A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL - DICOTOMIA PÚBLICO/PRIVADO


04/12/2018 às 22h43
Por Ana Carolina S. Degrava

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL: HOUVE FUSÃO DO DIREITO PÚBLICO COM O DIREITO PRIVADO?

 

THE CONSTITUTIONALIZATION OF CIVIL LAW: WERE THE FUSION OF PUBLIC LAW WITH PRIVATE LAW?

 

*Ana Carolina da Silva Degrava

 

RESUMO: A evolução da sociedade impôs a cada década uma maior intervenção do Estado para garantia de direitos. A constitucionalização do Direito Civil é o fenômeno oriundo dessa intervenção do Estado em situações até então tidas como particulares, gerando assim uma problemática no direito privado, no que concerne aos limites dessa intervenção. A atuação do direito público e do direito privado vem passando por uma desvinculação do individualismo e uma emersão da dignidade da pessoa humana como critério primário das relações jurídicas.

 

Palavras-chaves: Constitucionalização; Público; Privado; Códigos; Dignidade.

 

ABSTRACT: The evolution of society has been imposing every decade a greater intervention of the State to guarantee the rights. The constitutionalisation of Civil Law is the phenomenon arising from this intervention of the State in situations considered as private, thus generating a problematic in private law, as far as the limits of this intervention are concerned. The performance of public law and private law has undergone a dissociation of individualism and an emergence of the dignity of the human person as the primary criterion of legal relations.

 

Keywords: Constitutionalisation; Public; Private; Civil; Dignity.

 

SUMÁRIO: I – Introdução; II - A Dicotomia entre Direito Público e Direito Privado; III - O Direito Civil No Estado Social – Tradição Patrimonialista E A Evolução Contemporânea Do Direito Civil; IV - Códigos Liberais E Constituições Sociais; V - O Estado Democrático De Direito E O Fenômeno Da Constitucionalização; VI - A Dignidade Da Pessoa Humana E As Principais Inovações Advindas Da Constitucionalização Do Direito Civil.

 

I - INTRODUÇÃO

A dicotomia entre Direito Público e Direito Privado é antiga e muito se fala em uma possível fusão entre eles. A sociedade contemporânea quer cada vez mais a intervenção do Estado perante as relações privadas para garantir a proteção de todos os cidadãos, de forma que os operadores do direito devem discutir a respeito dos limites dessa intervenção, a ponto de chegarmos ao menos próximo de um denominador comum que defina até onde o Direito Público pode ir usando do bem comum?

De maneira muito forte no século XX emergiram as questões sociais, foi neste momento histórico que a sociedade até então composta por valores predominantemente patrimoniais e individuais advindos de um Estado liberal, mudou o seu rumo direcionando o seu caminhar no sentindo do Estado Democrático de Direito. Nesta fase teve início as chamadas Constituições sociais que passaram a conter em seus textos direitos e garantias fundamentais a todos o povo, além de assumir os princípios do direito privado.

Os códigos civis que por tanto tempo serviram de base para os ordenamentos jurídicos, tendo a patrimonialização das relações civis como seu principal ideário, passaram a perder sua força diante das exigências sociais impostas, exigências tais que levaram o Estado a intervir cada vez mais nas relações tidas até então como individuais, gerando o que hoje chamamos de constitucionalização do direito civil.

A partir do Estado Social vimos as leis que tratavam de assuntos relacionados as relações privadas se curvarem aos textos constitucionais tendo que serem interpretados a luz das novas Constituições.

No Estado Democrático de Direito temos o princípio da Dignidade da Pessoa Humana como o mais importante princípio orientador de toda a sociedade, não sendo possível imaginar a existência humana sem o respeito a tal princípio.

A constitucionalização do Direito Civil, a fusão ou não entre o Direito Público e o Privado, a submissão das normas civis ao texto constitucional, são as questões a serem relatadas ao longo deste artigo, sem qualquer pretensão de encerrar as discussões com relação aos temas, mas sim, de trazer a cume os embates relacionados, fazendo com que pensemos dentre outras coisas, nos limites do direito público e do direito privado.

 

II - A DICOTOMIA ENTRE DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO

Para falarmos de constitucionalização do Direito Civil necessário se faz adentrarmos na questão referente a dicotomia entre Direito Público e Direito Privado.

Ao longo da história e principalmente no tocante aos países de tradição romano-germânica, inicialmente o direito civil foi formado por reiteradas decisões dos juízes romanos, mais adiante com a necessidade de unificar e uniformizar a legislação da época, teve início o processo de codificação. No direito privado o Código Civil consubstanciado no individualismo próprio do pensamento liberal foi colocado no centro do ordenamento jurídico.

Nesta época o Estado não intervia na ordem econômica, cabendo, portanto, a iniciativa privada definir os moldes de produção e desenvolvimento a serem aplicados, por consequência os que detinham o poder se privilegiavam em nome do interesse próprio, nunca voltado ao bem comum – como nos ensinou Thomas Hobbes “o homem é o lobo do homem”. Essa liberdade desmedida do setor privado em contratar sem qualquer restrição, ocasionava uma distância de aplicação da igualdade formal e material, concentrando a riqueza nas mãos de uma pequena parcela da sociedade. Aqui o direito público não interferia no privado, o código cumpria o papel de estatuto único das relações privadas, o que garantia regras estáveis e segurança jurídica nos negócios.

O Estado liberal foi marcado por essa segurança e estabilidade negocial, tendo como características a limitação do poder político, a garantia dos direitos individuais e a distinção entre direito público e privado.

A diferença entre o direito público e privado se apresentava de uma forma gritante, o direito civil fixava-se na proteção patrimonial, sustentado por um regime voltado a cumulação de bens e circulação de riquezas, totalmente avesso aos interesses sociais, ao bem comum, a igualdade, termos esses com os quais a economia privada não devia se preocupar.

O Estado social começa sua decadência no fim do século XIX na Europa gerando reflexos no Brasil a partir da década de 20. Neste interim, com a intervenção crescente do poder público nas relações privadas, em razão dos movimentos sociais e das revoluções da época, com a percepção de que a ordem jurídica deveria atuar para dirimir as desigualdades e proporcionar um direito de todos, temos então a transição do Estado liberal para o social.

Com a evolução da sociedade e os cidadãos cada vez mais conscientes de sua liberdade e de seus direitos, fora ocorrendo uma série de manifestações e reinvindicações por parte de todas as classes sociais gerando por consequência um dever de intervenção maior do Estado para manter o controle da nação, o que levou a legislação a se curvar e “trazer” para os textos de lei, direitos como por exemplo: o dever social da propriedade, que no passado era insonhável pensar em tal desmande.

Os novos fatos sociais exigiram dos operadores do direito uma adaptação dos códigos a uma realidade na qual eles não se encaixavam, posto que codificados com base numa outra realidade social. No entanto, com o surgimento das Constituições chamadas sociais o Estado fora ampliando sua atuação perante a esfera privada, e os códigos passaram a ser obrigatoriamente interpretados a luz dos novos textos constitucionais.

Conforme o Estado fora no decorrer do tempo intervindo cada vez mais nas relações tidas como pessoais, o direito privado e o direito público por consequente foram se aproximando de modo a se incorporar em certa medida. Atualmente o que temos é um direito público trabalhando entrelaçados com o direito privado ou vice-versa, é como se houvesse um elo entre eles, diferente do que acontecia no passado, não tão longínquo, aonde existia uma enorme distância entre o público e o privado.

Por um longo período se probabilizou a inserção do direito civil no âmbito do direito público, que para alguns autores seria a constitucionalização do direito civil. No entanto, tal concepção é errônea, porque só o processo crescente de intervenção estatal característica do Estado Social do século XX, a subtração de matérias do Código Civil transformadas em ramos autônomos, e a submissão do direito civil ao âmbito público não acarretam de forma alguma a fusão dos institutos do direito público com os do privado.

O Estado social veio a eliminar o critério clássico de distinção entre o direito público e o direito privado que era o interesse, e hoje os interesses públicos e privados estão embaralhados. No entanto, embora embaralhados, permanecem distintos, não podendo extirparmos suas individualidades que são claramente bem específicas.

 

III - O DIREITO CIVIL NO ESTADO SOCIAL – TRADIÇÃO PATRIMONIALISTA E A EVOLUÇÃO CONTEMPORÂNEA DO DIREITO CIVIL

O Direito Civil ao longo de sua história, principalmente nos países de tradição romano-germânica, propagou desde seu início o privilégio normativo do indivíduo, ou seja, associava a tutela absoluta da propriedade privada e da liberdade de contratar sem pensar na pessoa como sujeito da relação. O campo dos valores era amparado do tripé patrimonialismo, individualismo e voluntarismo.

A ideologia do social passou a dominar preponderantemente o cenário constitucional do século XX. Nesta época, enquanto o Estado e a sociedade mudavam e alterando substancialmente o texto constitucional, os códigos civis em contrapartida permaneciam inertes as mudanças que aconteciam, continuando ideologicamente amparados no Estado Liberal, ou seja, persistindo sua atuação em valores patrimoniais e individuais.

As relações civis possuem caráter patrimonializante, como prova disso devemos lembrar que os seus principais institutos são a propriedade e o contrato. Contudo, essa patrimonialização das relações civis vem ao longo do tempo, perdendo lugar perante a pessoa humana que passou a compor o polo da relação jurídica como sujeito prevalente de dignidade. Assim, temos que a prevalência do patrimônio como valor individual que ainda persiste nos códigos é totalmente contrária aos valores findados na dignidade da pessoa humana, valor este que hoje está no topo do ordenamento jurídico.

Os movimentos sociais como a Revolução Industrial, a Revolução Inglesa, a massificação social, a revolução tecnológica, dentre outras trouxeram com elas exigências de liberdade, de igualdade formal e material e de novos direitos, aos quais, os códigos não comportavam, não abarcavam em seus textos, gerando assim uma progressiva e constante descodificação do direito civil.

Não podemos olvidar que os códigos civis tiveram funções extremamente relevantes que os condicionaram num passado não tão distante, como o centro do direito positivo. Contudo, a complexidade da vida contemporânea não mais condiz com a rigidez das regras estabelecidas nesses códigos, sendo, portanto, necessário à sua compatibilidade com o texto constitucional, ou seja, sua interpretação conforme a Constituição.

O enorme e complexo desafio que se coloca aos civilistas da atualidade é o dever de observarem as pessoas, os seres humanos e através deles visualizarem o seu patrimônio – ou seja, o ser humano não é mais visto apenas como um titular de bens. A questão primordial que se coloca em destaque sobre a evolução do direito civil é a restauração da primazia da pessoa humana nas relações civis, sendo esta a condição principal do direito civil à realidade e aos textos constitucionais postos na moderna sociedade.

Não se pode confundir o fenômeno da constitucionalização com a publicização, o primeiro é a gradual transferência de matérias de âmbito privado que passaram a ser dirigidas pelo direito público, enquanto a publicização se caracteriza pelo processo de intervenção legislativa infraconstitucional, ou seja, a crescente intervenção estatal nas relações privadas.

 

IV - CÓDIGOS LIBERAIS E CONSTITUIÇÕES SOCIAIS

Como citado anteriormente a diferença entre direito público e privado no passado se apresentava de maneira bem acentuada.

O Direito civil dotado de seu individualismo latente, por muitos e muitos anos ocupou o lugar principal dentro do ordenamento jurídico, sendo o Código Civil o dirigente maior de toda a legislação. Podemos citar como exemplo desta afirmação, o próprio ordenamento jurídico pátrio, no qual a atual Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, a muito pouco tempo era intitulada Lei de Introdução ao Código Civil.

Os códigos civis liberais advêm de uma legislação eminentemente burguesa e capitalista, que se voltavam a proteger, preponderantemente os direitos individuais da classe burguesa, tutelando, em especial, a propriedade, o contrato e família.

O primeiro Código Civil foi o francês concebido em meio a imposição da burguesia.

No ordenamento jurídico brasileiro, o Código Civil de 1916 dispunha a terra como centro da riqueza, sendo os imóveis a cumulação da mesma. Neste código não havia a concepção de função social da propriedade e tão pouco referência com relação a boa-fé e a função social das instituições particulares, como a família e a empresa.

Por conta das já citadas revoluções sociais, o século XX fora marcado pelo profundo desajuste entre os códigos liberais e as constituições sociais que com seus novos direitos e garantias consagraram a proteção a pessoa humana, proteção essa que os textos dos códigos civis não comtemplavam.

Devemos destacar que tais Códigos tiveram sua importância para a aquisição de direitos dos cidadãos, não podemos deixar de citar aqui três das principais vitorias do século XIX, incorporadas pelos códigos que foram: 1. a simplificação dos contratos, que deixaram de ser solenes e formais; 2. a livre comercialização da propriedade com a consequente extinção das restrições ao livre comércio; 3. e o casamento que saiu das mãos da igreja e passou ao controle do Estado, conforme nos ensina R. C. Van Caenegem (p.10, 1999)..

A ideologia social trazida pelo Estado Social era baseada em valores de justiça social ou distributiva, ou seja, todos deviam ter as mesmas oportunidades.

Necessário falarmos mesmo que rapidamente sobre direitos fundamentais.

A concepção normativa dos direitos fundamentais surge junto com o firmamento do Estado democrático de direito, mais precisamente quando foram criados mecanismos jurídicos que viabilizassem a participação popular na tomada de decisões políticas, bem como foram estabelecidos instrumentos de controle e limitação ao poder estatal. É neste momento, no início do século XVIII que ao valores liberais se transformam em normas capazes de serem invocadas perante uma autoridade, inclusive contra o próprio Estado.

A época as constituições passaram a reservar um capítulo para positivar os direitos do homem, o que ficou estabelecido chamar de direitos fundamentais.

Para ilustrar essa evolução, um jurista tcheco, naturalizado francês Karel Vasak, desenvolveu a chamada “teoria das gerações dos direitos”, e ao formular tal teoria embasado pelo lema da Revolução Francesa, assim estabeleceu:

1) primeira geração dos direitos fundamentais: são os direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade;

2) segunda geração dos direitos fundamentais: são os direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade;

3) terceira geração dos direitos fundamentais: são os direitos de solidariedade, com destaque ao direito a paz e ao meio ambiente saudável, inspirado na fraternidade, que ganhou peso após a segunda grande guerra, especialmente após a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Ao longo do tempo muitos foram os autores a caracterizar os direitos fundamentais, trago neste trabalho as características apresentadas pelo professor Walter Claudius Rothenburg em seu livro intitulado Direitos Fundamentais (2014, p. 3-39), quais sejam: a) fundamentalidade; b)universalidade e internacionalização; c) autonomia; d) indivisibilidade; e) historicidade; f) positividade; g) sistematicidade; h) abertura e inexauribilidade; i) projeção positiva; j) perspectiva objetiva; k) dimensão transindividual; l) aplicabilidade imediata; m) concordância pratica ou harmonização; n) restringibilidade excepcional; o) eficácia horizontal ou privada; p) proibição de retrocesso; q) maximização (otimização).

Dentre este rol de caracteres destaque para universalidade, do qual denota-se a condição de que os direitos fundamentais são universais posto que inerentes à condição humana, ou seja, fatos particulares, limitados ou ocasionais não tem o poder de mitigar o dever de respeito e ascensão dos direitos fundamentais, mas sim, de reconhecer os direitos fundamentais na própria diferença.

Destaque também para a autonomia que a grosso modo é a capacidade de os seres humanos agirem conforme a sua vontade, alguns autores entendem que os direitos fundamentais devem ser exercidos com autonomia por seu titular, que deve saber o poder do seu alcance, ou seja, o direito deve conferir um estatuto que preserve e promova a autonomia.

O autor Ronald Dworkin em sua obra intitulada A Justiça de Toga (2010, pag. 198) esclareceu que o direito deve assegurar “a todos os indivíduos os requisitos necessário à sua plenitude enquanto membros de suas comunidades.”

A autonomia fundamentada na dignidade da pessoa humana relaciona-se com muitos outros direitos fundamentais, dentre eles a liberdade, a igualdade, a educação etc.

No entanto, é necessário analisar que essa autonomia pode ser mitigada para proteger a pessoa de situações sociais opressivas e até mesmo proteção da pessoa contra si mesma.

Vejamos que muito embora a autonomia que é o direito do ser humano manifestar sua vontade, o seu poder de autodeterminação esteja dentre os aspectos mais relevantes dos direitos fundamentais, esta pode ser mitigada em prol do bem comum.

Dentre as características citadas a última e não menos importante a ser destacada é a eficácia horizontal ou privada (erga omnes) dos direitos fundamentais, que nada mais é que o cumprimentos dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares.

Os direitos fundamentais versam sobre relações fundamentais entre o social e o pessoal, cuidando das relações políticas de defesa contra arbitrariedades e abusos, constituindo os direitos das pessoas entre si e perante o Estado, bem como estabelecendo os limites ao poder deste Estado e limites entre as relações particulares também.

Afim de evitar situações de marginalização, de desigualdades sociais ou qualquer forma de discriminação, os direitos fundamentais estão presentes para que impere o estado de bem-comum de todos com a consequente observância do princípio da dignidade humana.

A Constituição Federal de 1988 quando inseriu a igualdade como direito fundamental não assegurou nenhuma situação jurídica específica, a sua função é um verdadeiro princípio a informar e condicionar todo o resto do direito. Por exemplo: é assegurado o direito à liberdade religiosa, respeitada a igualdade de todos perante este direito.

Quando se fala de pessoa, é imperioso ter em mente que a pessoalidade fundamenta-se em três pilares básicos, quais sejam: a autonomia (o poder de definir suas próprias regras); alteridade (a realização em interagir com outras pessoas); e a dignidade (resultado da auto realização em sociedade).

É necessário lidar com essa tensão entre autonomia e proteção, no caso concreto, de forma que a vontade do incapaz não seja completamente mitigada e ele possa se autodeterminar em algumas situações, vivenciando assim a sua dignidade.

 Esse cenário chegou ao Brasil por volta da década de 30 através de uma maior intervenção estatal na economia e a limitação imposta a autonomia da vontade – paralelamente, as legislações em matéria civil se ampliaram surgindo leis especiais, diplomas legais específicos ou ainda leis extracodificadas sobre os mais diferentes temas, retirando assim a exclusividade do Código Civil no que a doutrina se convencionou a chamar de descodificação do direito civil.

Os princípios sociais, em especial a solidariedade social passam a ditar a realidade socioeconômica, de modo a conduzi-la a garantir as exigências fundamentais de justiça e de dignidade a todos.

O monopólio do Código Civil se desvencilhou, e disso ocorreu uma migração dos princípios gerais e regras inerentes ao direito privado para o texto constitucional. Tal mecanismo teve seu ápice com a Constituição de 1988 que veio a exigir uma nova forma de hermenêutica do Código Civil, assentada nos princípios constitucionais e nos direitos fundamentais trazidos por ela, aos quais as relações inter privadas e os interesses particulares devem se basear.

No Brasil o sucesso foi tardio, a construção do Código Civil de 2002 veio marcar a nova era do direito civil lastreado basicamente em princípios como a solidariedade, a operabilidade e eticidade, que brevemente passo a exemplificar: o princípio da eticidade possui relação com as condutas éticas, com o agir de boa-fé, que até então não eram impostos nas relações negociais; o princípio da solidariedade veio dar ao contrato a sua função social, rompendo com o sistema individualista e patrimonialista; e o princípio da operabilidade que veio dar efetividade ao direito civil com a concepção de sistema aberto.

Os principais institutos do direito civil, ou seja, a família, a propriedade e o contrato foram constitucionalizados, sendo que a família passou por grandes alterações em sua função, natureza e acepção – a família atual busca na solidariedade sua identificação, o princípio da efetividade é a matriz deste instituto que vem descrito no texto constitucional; a propriedade teve sua função social garantida, sendo que a propriedade privada e a função social da propriedade são princípios expressos da ordem econômica previstos na Constituição; a liberdade de contratar deve ser exercida dentro dos limites da função social do contrato, prevendo a nulidade de qualquer clausula que a contrarie.

Hoje embora muitas alterações tenham sido feitas nos textos dos códigos, ainda temos resquícios de um passado de poder dos que mais detêm a propriedade.

Vale ressaltar que os princípios sociais não excluem os princípios clássicos liberais, mas sim, limitam seu alcance e conteúdo.

É importante destacarmos que a importância dada aos códigos civis no passado ainda se impõe na sociedade, porém, devemos reconhecer que perdeu e muito sua prevalência.

Os legisladores e os operadores de direito devem seguir evoluindo e construindo cada vez mais uma legislação que ampare primeiro a pessoa depois o patrimônio, que leve em consideração em suas relações a dignidade humana em desfavor da liberalidade.

Os códigos civis atuais devem reproduzir em seus textos os ditames da sociedade contemporânea, e assim vir a estabelecer textos ancorados nas constituições, o que facilitará a implementação de seus institutos nas relações sociais.

 

V - O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O FENÔMENO DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO

O Estado Democrático de Direito veio com toda força e trouxe com ele uma verdadeira ânsia por intervenção do Estado perante os particulares, com a finalidade de garantir o tão sonhado bem-estar social, de erradicar de uma vez por todas as discriminações, de garantir o mínimo existencial a toda e qualquer pessoa independente de sua condição etc. Essa avalanche trazida pelo Estado Democrático de Direito gerou ao longo do tempo um arcabouço de leis que necessitam o quanto antes de serem reajustadas, para que assim alinhem-se as Constituições sociais.

Devemos compreender que ao falarmos em Estado Democrático de Direito, temos que ter em mente, de maneira muito clara que o princípio da Dignidade da Pessoa Humana é o mais relevante, o principal dentre os demais princípios orientadores da sociedade, de maneira que não podemos hoje cogitar a existência de um ser humano sem que haja sua inerência com referido princípio da dignidade.

E mais, os legisladores, os juristas, os operadores do direito devem sempre se atentar a lembrança de que o direito nasce das necessidades, e essas contemporaneamente são cada vez maiores à medida que os cidadãos tomam conhecimento de sua dignidade e consequentemente de seus direitos de uma maneira muito célere em razão do amplo acesso a informação, e que só tende a aumentar a cada dia.

A sociedade contemporânea de uma forma geral que é aberta, complexa, pluralista, marcada pela hipervelocidade do acesso à informação, está a clamar por soluções para com a finalidade de se estabelecer um equilíbrio, um contraponto entre a mínima intervenção estatal nas relações privadas, valorizando assim a liberdade do ser, e a proteção avançada da pessoa humana, através do dirigismo contratual estatal (invocando a expressão consagrada por Orlando Gomes), evitando com isso, que a pessoa humana seja prejudicada em sua hipossuficiência social e econômica e em sua vulnerabilidade de informação.

Vejamos que o fenômeno da constitucionalização do direito civil, não é apenas uma migração de institutos do direito civil para o texto constitucional, é também a sujeição a de todo o ordenamento jurídico civil, bem como leis extravagantes a Constituição Federal, em razão de ser o pilar de todo o ordenamento jurídico brasileiro.

A constitucionalização do direito civil é o que podemos definir como processo de elevação ao patamar constitucional dos princípios fundamentais do direito civil, estabelecendo assim novos parâmetros para sua interpretação, com destaque para os valores não patrimoniais.

 

VI - A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E AS PRINCIPAIS INOVAÇÕES ADVINDAS DA CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL

 

O movimento de Constitucionalização do Direito Civil, tem por base exatamente o posicionamento do princípio da dignidade humana no centro gravitacional da órbita jurídica.

Mas o que vem a ser dignidade da pessoa humana?

Tomas Hobbes (2014) definiu pessoa humana pela sua função ou pelo papel social que desempenhara, René Descartes (2016) por sua vez, define os seres humanos como res cogituns (sujeitos de conhecimento). Já Imanuel Kant (2011) traz a tona a ideia de que o homem existe como um fim em si mesmo, não só como arbítrio de vontade, é a noção do homem como ser responsável pela sua conduta que reside o fundamento da pessoa, e nos ensina que, no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Logo, conclui-se que quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra equivalente, mas quando uma coisa está acima de todo preço, e, portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade.

Assim, sendo a dignidade imensurável, é inadmissível admitir-se que uma pessoa venha a ter mais dignidade que outra. Contudo, isso não deve afastar o respeito as diversidades e a atenção as circunstâncias específicas, como é o caso por exemplo: da dignidade do idoso, da criança, do magistrado etc.

A dignidade da pessoa humana é um o princípio que sucintamente, se abstém as garantias e condições indispensáveis para o exercício da vida humana, nos três principais aspectos, quais sejam: biológico, psicológico e social.

A dignidade da pessoa humana como princípio, se encontra no topo de todo o ordenamento jurídico brasileiro. Por consequência, todos os demais princípios restam em posição inferior, o que naturalmente gera uma observância de todos os demais aos dizeres do princípio maior.

Devemos ressaltar aqui, que o marco para a inserção da dignidade da pessoa humana nas discussões centrais da sociedade, se deu de maneira contundente apenas após as grandes guerras mundiais, diante das enormes tragédias de que toda a sociedade foi vítima por conta da coisificação e da padronização humana que se instaurou durante este período. Outros trágicos episódios também merecem destaque, como o holocausto e a escravidão.

Desde então, tivemos ao redor do mundo uma gama de atos favoráveis a humanização do Estado, citemos os principais para fins deste trabalho: a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 afirma a fé nos direitos humanos fundamentais e na “dignidade e no valor da pessoa humana”; o Pacto de São José da Costa Rica no art. 11 dispôs que “toda pessoa tem direito ao respeito à sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”; a Constituição Europeia, assegura em seu art. 1º, que “ a dignidade do ser humano é inviolável”; a Constituição Federal Brasileira traz já em seu artigo 1º a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa.

Registre-se que a dignidade da pessoa humana foi objeto de previsão não só no artigo primeiro, mas também em outros artigos ao longo do texto constitucional, como ao tratar da ordem econômica em seu artigo 170, caput, mais adiante em seu artigo 226 § 7º e no caput do artigo 227, que abaixo translada-se:

 

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

 

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

 

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

 

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

 

Temos também o artigo 34, inciso VII que confere a União o direito de intervir nos Estados e Distrito Federal para assegurar a observância dos direitos da pessoa humana, ou seja, a segurança dos direitos fundamentais da pessoa humana tem destaque no texto constitucional dado a eles a qualidade de sobreprincípios.

Os sobreprincípios citados são a título de exemplo, os princípios do Estado de Direitos, a segurança jurídica, a dignidade da pessoa humana e o devido processo legal.

Assim, temos que mesmo que tardiamente o direito pátrio colocou a pessoa humana em seu lugar de destaque merecido, local onde sempre deveria ter estado.

A dignidade da pessoa humana não é um princípio que possa ser relativizado, posto que é o princípio maior de todo o ordenamento jurídico, pré-requisito para existência digna do ser humano.

Analisando ainda mais, a colocação da dignidade na constituição como fundamento da república federativa, nos permite admitir que, antes da organização política vêm a pessoa humana que passa então a ser sujeito e não objeto; fim e não meio de relações jurídico-sociais. Em que pese sua inclusão no texto constitucional, devemos ter em mente que a dignidade da pessoa humana, é, tanto por sua origem quanto pela sua efetivação, um instituto do direito privado. Além disso, ressaltemos que a introdução dos direitos da Personalidade no plano infraconstitucional representa um reflexo do fenômeno da constitucionalização.

As tendências dessa consciência de humanização das relações veem se solidificando cada vez mais, sendo as mais importantes: a jurisprudência cada vez mais aplicando o princípio da dignidade em suas decisões; o exercício da propriedade respeitando a sua função social; a compreensão de família como convivência socioafetiva; o contrato baseado no equilíbrio entre as partes; e o respeito pelas diferenças.

A constitucionalização das relações privadas trouxe a pessoa humana para o centro das relações jurídicas, o Estado Social deu a sociedade a resposta que ela buscava amparando em seus textos constitucionais os direitos e garantias fundamentais do ser humano.

O movimento de Constitucionalização do Direito Civil, tem por base exatamente o posicionamento do princípio da dignidade humana no centro gravitacional da órbita jurídica.

 

CONCLUSÃO

A preponderância do patrimônio como valor em torno do qual gravitavam os demais interesses juridicamente tutelados no Estado Liberal, fez com que a pessoa exercesse papel secundário, atuando tão somente como polo de uma relação jurídica. Essa patrimonialização das relações civis não se compatibiliza com os valores assentados no princípio da dignidade da pessoa humana.

Valores esses que hoje possuem força de cláusulas pétreas, não podendo ser alterados senão pelo poder originário, ou seja, são garantidos não só por estarem no texto constitucional, mas por terem obrigação de submissão por parte dos demais princípios.

A constitucionalização do direito civil, compreendida como a inclusão constitucional dos fundamentos de validade jurídica das relações civis, vai muito além que um critério hermenêutico formal.  Essa constitucionalização constitui na verdade, a etapa mais relevante no processo de mudança de paradigmas por que passou e passa o direito civil desde o Estado liberal.

Ao termino deste breve estudo podemos concluir que a constitucionalização do direito civil não é a fusão do Direito Público e Privado, e sim uma consequência natural da busca da sociedade por igualdade material e formal, pela busca de garantias sociais para uma vida digna, com proteção aos hipossuficientes e o respeito as diferenças de cada ser humano.

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  • público
  • privado
  • código civil
  • dignidade humana
  • direito civil
  • dicotomia

Referências

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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Ana Carolina S. Degrava

Advogado - Bauru, SP


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