2 Defesa

Como visto acima, na defesa do acusado deve ser garantido princípio do due process of law. Os citados princípios do contraditório e da ampla defesa são conseqüências lógicas do devido processo legal.

O sentido em que o postulado do devido processo legal deve ser entendido nesta fase do Processo Administrativo Disciplinar é o processual. Deriva daí que como pressupostos ou meio necessários ao devido processo legal, no aspecto processual, pode-se registrar a necessidade de:

a) Conhecimento claro da imputação;

b) Possibilidade de apresentação de alegações contrárias à acusação;

c) Igualdade das partes no processo;

d) Direito ao acompanhamento do processo;

e) Faculdade de oferecer contraprova àquela que se baseia a acusação; e

f) Possibilidade de exercício, no prazo e na forma estabelecida na lei, de defesa escrita, com assistência técnica.

No Processo Administrativo Disciplinar, se por acaso o indiciado não apresentar sua defesa escrita no prazo estipulado, será, igualmente ao processo civil, declarada sua revelia, como se vê no artigo 161, da Lei 8.112/90, in verbis: “considerar-se-á revel o indiciado que, regularmente citado, não apresentar defesa no prazo legal”. Mas os efeitos dessa, devido à busca da verdade material, são completamente diversos. Não surge nenhuma presunção contra o servidor, e a autoridade instauradora do processo é obrigada a designar um defensor dativo, que deve ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível do indiciado, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao indiciado, conforme regula o § 2ºdo artigoo e lei supracitados.

3.4.2.3 Relatório

No relatório deverão estar informadas, mesmo que resumidamente, as principais peças dos autos. Deverão ser mencionadas também as provas em que a comissão se baseou para tomar sua decisão.

O relatório deverá ser sempre conclusivo, se posicionando quanto à responsabilidade ou à inocência do servidor. No caso de o relatório se direcionar quanto à responsabilidade do servidor, devem ser indicados os dispositivos legais transgredidos e as circunstâncias agravantes ou atenuantes.

Por fim, terminado o relatório, os trabalhos da comissão se encerram, e o Processo Administrativo Disciplinar deve ser enviado à autoridade que determinou a sua instauração para que se proceda ao julgamento.

3.4.2.4 Julgamento

Estabelecidos no artigo 167 a 173 da Lei 8.112/90 estabelece a forma como será julgado o processo administrativo disciplinar, sendo estabelecidos prazos e formalidades.

O julgamento será proferido pela autoridade instauradora do processo, salvo se a penalidade a ser aplicada exceder a sua alçada. Nesse julgamento a autoridade competente acatará o relatório da comissão, salvo quando contrário à prova dos autos, regra aplicada pelo artigo 168 da Lei n. 8.112/90.

O princípio da proporcionalidade faz-se presente quando da aplicação das penalidades, uma vez que a autoridade julgadora deverá considerar a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais para a escolha da sanção.

Não se deve considerar eficiente um processo disciplinar apenas por ter sido aplicada uma penalidade ao servidor. A punição não é o objetivo final e necessário do processo administrativo. A finalidade desse instrumento consiste em permitir a apresentação de resposta pelo acusado a qualquer denúncia efetuada dentro da Administração Pública, esclarecimentos de fatos e eventual aplicação de penalidade, uma vez verificada a responsabilidade administrativa de algum agente, ou seja, o que se busca na verdade é a retidão do serviço público, a transparência e a eficiência garantindo a todos os administrados a certeza do fiel cumprimento das obrigações institucionais (BITTENCOURT, 2005).

3.5 Da revisão processual

Estabelece sobre a admissibilidade de proposição de revisão processual a norma do artigo 174 da Lei 8.212/90, in literis: “O processo disciplinar poderá ser revisto, a qualquer tempo, a pedido ou de ofício, quando se aduzirem fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada”.

Neste diapasão, entende-se que a revisão administrativa poderá ocorrer ex officio ou a pedido do servidor ou de pessoa da família, caso o mesmo tenha falecido, ou esteja ausente ou desaparecido. A legislação federal impõe que na revisão do Processo Administrativo Disciplinar, sejam seguidos certos requisitos para a revisão, quais sejam, que o ônus da prova caiba ao requerente; e que da revisão do Processo Disciplinar não caiba agravamento da penalidade. É a vedação da reformatio in pejus, que, a contrario senso, é possível desde que seguidos alguns pressupostos no Processo Administrativo dito ordinário.

Quanto à revisão judicial esta será sempre possível, desde que não decorrido o prazo prescricional ou decadencial cabível para a ação em comento. Estabelece-se que o recurso interposto deverá ser analisado por comissão processante composta por servidores distintos daqueles do feito ordinário. A decisão administrativa, por o Brasil não seguir o sistema do contencioso administrativo, não tem o que é denominado no direito anglo-americano de final enforcing power o que, muitos autores chamam de coisa julgada administrativa no ordenamento jurídico pátrio.

Em sentido diametralmente oposto, Pepeu (2004: 2), discorda do entendimento que no Brasil não existe coisa julgada administrativa, e assevera: “A impossibilidade de se rever, de ofício ou por provocação, o ato em seara administrativa é verdadeira coisa julgada administrativa”.

Neste diapasão, cita o Procurador do Estado do Rio de Janeiro Sérgio Ferraz, que em tintas fortes assegura: (SUNFELD et al., 2002, p.9)

A coisa julgada administrativa: apresentação do tema. A transposição de tais considerações, para o âmbito do processo administrativo, deflagra nuances das mais interessantes. Anote-se, em primeiro lugar, que a própria idéia de coisa julgada administrativa sempre foi um puctum dolens. E não só porque a final enforcing power da decisão última da Administração sempre fosse meramente relativa, eis que, em nosso sistema jurídico, invariavelmente se apresenta possível promover seu reexame em sede jurisdicional. Além dessa consideração, invariavelmente se proclamou uma possibilidade ampla, mas com limites, de auto-revisão do ato administrativo, como ainda um dever irrestrito de sua anulação permanecendo em aberto o debate quanto aos limites da convalidação e saneamento do ato administrativo. Claro está que, num panorama de tal dimensão, não só descabe falar em coisa julgada administrativa, como até mesmo de pouca utilidade se revela o conceito de preclusão que, quando muito, só incidiria contra o requerente do processo administrativo.

Portanto, segundo os estudiosos acima elencados, é possível a utilização do termo "coisa julgada administrativa" no direito positivo nacional abarcando esta expressão a impossibilidade de se rever de ofício ou por provocação o ato administrativo por parte da administração pública, fazendo ressalva aos atos nulos que jamais se convalidam.

4 AÇÃO PENAL E SUAS SIMILITUDES - RESPONSABILIDADE DO SERVIDOR INFRATOR

O artigo 121 da Lei 8.112/90 expõe claramente que o servidor público responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas funções. Deste ponto pode-se inferir que há uma clara autonomia das matérias, haja vista a presença do conectivo e, que em caráter aditivo, impõe e respalda o caráter independente das searas. A sobredita autonomia se afirma no artigo 125 do mesmo diploma legal, “As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si”.

Pela responsabilidade civil, entende-se o ato doloso ou culposo, comissivo ou omissivo do servidor que cause dano ao erário ou a terceiros. Da responsabilidade penal abrange os crimes ou contravenções realizadas por servidores no ato de suas funções ou em razão delas. Para a aplicação responsabilidade administrativa, segundo Oliveira (2005) basta o servidor agir de forma omissiva ou comissiva no desempenho de cargo ou função.

(...) ilícito é o comportamento contrário àquele estabelecido pela norma jurídica, que é pressuposto da sanção. É a conduta contrária à devida. É o antijurídico. Neste sentido, ilicitude e antijuridicidade são sinônimos e confundem-se num mesmo conceito, de unívoco conteúdo.

Lei nº 8.112, de 11/12/90 - Art. 121. O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.

Observa-se que no Código Civil o ilícito possui definição genérica: “CC - Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Acarreta para o servidor o dever de indenizar, não tendo, portanto caráter punitivo.

O ilícito penal é a conduta descrita no Código Penal (e leis especiais), acarretando responsabilização pessoal do agente, com índole punitiva apurável em ritos previstos no Código de Processo Penal. O ilícito administrativo-disciplinar por sua vez é a conduta contrária aos dispositivos estatutários praticados como atos funcionais pelo servidor.

4.1 Autonomia das Matérias

Esta independência ou autonomia das esferas penais e administrativas vê-se pelo artigo 126 da mesma norma, que não é absoluta, pois traz claramente exposta a conexão das searas: “Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.”, daí pode-se inferir que apesar da independência das materiais, há, em certos casos, obrigatoriedade de conexão das decisões judicial penal e administrativa. Assunto tema principal deste trabalho.

Considerando que o título do trabalho possa levar à ideia de abordar os crimes praticados pelo servidor público, em sua dimensão Penal, (crimes contra a administração pública dos arts. 312 a 326 do CP e os crimes contra a ordem tributária do art. 3º da Lei nº 8.137, de 27/12/90, abuso de autoridade, conforme definidos nos arts. 3º e 4º da Lei nº 4.898, de 09/12/65.), esse não é o objetivo, tratar-se-á, segundo (TEIXEIRA, 2010) apenas nos aspectos em que estes tiverem reflexo no mundo processual disciplinar.

Os atos funcionais cometidos por servidor que podem ser considerados crimes não serão administrativamente apurados como tal - como crimes - em função da independência das instâncias, da harmonia entre os Poderes e das competências exclusivas de cada Poder. Não se aceita que uma comissão disciplinar, no termo de indiciação ou no relatório de um processo administrativo disciplinar, enquadre o ato funcional infracional que também configura crime no dispositivo da lei penal, sob pena de sobrestar a instância administrativa até a manifestação definitiva da sede penal, exclusivamente competente para tal. Mas isso não significa que tais atos restem impunes na sede administrativa. Ao contrário, se o ato associado ao exercício do cargo público comporta tal gravidade e reprovabilidade social a ponto de configurar crime, também configurará ilícito administrativo disciplinar e, dentro dessa definição e com o devido processo legal da Lei nº 8.112, de 11/12/90, é que será administrativamente apurado e, se for o caso, penalizado, com enquadramento em algum dos incisos dos arts. 116, 117 ou 132 dessa Lei (grifo nosso).

4.1 Tipificação e Enquadramentos de Condutas

A Lei n. 8.112/90, o chamado Regime Jurídico Único da esfera federal, refere-se à tipificação da falta disciplinar no artigo 161, in verbis: "Tipificada a infração disciplinar, será formulada a indiciação do servidor, com a especificação dos fatos a ele imputados e das respectivas provas”.

O legislador foi infeliz na redação desse artigo, tanto quanto foi impreciso em outros dispositivos da mesma Lei. E pode-se dizer que acabou, por efeito em cascata, estendendo a confusão – e instabilidade - a Estados e Municípios, que na verdade fizeram uma compilação dos preceitos normativos, adaptando-os aos respectivos contextos em que estão inseridos.

Na linguagem técnico-jurídica, todavia, como em outros ramos da ciência, as palavras ganham sentido específico. O verbo tipificar significa tornar típico, ou seja, caracterizar determinada coisa ou ação como um tipo, estabelecendo uma relação com um modelo pré-existente. No campo jurídico-penal, por essa linha semântica, surgiu a figura da tipicidade, que, no dizer do clássico mestre (PEREIRA, 2007, p. 129), é"a qualidade de um fato que abrange todos os elementos da definição legal de um delito”. A tipificação, portanto, está relacionada à caracterização de uma conduta de acordo com o tipo (modelo, espécie) delineado na lei penal. Defendendo a atipicidade como regente do processo administrativo disciplinar, Cretella Júnior (1998, p.79-80), adunou:

A falta disciplinar é atípica; a infração penal é típica. (...) O poder disciplinar é, em tese, discricionário. Não vinculam os pressupostos de antecedência da lei na determinação da falta ou da sanção. Não se aplica à instância administrativa o princípio da reserva legal que domina, regularmente, a doutrina em lei penal (nullum crimen, nulla poena sine lege). Não há, em matéria disciplinar, a exigência de verificação legal da falta que se caracteriza, in genere, como violação dos deveres funcionais, a serem explicitados em atos regulamentares ou administrativos. (Itálico e parênteses no original)

Portanto, pode-se inferir que a infração cometida pelo servidor público sabidamente é atípica, deve-se fazer a leitura como enquadramento por aproximação na norma geral disciplinar. Obviamente, o legislador não pode prever em tipos, todas as possibilidades de incorreções na conduta funcional dos servidores públicos. Qualquer tentativa nesse sentido resultaria em um trabalho de tanto fôlego quanto a produção de um novíssimo dicionário.

No que diz respeito em relação do direito penal com o processo disciplinar, não há que se falar em tipificação de faltas disciplinares. Neste sentido, Alves (2006: p. 3) leciona com autoridade:

[...] o rol de condutas marginais no serviço público é de tal ordem amplo que nenhum exercício de criatividade esgotaria o campo da previsão. Os fatos seriam sempre mais ricos que a produção legislativa. Por isso, os servidores públicos estão vinculados a regras gerais de conduta, exemplificativas, suscetíveis de enquadramento a partir do confronto com princípios gerais do direito, com os princípios inerentes ao processo disciplinar e, especialmente, os princípios traçados como fundamentais ao exercício da função pública, postos com relevo no artigo 37, caput, da Carta Política.

Também pela atipicidade do ilícito disciplinar, a professora Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2005):

No direito administrativo prevalece a atipicidade. São muito poucas as infrações descritas na lei, como ocorre com o abandono de cargo. A maior parte delas fica sujeita à discricionariedade administrativa diante de cada caso concreto; é a autoridade julgadora que vai enquadrar o ilícito como ‘falta grave’, ‘procedimento irregular’, ‘ineficiência no serviço’, incontinência pública’, ou outras infrações previstas de modo indefinido na legislação estatutária. Para esse fim, deve ser levada em consideração a gravidade do ilícito e as conseqüências para o serviço.

Para que se tenha uma ampla noção do que foi dito, deve-se observar a diferença de redação entre tipos penais e as normas disciplinares. Enquanto que no diploma penal o tipo vem descrito de forma minudente, fechada; nos estatutos disciplinares a referência será aberta, abrangente. Percebe-se claramente o que se propõe a expor no artigo 117 da Lei nº 8.112/90: ”Ao servidor é proibido: [...] XV – promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição.” Como se vê não há qualquer detalhe para aferimento. É uma redação genérica, que não faz qualquer menção a um tipo específico como se vê no ordenamento penal, a exemplo temos no artigo 121 do Decreto-Lei 2.848/43 – Código Penal (CP): “matar alguém”. Vê se que não há como abranger esta conduta, ela se apresenta fechada, não dá qualquer margem a subjetividade.

Reafirmando o sobredito, o mestre Gasparini (1995, p.98) em tintas fortes assevera: “As faltas disciplinares não são objeto de tipificação. Elas são enquadradas, ajustadas, aproximadas do plano geral traçado nos estatutos”. Neste sentido, a motivação, por ser princípio do processo administrativo, deve acompanhar esse enquadramento, como garantia ao imputado e como segurança à própria Administração, que não poderá ter confundida a sua atividade de controle com medidas que beirão a arbitrariedade.

Em contrário senso, modernos doutrinadores, embasados no direito comparado, asseguram que há tipicidade no Direito Administrativo brasileiro, Mattos (2006, p.1037), deixa registrado que:

Apesar de ilustres administrativistas defenderem que o princípio da tipicidade (tatbstand) não se aplica ao processo disciplinar, após o advento da Constituição de 1988, onde o direito administrativo foi constitucionalizado, o princípio da legalidade (artigo 37, CF e o artigo 5º, II, CF) e o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CF) não permitem uma acusação genérica, sem ponto de apoio em uma norma legal descritiva que reprima a conduta tida como ilícita. Na atual fase do direito constitucional administrativo não mais vigora a visão de que a acusação no processo disciplinar pode ser ampla e dissociada de um tipo legal. (Itálico e parênteses no original).

Para tanto, por mais que se tente igualar a conduta violadora de normas executadas pelo servidor público, esta jamais poderá ser tipificada, pois, como visto, a tipificação não pode dar ensejo à subjetividade, deve ser clara e objetiva. Como se afirmou nas primeiras linhas, a conduta para ser típica é necessária se ater a uma série de requisitos como expõe Capes (2003: 173) ao definir tipicidade:

Consiste na descrição abstrata da conduta humana feita pormenorizadamente pela lei penal e correspondente a um fato criminoso (tipo incriminador). O tipo é, portanto, como um molde criado pela lei, em que está descrito o crime com todos os seus elementos, de modo que as pessoas sabem que só cometerão algum delito se vierem a realizar uma conduta idêntica à constante no modelo penal.

Daí pode-se inferir que a generalidade da descrição típica elimina a sua própria razão de existir, criando insegurança no meio social e violando o princípio da reserva legal. Não há propriamente um tipo, quando se castiga todo o ato contrário à revolução, ou conduta contrária aos interesses comuns. Assim, diante do conceito de tipicidade trazida e trabalhada pelos penalistas, e analisando-se as proposições das duas correntes, não há como negar, por mais contradições que se possa trazer a discussão, que as condutas violadoras de normas administrativas jamais poderão ser consideradas típicas.

5 DA CONDUTA DO SERVIDOR INFRATOR

O cometimento de infração pelo servidor público que o obriga a responder a processo administrativo disciplinar ou sindicância, devidamente processados por comissão de três servidores estáveis, na conformidade dos procedimentos já definidos anteriormente, em cujo término ao agente transgressor poderão ser aplicadas as penalidades administrativas previstas no estatuto do funcionalismo, quais sejam, advertência, suspensão, demissão, etc.

Daí entende-se como responsabilidade administrativa, que concerne ao vínculo entre o Estado-Administração e seu servidor e cujo objetivo é preservar a regularidade do serviço público e a disciplina funcional. A seu turno, o cometimento de crimes contra a Administração Pública sujeita o funcionário delinqüente a responder a processos penais perante o Poder Judiciário, instaurados a requerimento do Ministério Público mediante o oferecimento de denúncia, cujos atos e formalidades são regrados no Código de Processo Penal (CPP), processados por um juiz de direito ou Tribunal competente, em cujo final poderá ser imposta a pena estabelecida no CP ou legislação repressiva especial pertinente, inclusive a privação de liberdade ou a restrição de direitos. É a responsabilidade criminal (CARVALHO, 2007).

A questão a ser levantada não questiona a independência das instâncias criminal e processual e ainda administrativa, porém é necessário que se busque uma reflexão sobre conexão material das condutas, Cretella Júnior (1978), posiciona-se a respeito:

[...] no caso de o ilícito administrativo também constituir infração penal, o servidor será processado nas duas instâncias administrativa e criminal simultânea e/ou independentemente, podendo ser absolvido ou condenado em ambas ou julgado culpado em uma e inocentado em outra.

É certa a posição do doutrinador, quanto à aplicação das disciplinas. Não se vislumbra discutir independência das searas. Busca-se a interdisciplinaridade, ou seja, uma norma completando a outra, cobrindo lacunas e não as abrindo mais, dando efetividade e eficiência ao poder público. É evidente que com a divergência da matéria se crie mais problemas do que solução. A proposição então é que punição administrativa seja posterior a ação penal transitada em julgado, assim como na ação penal deve-se buscar a verdade real e não a aparente, caso haja a antecipação da punição administrativa.

6 AÇÃO CRIMINAL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO

Observa-se que durante a explanação anterior houve a preocupação em deixar expresso que as instâncias, mesmo independentes se imbricam, influenciando uma sobre a outra se os fatos forem os mesmos.

A insegurança jurídica não pode ser suportada pela sociedade, pois a punição pela quebra do pacto social só deve ser dirigida ao infrator, realizador de ilícitos. Caracterizada a ausência de delito, apurado em uma das instâncias, por suposto que haverá a necessária e justa radiação destes mesmos efeitos para as demais, pois o Estado não possui a faculdade de punir o servidor que não é devasso ou que não praticou o ato ilícito previsto em lei.

Seguindo na crítica à indeterminação conceitual dos tipos disciplinares, agressora também do princípio da segurança jurídica, nos valemos das lúcidas lições a seguir. Heleno Taveira Tôrres (2001, p. 133) pontua:

(...) e um direito será definido como ‘seguro’ quando dele possa decorrer previsibilidade, pela certeza, previsibilidade, legalidade, respeito à hierarquia normativa e publicidade, e quando fique garantida a isonomia, a irretroatividade do não favorável, e a interdição da arbitrariedade. Com isso, figuram como inteiramente incompatíveis atuações discricionárias da Administração, bem como o uso de conceitos indeterminados.

Na mesma senda o insigne Ministro Gilmar Ferreira Mendes (1999, p. 39-40):

O princípio da segurança jurídica, elemento fundamental do Estado de Direito, exige que as normas restritivas sejam dotadas de clareza e precisão, permitindo que o eventual atingido possa identificar a nova situação jurídica e as conseqüências que dela decorrem. Portanto, clareza e determinação significam cognoscibilidade dos propósitos do legislador.

Mesmo separados as duas searas do Direito, quais sejam Penal e Administrativa, elas se comunicam. Porquanto, uma influencia a outra, não sendo as mesmas divorciadas, pois quando se estuda autoria e se adentra em fatos idênticos, há o devido e necessário contato das instâncias, com os reflexos legais que a segurança jurídica exige em cada caso.

Exatamente em nome da legalidade e da segurança jurídica é que se devem estudar os efeitos da decisão penal quando ela nega a autoria do fato, mas sua parte dispositiva, final, deixa registrado que a respectiva absolvição foi decorrente da insuficiência de provas, normas esta prevista no artigo 386, VI do CPP. “Art. 386 ‑ O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: [...] VI ‑ não existir prova suficiente para a condenação”.

É com segurança que a maioria doutrinária e jurisprudencial acompanha o entendimento de se a sentença absolver o réu por não existir prova suficiente para a condenação, em sua parte dispositiva, na forma do artigo 386, VI do CPP, a instância administrativa não está obrigada a acompanhar esta esteira, em razão da falta de prova não negar a autoria e nem o fato conforme o artigo 126 da Lei 8.112/90.

Quanto a isto não discrepa a jurisprudência dominante Vidigal (1998, p.116):

Administrativo. Servidor Público. Absolvição. Criminal por falta de prova. Continuação do procedimento administrativo. Demissão. Legalidade. 1. A absolvição baseada no artigo 386, VI do CPP (por insuficiência probatória) independe da existência do fato ou da sua autoria, não vinculando, destarte, a via administrativa.

2. Sugerida a penalidade pelo Conselho Superior de Polícia, após regular procedimento administrativo, válido é o ato de demissão.

3. Recurso não provido. (ROMS nº 8229/RS, 5ª T., DJ de 19/10/98).

Estas decisões não são únicas em fixar que a absolvição no Juízo Criminal por insuficiência de prova não vincula a instância administrativa. Nenhum dos julgados declinados enfrentou a hipótese que se discute, que é justamente quando a instância criminal afasta a autoria na fundamentação da sentença, concluindo, todavia, em sua parte dispositiva a insuficiência de provas.

Diante da discussão surge a seguinte pergunta: haverá ou não reflexo e vinculação na instância administrativa? Existindo a negativa de autoria na fundamentação da sentença penal, mas na parte dispositiva o magistrado se socorre da falta de provas, será conveniente ocorrência da devida radiação na instância administrativa, tendo a força motriz de reverter à demissão ou outra punição, se os fatos averiguados forem os mesmos.

Em homenagem à presunção de inocência, principio consagrado no texto constitucional, ratifica-se a máxima jurídica de que o ônus da prova incumbe a quem acusa. Como consta nos Pareceres da AGU:

8. (...) É reiterada a orientação normativa firmada por esta Instituição, no sentido de que o ônus da prova, em tema de processo disciplinar, incumbe à administração.[1]

Ementa: (...) Incumbe à administração apurar as irregularidades verificadas no serviço público e demonstrar a culpabilidade do servidor, proporcionando seguro juízo de valor sobre a verdade dos fatos. Na dúvida sobre a existência de falta disciplinar ou da autoria, não se aplica penalidade, por ser a solução mais benigna.(...)

50. (...) compete à administração, por intermédio da comissão de inquérito, demonstrar a culpabilidade do servidor, com satisfatório teor de certeza.[2]

Isso porque, segundo a norma inserta no artigo 458 do CPC, a sentença é composta de relatório, fundamentação e dispositivo, e tendo a fundamentação da sentença criminal negado a autoria do fato, aplica-se então à hipótese em tela ao artigo 126 da Lei n. 8.112/90. Assim, afasta-se a responsabilidade administrativa do servidor absolvido na esfera penal.

Ou seja, quando o douto julgador utiliza-se de fundamentos que negam a autoria do fato delituoso, eles se integram ao decisum e certamente radiam seus efeitos na instância administrativa. Pensar contrariamente ao exposto é conduzir o título judicial somente à parte dispositiva, desqualificando a fundamentação. Tanto a fundamentação como a parte dispositiva do julgado se incorporam na decisão judicial, fazendo coisa julgada quando não é mais possível ingressar com recurso contra a mesma.

Desse modo, chega-se a incontestável questão, será possível desconsiderar sem a fundamentação da sentença pode haver conclusão? Como abstraí-la de um todo?

Se erroneamente admitir-se que a fundamentação não faz parte do título judicial, estar-se-ia defendendo a nulidade, pois como visto a sentença terá de ter três elementos básicos: relatório, fundamentação e decisão, conforme art. 458 do CPC.

Neste sentido a Lei de Introdução ao Código Civil, no seu artigo 5º estipula que na aplicação da lei, "o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum". Sendo certo que fazendo lei entre as partes conflitantes do título judicial, deverá o juiz extrair toda a verdade do que foi decidido, para que as radiações dos seus efeitos sejam amplos, guardando a sintonia com as provas e a fundamentação que serviu como suporte para a construção da convicção para o julgamento.

Independentemente da parte dispositiva ou não da absolvição criminal, o que importa para o direito administrativo é a negativa da existência do fato ou de sua autoria. Verificada, na fundamentação ou na parte dispositiva, nasce a regra do artigo 126 da Lei 8.112/90. (BELLINETTI, 2004, p 120-126)

Mas o que se deve prevalecer à justiça ou normas conflitantes? Afinal a lei deve se adequar aos fatos e não os fatos se adequar a esta. Deve-se buscar a interpretação social da lei, já que ela é o objeto capaz de ensejar a tão almejada paz social e segurança jurídica. Em outras palavras, a interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil.

6.1 A Inexistência de Provas para o Julgamento Administrativo

Na esfera administrativa, quando um servidor público é acusado de um ilícito penal e, por conseguinte, é processado criminalmente e ao chegar o momento da prolação de sentença, na sua fundamentação, o juiz afasta a autoria ou nega o fato, mas quando ele adentra na parte dispositiva, quase sempre, reconhece a ausência de prova suficiente para a condenação como fator preponderante do seu decisum, grafando o disposto no artigo 386, VI, do CPP, como fundamento da decisão, ou seja, ausência de provas.

Parece bastante óbvio que inexistindo a prova suficiente para a condenação criminal, onde o rigor jurídico é extremamente elevado do que o estabelecido em uma Comissão Disciplinar, e sendo o mesmo ilícito objeto de investigação, resulta claramente que a prova deve ser insuficiente também na esfera disciplinar, para fins de condenação e conseqüente aplicação de sanção administrativa disciplinar.

Apesar da clareza e da razoabilidade deste raciocínio, a prática tem demonstrado uma realidade totalmente diferente, pois em nome de uma independência de instâncias, a falta ou insuficiência de prova criminal para uma condenação penal não é acolhida no processo administrativo disciplinar e mesmo o réu, servidor público, sendo absolvido do crime que lhe foi imputado, ele poderá perder o seu vínculo público, sendo demitido, com base no mesmo ilícito penal, desta feita pelo julgamento do processo administrativo disciplinar. Conforme Mandado de Segurança do TJ/RJ:

MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. AGENTE DA POLÍCIA FEDERAL. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DEMISSÃO. CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. DESCONSTITUIÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. ESFERAS PENAL E ADMINISTRATIVA. INDEPENDÊNCIA. SEGURANÇA DENEGADA.

1. A estreita via do mandado de segurança não é a seara ideal para se desconstituir o contexto fático-probatório do procedimento administrativo que culminou com a demissão do impetrante do quadro funcional da Polícia Federal.

2. Em razão da independência entre as instâncias penal e administrativa, suas decisões não se influenciam, exceto no caso de absolvição naquela, quando reconhecida a negativa de autoria ou inexistência do fato.

3. Segurança denegada.

Desta feita, tem-se a seguinte incoerência, que é a consistente no fato de que a absolvição penal não surte efeitos jurídicos na instância disciplinar quando na parte dispositiva do julgado o Juiz fundamenta a sua decisão no disposto nos incisos IV ou VI, do artigo 386, do CPP.

O artigo 126, da Lei n. 8.112/90, in literis: A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.”; assim como os Estatutos de servidores públicos estaduais e municipais somente permitem o reflexo da instância penal absolutória na esfera administrativa quando o sentença judicial afasta o fato ou a autoria do ilícito. Simplesmente, pela atual sistemática infraconstitucional são desprezados os efeitos da coisa julgada material e da presunção de inocência do servidor público absolvido por falta ou inexistência de provas. Esta atitude desrespeitadora e inconstitucional é constante e vem ocorrendo com freqüência, inclusive com o apoio da jurisprudência.

Positivamente, a insuficiência ou falta de provas possui o efeito de desqualificar a acusação. Sucede que, da maneira como foi posto pelo legislador infraconstitucional, ocorre o inverso, por ser retirada a qualidade da absolvição, pelo fato de constar à insuficiência de prova como o fundamento e não a inexistência do próprio fato ilícito sub judice.

Tipificada a conduta do servidor público, ou seja, tenha ele praticado um dos crimes contra a administração pública, previstos no Código Penal ou lei extravagante, justifica-se o exame dos fatos na via judicial e administrativa, independentemente. Uma vez que, na esfera penal, os mesmos fatos foram exaustivamente debatidos, no decorrer da instrução criminal, tendo o juízo criminal concluído que não existia prova dos fatos, a repercussão é imediata para a jurisdição administrativa. Tendo em vista que não se trata simplesmente de verificar se o acusado é culpado ou inocente, se teria agido desta ou daquela maneira, mas muito mais do que isso, cuida-se de observar sobre a própria ocorrência dos fatos e, por conseqüência, da existência ou da inexistência do ato ilícito o qual lhe foi imputado.

Devem ser mantidos e resguardados todos os direitos e garantias do servidor público absolvido por insuficiência ou falta de provas, eis que milita em seu favor a presunção de inocência já não mais com os efeitos juris tantum e sim juris et de jure, pois os fatos tidos como ilícitos inexistem, não podendo servir de suporte para o desdobramento da jurisdição administrativa.

Não provados os fatos, existe a autêntica negativa de autoria de determinado ilícito penal, visto que não foi provada a sua prática. Assim, causa perplexidade, pela evidente contradição existente, admitir conclusões divergentes entre as esferas administrativa e penal, pois, embora seja inegável a independência entre as citadas instâncias, como inclusive ratificado, tanto pela doutrina como pela jurisprudência dominante, essa liberdade não pode chegar ao ponto de a esfera administrativa considerar existente um fato que o Judiciário entende inexistir.

Não é possível tamanha discrepância quando as provas examinadas dizem respeito ao mesmo fato e objeto, sofrendo, inclusive um rigor mais dilatado e amplo na esfera judicial. Em tal situação, fica seriamente comprometida a motivação do ato administrativo, sobretudo quando se trata de ato punitivo, com graves conseqüências para o seu destinatário, mesmo porque prevalece o princípio do in dúbio pro reo, como conseqüência do que não é provado é tido legalmente como inocorrido, inexistente.

Sendo assim, como o artigo 143, da Lei n. 8.112/90, dispõe que a autoridade que "tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a promover a sua apuração imediata...", somente a prova robusta buscará a verdade real, cristalizada pelas evidências e provas do cometimento por parte do servidor público de fato ilícito ou proibido pelo ordenamento jurídico. A falta de prova gera, portanto, a absolvição do acusado na esfera penal.

O comentário da jurista Moura (1994, p.2) mostra-se extremamente apropriado ao caso:

Da mesma forma, inúmeras são as decisões absolutórias fundadas na existência de indícios, que revelam a inocência do acusado, ou que, pelo menos, são insuficiente para formar o convencimento do julgador. Poder-se-á objetar que os indícios condizem ao perigo do erro judiciário [...] o importante é que a sentença traduza a certeza moral do magistrado, retirada da análise de todo conjunto probatório.

Por conseguinte, uma vez decidido através de sentença pelo juízo criminal de que não houve a prática de conduta ilícita contra a Administração Pública, e não havendo fato que justifique a punição administrativa, prevalece a decisão judicial, mesmo porque é sabido que cabe ao Poder Judiciário decidir ou não sobre a existência de um crime, observado o devido processo legal e as garantias a ele inerentes.

A independência das disciplinas penal e administrativa não é sinônimo de indiferença, Abreu (1993, p.46):

Processo penal e procedimento disciplinar não se encontram de ‘costas voltadas um para o outro’. A conhecida independência não é sinônimo de indiferença, nomeadamente da entidade administrativa relativamente à sentença criminal.

Não havendo motivos para a punição do servidor público, ele deve ser posto a salvo de uma injusta e indevida punição na esfera administrativa. Portanto, a absolvição por não existir prova suficiente para a condenação possui caráter absoluto ou erga omnes da coisa julgada na jurisdição penal, projetando-se no sistema jurídico como forma a estabilizar as relações e buscar a paz social.

Conforme analisado e demonstrado cabalmente, a redação do artigo 126 da Lei 8.112/90 colide com o princípio da presunção de inocência, tornando-se, via de conseqüência, inconstitucional, por violar o disposto no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal uma vê que não admite ligação do servidor, público absolvido na esfera penal, com a esfera administrativa, exatamente pela falta de previsão legal no artigo 386, VI do CPP. Ve-se aqui a não repercussão da ação penal, com coisa julgada, na seara administrativa, o que parece absolutamente contestável.

7 REFLEXOS DA INOBSERVÂNCIA DA AÇÃO PENAL

Para um maior entendimento da importância do tema abordado deve-se analisar o caso concreto, entrando-se efetivamente no mérito da questão para que não se cometa injustiças, é claro que o judiciário está presente exatamente para se evitar possíveis práticas corruptiva do sistema legal ou mesmo corrigir compreensíveis falhas no sistema apurativo.

Analisando a transdisciplinaridade da esfera penal com a esfera administrativa, observa-se que uma relaciona-se fundamentalmente com a outra, como acontece na seguinte situação exemplificativa: a um servidor público é imputado a pratica do crime de estupro a uma colega de trabalho, no recinto da repartição pública, verifica-se o cometimento, além de crime contra a liberdade sexual, artigo 213, Código Penal, a ser apurado pelas autoridades policiais e depois alvo de processamento criminal perante à Justiça. Além disso, há evidente transgressão gravíssima dos deveres, proibições e demais regras de comportamento no exercício da função pública, o que sujeita o autor pena de demissão, mediante competente Processo Administrativo Disciplinar, por infração do disposto no artigo 132, V e VII, da Lei 8.112/90, em face de incorrer em conduta escandalosa na repartição e por executar ofensa física, em serviço à servidora. No atual sistema regido pelas Leis 9784/99 e 8112/90, tais faltas estritamente funcionais podem ser desde logo apuradas e punidas pela Administração Pública, independentemente da futura responsabilidade criminal, autônoma, perante o Poder Judiciário, nos autos de processo penal.

Neste diapasão, ao ver pelo prisma lógico e, de acordo com essa pesquisa, parece extremamente precipitado punir o referido funcionário com a demissão sem a devida apuração concreta dos fatos também pela esfera penal. Há, nesse sentido, claro desrespeito ao princípio da Legalidade, consagrado e expresso na Lei Maior.

No exemplo supracitado, imagine-se que ao final das investigações o funcionário tenha sido inocentado das acusações de estupro, descobrindo-se que a suposta vítima tenha o acusado falsamente, ou ainda, seja averiguado que não houve ato sexual dentro da repartição pública. Neste sentido, o inquérito já estaria encerrado, o funcionário possivelmente poderia encontrar-se detido, possivelmente sofrido abuso dentro da prisão, como é de costume com os praticantes deste tipo penal, teria sido demitido, passado por constrangimento perante a sociedade, colegas de trabalho e sua família.

É claro que com novos fatos, poder-se-ia ajuizar recurso administrativo, como previsto no artigo 174 da Lei 8.112/90, e possivelmente o servidor seria reintegrado à função, sem nenhum tipo de indenização, apenas seriam ressarcidas todas as vantagens devidas. Em consequência a servidora, que dizia ser vítima, seria punida na forma da lei, aqui tipificada pelo ilícito de denunciação caluniosa capitulada no artigo 339 do Código Penal.

Como se pôde observar no suposto exemplo, vê-se a fragilidade que a Administração se reveste em aplicar sanção administrativa prévia, anterior a investigação penal do fato. É certo que a Polícia Judiciária dispõe de meios mais eficientes para a apuração de ilícitos do que a Poder Executivo Federal ou mesmo uma secretaria de saúde, por exemplo, que teria de conciliar as atividades rotineiras dos membros da comissão disciplinar, composta por servidores públicos sem formação específica em criminologia, que certamente jamais ficariam sessenta dias, como dispõe o artigo 152 da Lei 8.112/90, exclusivamente a cuidar das investigações do suposto ilícito.

Vale lembrar que na realidade, a constitucionalização do Direito Administrativo, introduzida pela Carta Política de 1988, repele qualquer ato estatal que viole o dogma de que não haverá culpa penal ou administrativa por presunção ou por uma mera suspeita desacompanhadas de provas diretas ou de outros elementos legais de convicção, pois meras conjecturas sequer podem conferir suporte material a qualquer acusação estatal (MELO, 2005).

Diante do exposto, não se deve arrazoar aquilo que expressamente vem elencado no artigo 126 da Lei 8.112/90. Pois o que importa não é o formalismo da decisão, e sim a sua carga declaratória. Resta cristalina a ideia de ofensa à consciência jurídica punir um servidor na área administrativa, por qualquer motivo, que o Juiz-Estado, após todo o desgaste da esfera criminal, consideraria inocente.

Mediante conclusão dessa pesquisa, acredita restar esclarecido que o inocentado, sobre os mesmos fatos, não poderá ser culpado na instância administrativa, se os fatos e autorias que serviram para puni-lo foram esquartejados na esfera criminal. O direito, a modernidade jurídica, os novos princípios motivadores do julgador não admitem mais que o aplicador da norma se engesse ao formalismo, devendo o Juiz ser um fiel escravo da verdade, coibindo injustiças e resgatando dignidades, até então vilipendiadas.

Acredita-se que, por conseguinte, deverá haver uma séria evolução tanto na jurisprudência como na doutrina, no sentido de não se admitir que um servidor público inocentado na jurisdição penal, por não existir prova suficiente para a sua condenação, falta de prova do ilícito cuja prática lhe foi imputada, possa ser condenado na esfera administrativa disciplinar pelo mesmo fato.

8 CONCLUSÃO

O julgamento de um ato infracional de um servidor público tem de ser analisado sistematicamente para que não se cometam injustiças que a própria lei, de certa forma, permite que aconteçam. Como se viu, inúmeros questionamentos foram trazidos ao escopo do presente trabalho.

Apesar de ser clara e latente a independências das instâncias Penal e Administrativa, no caso em estudo, será viável e certamente necessário para aplicação dos princípios e garantias constitucionais, que se aguarde a decisão do juiz togado na esfera penal, no âmbito do judiciário, para que se possa aplicar a competente sanção disciplinar ao funcionário investigado na esfera administrativa. O legislador tomou o cuidado na esfera cível ao prever uma alternativa de suspensão da ação cível até que possa colher os elementos necessários à aplicação da justiça na seara cível. A mesma preocupação no foi vista no campo do Direito Administrativo, pois o legislador não tomou o cuidado necessário, nem a precaução de assegurar os mesmos direitos aos servidores que são investigados e julgados em processos administrativos disciplinares.

Assim, pode-se, com a finalidade de respeitar os princípios gerais do direito, a equidade e a analogia ou baseado em jurisprudências, aplicar o efeito da Coisa Julgada Penal em ações administrativas movidas em desfavor de supostos infratores, tal qual acontece na esfera Civil.

Esta decisão de aguardar o julgado penal, caso fosse realmente necessário, visa à clara elucidação dos fatos, assegurando à Administração a aplicação de maneira inequívoca a Justiça em seus atos administrativos. Haja vista que a Administração Pública seja ela Direta ou Indireta, não possui os mesmos recursos técnicos e científicos que o judiciário dispõe para devida apuração de ilícitos.

Portanto, há a necessidade latente do trabalho em conjunto da Administração, com o Poder Judiciário, para que assim o servidor investigado possa usufruir os direitos e garantias que constitucionalmente lhes são assegurados.

Ve-se com bons olhos por tantos doutrinadores a pacificação da questão, que poderá ser feita através de alteração dos artigos 125 e 126 da Lei 8.112/90, ou ainda com a introdução de súmulas dos tribunais, gerando, como visto, através do efeito cascata, a extensão deste entendimento aos estatutos estaduais e municipais e ainda aos estatutos da administração indireta e associações.

  • Ação Penal
  • Processo Administrativo Disciplinar
  • Direito Administrativo
  • Servidor Público

Referências

REFERÊNCIAS

ABREU, L. V. Para o estudo do procedimento disciplinar no direito administrativo português vigente: as relações com o processo penal. Coimbra: Almedina, 1993.

ALEXANDRINO, M.; VICENTE P. Direito administrativo: teoria e questões. Rio de Janeiro: Impetus, 2010.

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BELLINETTI, Luiz Fernando; Sentença Civil: perspectivas conceituais no ordenamento jurídico brasileiro. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994.

BITTENCOURT, M. V. C. Considerações sobre o processo administrativo disciplinar. Jus Navigandi, Teresina, v.9, n.845, 26 out. 2005. Disponível em:. Acesso em: 13 mar. 2013.

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Bernardes Pereira - Consultoria, Assessoria e Educação Jurídica

Bacharel em Direito - Poços de Caldas, MG


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