SUCESSÃO HIBRIDA: CONCORRÊNCIA DO COMPANHEIRO COM DESCENDENTES


05/10/2016 às 00h36
Por Jb Cezário Sociedade Advocatícia

Serão tratadas, agora, as principais posições doutrinárias quanto à questão da sucessão do companheiro em casos de filiação híbrida. Levantamento doutrinário dá conta da existência de, ao menos, seis soluções diferentes: aplicação do Art. 1.790, I, CC.; aplicação do inciso II do mesmo artigo; aplicação do inciso III; divisão em sub-heranças; soma de quotas; e aplicação de médias ponderadas.

Aplicação do Art. 1.790, I
Conforme Maria Berenice Dias, a posição doutrinária predominante aconselha a aplicação, aos casos de filiação híbrida, do inciso I do Art. 1.790, que, conforme demonstrado, determina que o companheiro herde quota equivalente à de cada um dos descendentes. Em outras palavras, em situações de filiação híbrida, a repartição da herança deve ser realizada como se todos os descendentes fossem filhos comuns. Consultando-se a tabela Cahali, os defensores da solução acima referida são: Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Shiguemitsu Fujita, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dias, Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi, Marcelo Truzzi Otero, Mário Delgado, Roberto Senise Lisboa, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sílvio de Salvo Venosa e o próprio Francisco Cahali.

Os principais fundamentos dessa posição são a interpretação gramatical do disposto nos incisos I e II, bem como a tentativa de melhor salvaguardar a situação do companheiro. Veja-se, novamente, a redação dos dois primeiros incisos do Art. 1.790: Art. 1.790 (...) I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocarlhe-á a metade do que couber a cada um daqueles

Nota-se que o inciso II, ao contrário do inciso I, utiliza o advérbio “só” ao delimitar sua hipótese de incidência. Segundo os defensores dessa primeira posição doutrinária, tal expressão significaria que o inciso II deveria ser aplicado quando todos os descendentes fossem filhos exclusivos do autor da herança, enquanto o inciso I deveria ser aplicado sempre que houvesse ao menos um filho comum. Conforme Cahali: Pela exegese do Art. 1.790, concorrendo o sobrevivente com filhos comuns e com outros exclusivos do autor da herança, o critério de divisão deverá ser aquele do inciso I.

Esta situação híbrida não cabe na abrangência do inciso II, pois expressamente se refere à disputa com descendentes só do autor da herança; mas se contém naamplitude do inciso I, em razão de esta regra não restringir a concorrência só com filhos comuns. Existindo a situação híbrida, pois, enquadra-se a vocação na concorrência com filhos comuns, mesmo que nem todos os sucessores tenham esta origem.
Note-se, ainda, que tal posicionamento preserva a igualdade de tratamento entre os filhos, evitando, ao mesmo tempo, que o companheiro (cuja situação sucessória, conforme ressaltada, já enseja inúmeras críticas doutrinárias) seja demasiadamente despojado de participação na sucessão. Essa preocupação com a situação do companheiro, em especial quando comparada com a do cônjuge, pode ser depreendida do seguinte comentário de Caio Mário: O novo Código Civil, estranhamente, deixa de fornecer explícita solução para a hipótese em que o companheiro seja chamado a suceder, ao mesmo tempo, com descendentes comuns (por exemplo, filhos do casal) e com descendentes não comuns (...) Inclinamo-nos por adotar a solução mais favorável ao companheiro, que é a do nº I do art. 1.790: partilha por cabeça, em igualdade de condições para todos os co-herdeiros (ou, mais precisamente, para todos aqueles chamados por direito próprio), levando em conta a circunstância de o novo Código não ter reservado, em benefício daquele, a quota mínima deferida ao cônjuge, na hipótese de descendência comum (art. 1.832, parte final) 30.

Aplicação do art. 1.790, II
Doutrina minoritária defende que, em situações de filiação híbrida, a sucessão do cônjuge deve ser regulada não pelo inciso I, mas sim pelo inciso II do Art. 1.790. A tabela Cahali lista, entre seus principais defensores, Flávio Tartuce, Gustavo René Nicolau, Maria Helena Diniz, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira, e Zeno Veloso. Segundo seus defensores, tal solução seria mais correta, pois, ao privilegiar os descendentes em detrimento do companheiro, estaria sendo mais fiel à Constituição Federal, visto que esta claramente prefere aqueles. Além disso, tal solução reduz a desigualdade que será gerada entre os filhos exclusivos e os filhos comuns quandoa companheira sobrevivente vier a falecer, transmitindo os bens herdados do companheiro exclusivamente a estes últimos. É o que afirma Tartuce: Essa é a interpretação à qual está filiado o coautor Flávio Tartuce [...] Essa posição privilegia os filhos em detrimento da companheira. Argumento a favor dessa corrente é que se a companheira receber quota igual, quando falecer, devolverá os bens recebidos apenas aos filhos comuns, por ser mãe destes, em evidente prejuízo aos filhos exclusivos31.
Tal solução também não conflita com a exigência de tratamento equitativo entre os descendentes, já que todos eles receberão quotas iguais. Nas palavras de Zeno Veloso: Precisando observar o princípio constitucional da igualdade entre os filhos, estes terão de receber quotas hereditárias equivalentes. Penso que, ocorrendo o caso acima apontado, o inciso II deve ser aplicado, cabendo ao companheiro sobrevivente a metade do que couber a cada descendente do autor da herança32.
Cite-se, ainda, Euclides de Oliveira: O artigo 1.790 prevê a participação do companheiro em quota igual à dos filhos comuns e em metade dos filhos exclusivos do autor da herança. Diante da lacuna, e embora se ressalve que o texto deve ser modificado para contemplar melhor a situação dos filhos de diversa origem, temos que, à semelhança do que se pode extrair do artigo 1.832, relativo ao cônjuge, o companheiro somente terá direito à participação em quota igualitária se concorrer com filhos em comum com o autor da herança. Havendo filhos dos quais o companheiro não seja ascendente, então sua concorrência se dará apenas em metade da quota cabível ao herdeiro33.

Aplicação do art. 1.790, III
Uma terceira posição defende a aplicação do inciso III do Art. 1.790 às situações de filiação híbrida. O raciocínio é o seguinte: já que os incisos I e II não abarcam a hipótese de filiação híbrida, a única alternativa seria encaixar tal situação no inciso III, tendo em vista que este se aplica às demais situações de concorrência que não as expressas nos dois primeiros incisos. Desse modo, o companheiro receberia oequivalente a um terço da herança, sendo o restante igualmente dividido entre os descendentes. O único autor a subscrever tal posicionamento, segundo a tabela de Cahali, é Mário Roberto Carvalho de Faria.

Divisão em sub-heranças
Outra solução proposta é a de divisão da herança em sub-heranças, solução inicialmente proposta por Hironaka34. Consistiria numa tentativa de harmonizar matematicamente as disposições dos incisos I e II do Art. 1.790, de modo que a fração a ser atribuída ao companheiro equivalha a uma média das frações que lhe caberiam em relação a cada herdeiro.

Exemplificando: suponhamos que A tenha falecido, deixando R$ 1,000,00 para sua companheira B e seus dois filhos: C, filho do casal; e D, filho somente de A. Temos, aqui, uma hipótese de filiação híbrida. Segundo a solução esposada pela professora Hironaka, deve-se, a princípio, dividir a herança em duas fatias (subheranças) de R$ 500,00, cada uma das quais corresponderia a um dos filhos. Em seguida, deve-se calcular, dentro de cada sub-herança, quanto caberá à companheira B, e quanto caberá ao filho. Em relação à sub-herança correspondente a C, deve-se aplicar a regra do inciso I do Art. 1.790, já que C é filho comum. Deve-se, portanto, atribuir a B quota igual à que será atribuída a C. Assim sendo, B receberá, dessa sub-herança, R$ 250,00, cabendo os R$ 250,00 restantes a C. Já em relação à sub-herança correspondente a D, que, repita-se, é filho somente de A, deve-se aplicar o disposto no inciso II do Art. 1.790, atribuindo-se a B quota equivalente à metade do que cabe a D. Assim, B receberá, dessa subherança, R$ 166,66, enquanto D receberá R$ 333,33. Somando-se, enfim, as quotas obtidas por B em cada sub-herança, o resultado final será que: B herdará R$ 416,66; C herdará R$ 250,00; D herdará R$ 333,33. Adiante-se que tal solução é extremamente questionável. Conforme atestam osresultados, a adoção desse método fere o princípio da isonomia de tratamento dos filhos, previsto na Constituição Federal: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (...) § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.


Além disso, note-se que a cota final atribuída ao companheiro é muito superior às cotas de ambos os herdeiros. A solução aventada pela profa. Hironaka, portanto, acabou indo muito além dos incisos I e II do Art. 1.790 (que permitem, no máximo, que o companheiro herde quota igual, porém nunca superior, às quotas dos descendentes). Tal solução, portanto, vai de encontro à vontade do legislador. Talvez por estas razões a profa. Hironaka tenha abandonado tal posicionamento em edição posterior da obra Comentários ao Código Civil, conforme se verá adiante.Soma de frações


Outra possível solução seria a atribuição de uma quota e meia ao companheiro, correspondente à soma da quota devida em relação aos filhos comuns e da meia quota devida em relação aos filhos exclusivos. Tal posição resulta em situação muito melhor para o companheiro do que a que seria obtida com a aplicação dos incisos I ou II do Art. 1.790, razão pela qual seu cabimento como solução da questão da filiação híbrida é duvidoso. De fato, tal solução, na doutrina, aparece apenas na obra de Hironaka, que não a advoga, citando-a apenas para rejeitá-la35. 2.6 Médias ponderadas

Alguns autores entendem que a única forma justa de resolver a questão em estudo é através da matemática: utilizando-se do conceito de média ponderada, buscaram calcular a proporção que seria devida ao companheiro para que tanto o inciso I quanto o II fossem atendidos. Isso levou à elaboração de diversas fórmulas, entre as quais se destacam: a fórmula Tusa; a fórmula de Flávio Augusto Monteiro; e a fórmula de Schlosser. A fórmula Tusa foi criada por Gabriele Tusa e pelo economista Fernando Curi Pires36. É uma aplicação do conceito de média ponderada, visando atender, proporcionalmente, ao disposto nos incisos I e II do Art. 1.790.

JURISPRUDÊNCIA
Far-se-á, agora, uma breve análise jurisprudencial, buscando entender quais das soluções doutrinárias são mais aplicadas, e quais os principais argumentos que as embasam. Em primeiro lugar, é preciso notar que, não obstante a diversidade de soluções apontadas pela doutrina, as opções efetivamente acolhidas pelos aplicadores do Direito se resumem a duas: aplicação do inciso I ou do inciso II do Art. 1.790. Buscar-se-á, agora, expor os principais argumentos utilizados pelos julgadores para justificar a escolha de uma ou de outra solução.

Aplicação do art. 1.790, I
Colacionam-se, em primeiro lugar, exemplos de julgados nos quais se aplicou a solução do inciso I, isto é, de se considerar como se todos os filhos fossem comuns, e, assim, atribuir ao companheiro quota equivalente à de cada herdeiro:

CÓDIGO CIVIL. INVENTÁRIO. UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRA SOBREVIVENTE. MEAÇÃO E SUCESSÃO. NO CASO DE UNIÃO ESTÁVEL, O CÓDIGO CIVIL DE 2002 DISCIPLINOU A SUCESSÃO DO COMPANHEIRO DE MANEIRA DIVERSA DA DO CÔNJUGE. DIANTE DO ART. 1790 DO CC É CORRETO AFIRMAR QUE A INTENÇÃO DO LEGISLADOR É NO SENTIDO DE QUE O COMPANHEIRO SOBREVIVENTE MANTERÁ A SUA MEAÇÃO E, ADICIONALMENTE, PARTICIPE DA SUCESSÃO DO OUTRO COMPANHEIRO FALECIDO. REFERIDO DISPOSITIVO LEGAL AO DISPOR SOBRE A FORMA DE CONCORRÊNCIA ENTRE A COMPANHEIRA E HERDEIROS, RESTOU OMISSO QUANTO AOS CASOS DE FILIAÇÃO HIBRIDA, OU SEJA, QUANDO HÁ HERDEIROS EM COMUM DOS COMPANHEIROS E HERDEIROS SOMENTE DO AUTOR DA HERANÇA, O QUE NÃO IMPLICA NA SUA INCONSTITUCIONALIDADE, CABENDO AO APLICADOR DO DIREITO SOLUCIONAR A CONTROVÉRSIA POR OUTROS MEIOS. A MELHOR SOLUÇÃO É DIVIDIR DE FORMA IGUALITÁRIA OS QUINHÕES HEREDITÁRIOS ENTRE O COMPANHEIRO SOBREVIVENTE E TODOS OS FILHOS. RECURSO DE APELAÇÃO E AGRAVO RETIDO PROVIDOS EM PARTE.

CIVIL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - UNIÃO ESTÁVEL - SUCESSÃO - CONCORRÊNCIA DA COMPANHEIRA COM FILHOS COMUNS E EXCLUSIVOS DO AUTOR DA HERANÇA - APLICAÇÃO DO ART. 1790, I, CC 1. PREDOMINA NA DOUTRINA O ENTENDIMENTO DE QUE, DIANTE DA LACUNA DA LEI QUANTO À HIPÓTESE DE CONCORRÊNCIA ENTRE A COMPANHEIRA, HERDEIROS COMUNS E HERDEIROS APENAS DO AUTOR DA HERANÇA, A MELHOR SOLUÇÃO É DIVIDIR DE FORMA IGUALITÁRIA OS QUINHÕES HEREDITÁRIOS ENTRE O COMPANHEIRO SOBREVIVENTE E TODOS OS FILHOS. 2. NEGOU-SE PROVIMENTO AO AGRAVO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE INVENTÁRIO. INSURGÊNCIA EM FACE DA DECISÃO QUE DETERMINOU A RETIFICAÇÃO DO PLANO DE PARTILHA PARA AFASTAR O COMPANHEIRO SOBREVIVENTE DA SUCESSÃO. RECURSO DO INVENTARIANTE. EXEGESE DO ARTIGO 1.790, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. DIREITO À MEAÇÃO E SUCESSÃO. EXCLUSÃO DOS BENS PARTICULARES DA DE CUJUS. PARTICIPAÇÃO LIMITADA AOS BENS ADQUIRIDOS ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL. CONCORRÊNCIA COM FILHA COMUM E FILHA EXCLUSIVA DA FALECIDA. SUCESSÃO HÍBRIDA. DIVISÃO IGUALITÁRIA ENTRE A TOTALIDADE DOS HERDEIROS. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.

Como se nota, os dois primeiros julgados são do TJDFT, onde a jurisprudência dominante se consolidou no sentido da aplicação do inciso I (note-se, ainda, que o primeiro julgado tratou, também, de algumas questões prévias interessantes, como a própria constitucionalidade dos incisos I e II do Art. 1.790 - que restou reconhecida - e a possibilidade de o companheiro herdar e mear ao mesmo tempo - que os julgadores entenderam cabível). O terceiro, por sua vez, é do TJSC. Os julgadores foram levados às conclusões acima com base em considerações a respeito da situação sucessória do companheiro em relação ao cônjuge: tendo em vista que o companheiro somente herda sobre os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e que, ao contrário do cônjuge, não tem direito à reserva legal prevista no Art. 1.832, CC, entendem os julgadores que tal situação deveria ser compensada, de modo a aproximar os institutos da união estável e do casamento; assim, entenderam ser cabível a aplicação do inciso I do Art. 1.790, pelo fato de ser a alternativa menos prejudicial ao companheiro sucessor. É o que se pode inferir do seguinte trecho, retirado do segundo acórdão: Dentre as várias soluções oferecidas pela doutrina, a que atende melhor ao caso, segundo autores de renome, é no sentido de que se deva considerar como se todos os filhos fossem comuns, inclusive aquele filho exclusivo do autor da herança, dividindo-se de forma igualitária os quinhões relativos aos filhos, comuns ou exclusivos, e o referente ao (à) companheiro (a), aplicando-se, assim, o inciso I, do art. 1.790, do CC. Isso levando-se em consideração que tanto a meação quanto a cota relativa à herança, no caso de companheiro (a), diz respeito tão-somente aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável e, além disso, diferentemente do que ocorre com o cônjuge, não lhe foi garantida a cota mínima constante do art. 1.832, in fine, do CC44.
O que levou os julgadores a adotarem tal solução, portanto, foi a ideia de tentar reduzir ao máximo as desigualdades sucessórias entre companheiro e cônjuge. Note-se, porém, que, não obstante tal posicionamento, os julgadores entendem quea distinção sucessória entre cônjuge e companheiro, em si, não seria inconstitucional, refletindo mera opção legislativa.

O Art. 1.790 do Código Civil, além de confuso e mal redigido, simplesmente rompe com a lógica sucessória estabelecida em nosso ordenamento jurídico (basta ver a concorrência entre companheiro e colaterais, estabelecida pelo inciso III). Tais fatos, aliados aos erros de redação e omissões, tornam tal dispositivo um dos mais controvertidos do referido Código (não apenas no que diz respeito à constitucionalidade do dispositivo em si, mas também em relação às inúmeras interpretações possíveis de cada um de seus incisos). Surgem discussões relativas até mesmo a questões verdadeiramente esdrúxulas (como a possibilidade de concorrência entre companheiro e Poder Público, ou o uso da expressão “filho” em lugar de descendente no inciso I). Diante disso, não é de se surpreender que a questão da filiação híbrida tenha sido ignorada (melhor dizendo, esquecida) pelo legislador infraconstitucional (ressalte-se, porém, que o Art, 1.829, CC, que trata da sucessão do cônjuge, também não tratou da possibilidade de filiação híbrida, deixando lacuna similar). Assim sendo, é inegável que o Art. 1.790 precisa ser totalmente revisto (a começar, repita-se, por sua localização no Código Civil). Entretanto, mais uma vez, é preciso lembrar que esta monografia busca enfrentar a questão da concorrência sucessória do companheiro nos casos de filiação híbrida a partir de um ponto de vista que privilegia o papel do jurista como aplicador do Direito, e não como seu criador. Assim, buscou-se uma solução que não escapasse à moldura fornecida pela Constituição Federal e mesmo pelo legislador infraconstitucional. Não se quer, com isso, dizer que o Art. 1.790 deve ser mantido do jeito que está; apenas que a tarefa de alterar o regramento sucessório do companheiro cabe ao legislador. Por outro lado, isso também não significa que o Poder Judiciário deva se abster de exercer o controle de constitucionalidade das leis do país (afinal, tal competência lhe é constitucionalmente outorgada); apenas que tal tarefa deve ser exercida com bastante cautela, de modo a preservar o equilíbrio entre os três poderes e a não prejudicar a atuação do Poder Legislativo (poder este que, ao contrário do Judiciário, possui legitimidade democrática decorrente da eleição de seus membros). A solução aqui esposada, portanto, baseia-se nas alternativas fornecidas por este dispositivo, e, assim sendo, parte do pressuposto de sua constitucionalidade.

Existem seis propostas de solução na doutrina: a aplicação do inciso I do Art. 1.790 (o companheiro recebe o mesmo que cada descendente); aplicação do inciso II (o companheiro recebe metade do que recebe cada descendente); aplicação do inciso III (o companheiro recebe um terço da herança); soma de frações (o companheiro recebe três meios - 3/2 - do que cada herdeiro recebe); fórmula das sub-heranças; e uso de médias ponderadas. De todas essas propostas, apenas as duas primeiras são efetivamente usadas na jurisprudência (na doutrina, são também as soluções que possuem, de longe, o maior número de defensores). Em termos de valor argumentativo, as únicas opções realmente dignas de efetiva consideração são a aplicação do inciso I, a aplicação do inciso II, e o uso das médias ponderadas (lembre-se que as três fórmulas apresentadas conduzem rigorosamente ao mesmo resultado), pois as demais deixam o companheiro em situação muito melhor do que deveria ser o caso, diante da lógica estabelecida pelos dois primeiros incisos (além disso, a solução das sub-heranças trata os descendentes de forma desigual, estabelecendo distinção indevida entre filhos exclusivos do falecido e filhos comuns ao casal, o que é claramente inconstitucional). Diante de tudo o que foi exposto ao longo desse trabalho e de todos os argumentos estudados (argumentos gramaticais, constitucionais, principiológicos e até casuísticos) pode-se afirmar que a solução mais plausível para a questão da sucessão com filiação híbrida é, de fato, a aplicação do inciso II do Art. 1.790, pois tal solução, além de evitar rupturas excessivas com o texto da lei, respeita o princípio da igualdade entre os filhos, e é a que maior proteção confere aos descendentes. Conforme a análise argumentativa demonstrou, porém, as razões para tal conclusão não são incontestes, existindo, ainda, bastante espaço para a adoção de outras soluções e interpretações divergentes, em especial a aplicação do inciso I (por aproximar o tratamento sucessório do companheiro ao do cônjuge) e o uso das médias ponderadas (do ponto de vista estritamente matemático e lógico, a única solução verdadeiramente justa). Portanto, não há como supor que as conclusões aqui alcançadas sejam definitivas, ou mesmo que representem uma contribuição decisiva para o tema. Por fim, feitas todas essas considerações, cabe agora tecer alguns breves comentários de cunho prescritivo quanto à matéria em estudo. Não obstante o caráter predominantemente descritivo que guiou este trabalho, é simplesmente impossível, diante de todas as controvérsias expostas, deixar de falar da necessidade de mudança do tratamento sucessório do companheiro, mesmo porque as mencionadas controvérsias que pairam ao redor deste tema e do Art. 1.790, CC são tantas que poderiam muito bem transformar a questão central desta monografia num “moot point”: se o artigo 1.790 for declarado inconstitucional por conferir ao companheiro tratamento distinto do conferido ao cônjuge, não mais haverá sentido em se indagar a respeito da sucessão do companheiro em concorrência com descendentes híbridos à luz deste dispositivo. Gostaria, aqui, de consignar a crença de que a melhor solução para as controvérsias sucessórias até aqui estudadas estaria, de fato, em conferir nova redação ao Art. 1.790, de modo a abranger e explicar todas as questões que tanto dificultam sua atual aplicação. Tal nova redação, porém, não poderia se limitar a resolver questões pontuais como a filiação híbrida e a concorrência do companheiro com o Poder Público. Um novo regramento da sucessão do companheiro teria que ir mais longe, conferindo, de fato, igualdade sucessória entre os institutos do casamento e da união estável. Somente assim seria possível efetivamente pacificar a questão da sucessão do companheiro, que tantas incertezas tem criado, e, ao mesmo tempo, afastar as injustiças que se verificam na aplicação deste dispositivo no cotidiano jurídico (tais como as já mencionadas situações-limite, em que a delimitação da herança promovida pelo Art. 1.790 acaba por deixar o companheiro sobrevivente em flagrante estado de desamparo, bem como a própria distinção de tratamento entre casamento e união estável em si considerada). Pacificar as controvérsias sucessórias não é uma tarefa de interesse meramente (nem sequer predominantemente) acadêmico e teórico, mas sim uma necessidade prática, concreta: as inúmeras divergências doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do tema vêm criando crescente insegurança jurídica, cujos efeitos são sentidos pelos cidadãos e cidadãs que vivem em união estável. Tais inseguranças, evidentemente, contribuem para o surgimento de longas e desgastantes contendas judiciais (se a abertura da sucessão já é capaz de criar disputas e discórdia em situações nas quais não existe dúvida quanto à aplicação do Direito, quanto mais em casos de lacunas jurídicas). Nesse ponto, vale lembrar que existem inúmeros projetos de lei visando modificar o direito sucessório; destaque-se, dentre tais projetos, o de nº 4.908/201258, que busca revogar o Art. 1.790 e alterar a redação do Art. 1.829, de modo a unificar o tratamento sucessório de cônjuge e companheiro: Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro; II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro; III – ao cônjuge ou companheiro; IV – aos colaterais.

Tal projeto também modifica o Art. 1.832, de modo a fornecer uma solução prática e simples para o problema da filiação híbrida: Art. 1.832. Em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge ou ao companheiro quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente de todos os herdeiros com que concorrer.

Em resumo: o companheiro (assim como o cônjuge) sempre herdará, no mínimo, em igualdade de condições com os descendentes; caso todos sejam descendentes comuns, a quota a que o cônjuge/companheiro terá direito deverá equivaler a pelo menos 1/4 (um quarto) da herança; caso pelo menos um dos descendentes seja filho exclusivo do falecido (o que inclui, portanto, as situações de filiação híbrida), o cônjuge/companheiro não terá direito a esta reserva. Observe-se, ademais, que este projeto não mais restringe a herança do companheiro aos aquestos, isto é, aos bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável, efetivamente igualando a sucessão do cônjuge e do companheiro (afinal, de nada adiantaria igualar as quotas se o montante sobre o qual se herda permanecesse diferente para cônjuges e companheiros). Tal projeto encontra-se, atualmente, em tramitação na Câmara dos Deputados, e, se aprovado, terá a virtude de pôr fim não só aos problemas relativos à filiação híbrida (problema esse que afligia tanto a sucessão do companheiro quanto a do cônjuge), mas também a todas as controvérsias que assolam a sucessão do companheiro (o projeto nº 4.908/2012, além de garantir igualdade de tratamentosucessório entre cônjuge e companheiro, também estabelece o companheiro como herdeiro necessário59 e lhe estende o direito real de habitação60). Este projeto merece louvor não só por colocar fim às incertezas jurídicas que tanto afligem os aplicadores do Direito no que concerne à sucessão do companheiro, mas também por fazê-lo de forma a eliminar as flagrantes injustiças e situações aberrantes que o Art. 1.790, direta ou indiretamente, permitia, a começar pela desigualdade entre casamento e união estável. Com tal regramento, não mais teremos aquelas tristes situações de companheiras de origens humildes que, após passarem anos vivendo um padrão de vida elevado por se unirem a um companheiro com boas condições financeiras, veem-se forçadas a retornar à pobreza passada por conta das limitações que lhes são impostas pelo regramento jurídico sucessório da união estável. Não se pode esquecer, porém, que isso é apenas um projeto, não nos sendo possível saber se e quando será aprovado (lembrando que existem outros projetos tratando desses mesmos dispositivos61). De qualquer modo, e por tudo o que foi exposto, o esforço aqui desenvolvido não deve ser encarado como uma tentativa de responder definitivamente à questão em estudo, mas sim como um paliativo, uma possível solução provisória para o problema, cuja efetiva solução, entretanto, só virá através da atuação do Poder Legislativo, o qual, vale repetir, possui a necessária legitimidade democrática para empreender as mudanças necessárias no regramento da sucessão do companheiro.

  • ART 1.190 I
  • ART.1.190 II
  • ART. 1.190 III

Referências

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