Iniciante de RH - Menor aprendiz, um faz tudo do RH...


29/06/2025 às 12h37
Por Paulo Cesar Dula

Quando estava quase preparado e já tinha aprendido a operar o rádio transmissor e a fazer pedidos de peças de máquinas pesadas, a unidade recebeu uma ordem de paralisação.

O órgão executivo federal que nos contratara não tinha orçamento e os empenhos foram contingenciados ― em outras palavras, o governo nos deu um tranco nos recebíveis, e uma promessa de pagamento futuro. As nossas faturas, obviamente, não foram pagas, e o Almoxarife me avisou que eu seria desligado junto de todos os mais de trezentos homens.

O GAF* montou uma força-tarefa para o DP, com o objetivo de dar conta e adiantar o acúmulo de serviço diante da sobrecarga de última hora. Como no horário do almoço, para treinar, eu costumava ficar catando milho numa Olivetti Lettera 82, quem passava pensava que eu era um exímio datilógrafo.

Por isso, foram ao meu setor e me convocaram para integrar a equipe, como digitador na máquina de escrever. O almoxarife, que me achava meio fraquinho por eu não ter sido selecionado por ele, me liberou de imediato. Fora um acontecimento extraordinário eu ir junto com as brocas para lá sem sua real concordância (entrei como menor aprendiz de torneiro mecânico, das brocas de perfuratrizes de rocha...), e ele sempre quisera a minha saída, embora eu insistisse em passar por todas as provas de fogo.

Ao chegar, o chefe de RH pediu para que eu fizesse todos os avisos prévios e as quitações circulares dos futuros desligados (começando pelo meu).

O primeiro aviso foi sofrível, estava cheio de erros e retoques, tentei corrigi-lo com errorex e fui advertido de que não poderia haver qualquer rasura. Mais tarde, mostraram no armário diversos blocos de aviso prévio, cada um com cem jogos, e disseram “Errou, rasgue e faça tudo de novo, não vai conseguir errar todos os blocos até meia-noite”. Após diversos jogos errados, peguei o jeito da coisa e acertei os passos da linha de produção.

Os auxiliares que eram fixos do DP então orquestraram uma espécie de motim, reclamando e fazendo corpo mole. Estavam se sentindo rebaixados e diminuídos por serem demitidos na mesma lista geral dos demais operários.

Esta é uma das maiores falhas na gestão de pessoas: Nunca misture padrões ou níveis hierárquicos em um downsizing**, o momento da demissão é algo muito pessoal e intransferível ― tem que ser olho no olho, o demitido quer e necessita de uma explicação individualizada, longe dos outros... Demissão em lista geral ou via meios de comunicação magoa muito a pessoa!

Quando todo o efetivo finalizou a assinatura do aviso prévio, a determinação legal era que cumpríssemos apenas uma jornada diária de oito horas, somente até as dezesseis, porque em regime de aviso não poderiam existir horas extras nem prorrogação de horário para compensação do sábado ou de descanso semanal remunerado.

Na sexta-feira seguinte, o GAF entrou no RH às dezesseis e vinte e não encontrou ninguém trabalhando. Andou para lá, andou para cá, entrou na saleta de material de expediente e arquivos, e deu de cara comigo. Nesse momento, de joelhos eu terminava a tarefa de organizar um dos armários de fichas. Ele então me perguntou o que havia acontecido e onde estavam os demais do setor. Respondi-lhe:

― Eles foram embora!

Os que saíram às dezesseis horas provavelmente estariam no armazém (antigo secos e molhados) próximo ao trevo de acesso das nossas instalações, na beira da pista, bebendo cerveja e petiscando salames coloniais. Por isso, o boss se dirigiu imediatamente a esse comércio local. Chegando lá, os encontrou e chamou a atenção da rapaziada, perguntando-lhes o porquê de terem saído tão cedo, sendo que ainda havia muitos serviços de desligamentos e a rotina do RH ia até as dezoito horas ou mais se necessário. Em tom agressivo, eles o repreenderam com palavras de ordem dizendo que não podiam prorrogar as horas, pois estavam no regime de aviso prévio e seguiriam a CLT à risca.

O GAF redarguiu dizendo-lhes que eram do quadro permanente da companhia e ocupavam cargos de confiança, não sendo iguais aos demais da área operacional. Tentando convencê-los a voltarem ao trabalho, afirmou que eles faziam parte da administração e não eram peões de obra, mas seu argumento não surtiu o efeito desejado. Em uníssono, os funcionários disseram que se realmente pertencessem aos cargos de confiança, os seus nomes não estariam inscritos na mesma lista de convocação para que todos se dirigissem ao DP para assinarem o aviso prévio, pregada nos quadros de avisos e editais existentes na portaria, nos refeitórios e nos demais pontos de encontro da área operacional.

Como todos do setor eram veteranos e loucos para pegarem o acerto de contas e irem embora, foram me repassando todas as suas tarefas. Eu não tinha preguiça e queria aprender logo.

Toscamente, fui realizando os serviços deles, ao que um dos membros me dizia “A prática constante leva à perfeição. Vá em frente e você vai dominar tudo isso aqui”. Lá pelo vigésimo quinto dia de aviso prévio, houve um aporte financeiro ao empreendimento e uma readequação do cronograma físico-financeiro, o que consequentemente afetaria o quadro de colaboradores. Foram chamados um a um todos os que tinham assinado, e questionados se queriam ir embora ou se permitiam que fosse rasgado o aviso prévio. Na minha vez, não precisaram nem perguntar e cheguei rasgando os papéis antes que mudassem de ideia. Quando o chefe de RH perguntou se eu queria ficar, eu disse que já era um soldado em prontidão.

O pessoal do setor era casado e morava em outros estados. Os que fizeram corpo mole, foram desligados sumariamente. Passei a ficar de plantão em todos os finais de semana e feriados, e ficava além da hora normal, organizando e readequando o setor ao novo cronograma. Quanto às coisas difíceis e mais complicadas de fazer, deixavam-me modelos rascunhados a lápis e me orientavam como proceder, como, por exemplo, em caso de acidente, que exige o preenchimento de uma comunicação de acidente de trabalho (CAT), ou nos casos de fazer um ofício ao Ministério do Trabalho e Emprego ou a uma delegacia regional do trabalho, ou mesmo ao atual INSS, com os seus trâmites legais e burocráticos.

Estava eu de plantão num sábado e resolvi ajudar dois funcionários do setor de serviços gerais a arrastar alguns móveis pelo corredor. Quando juntei uma das partes de um armário, bateu nas minhas costas o GAF, chamando-me para a sala dele. Lá, ele disse

“Muito bonito, meu jovem! Um funcionário do RH nos serviços gerais, carregando um armário, e se você se machucasse? Como iria constar na CAT? Isso teria nexo?”. Eu todo assustado respondi “Nexo o quê?”. Ele novamente “Tá vendo? Você não sabe nem o que é nexo e já está cometendo um desvio de função, você é um inculto”.

Após várias advertências verbais, ele então me falou “Sente aí, anote o que vou ditar, pegue um papelzinho, dobre e guarde na sua carteira até ele esfarelar: ‘Na galáxia de Gutemberg, devemos ser super consumidores de informações, devemos coletá-las, analisá-las e arquivá-las em nossa mente’. Entendeu? Você sabe o que é a galáxia? E quem foi Johannes Gensfleisch Zur Laden Zum Gutenberg? E o que é a nossa mente?”.

Respondi:

“Mais ou menos”, disse que apenas sabia o que era o subconsciente, pois tinha lido o Joseph Murphy que eu ganhara no curso de vendas. Ele, após várias lições didáticas, chamou-me até uma estante com livros e disse “Quando você não tiver nada para fazer no seu setor, a chave da minha sala fica no quadro de chaves, pegue os livros e aculture-se, ponha sua mente para adquirir conhecimento”.

  • Logo em seguida, ele começou a revelar, com uma serenidade quase ritual, os livros que eu deveria ler para decifrar a frase que havia acabado de pronunciar. Cada título, cada autor, parecia esconder uma chave. Mas mais do que simples indicações, ele me conduziu por verdadeiras aulas — intensas, densas, quase sagradas — sobre a retórica de Aristóteles. Explicava-me os fundamentos do entimema, os contrastes entre o conhecimento esotérico e exotérico, e os antigos métodos didáticos que remontam ao trivium e ao quadrivium. Aos poucos, a lógica interna daquelas ideias ia se desvelando diante de mim. Ao mesmo tempo, ele me introduzia ao espírito do período clássico da Grécia Antiga — não como um professor que ensina datas e fatos, mas como um mestre que inicia seu discípulo no modo grego de pensar, argumentar e buscar a verdade.

Alguns dias antes desse episódio, questionei-lhe sobre como podia o meu holerite ainda vir como servente, sendo que a semanas já tinha expirado o meu período de experiência, e eu já adquirira muitos conhecimentos no job rotation*** pelos vários setores. Perguntei-lhe então qual seria o tempo necessário para obter uma classificação de cargo, e eis que ele respondeu “Quando tiveres decifrado minha frase, provares já ter redação própria e entenderes o que é nexo de causalidade e desvio de função, estarás apto a tentar pleitear uma promoção comigo”.

Ao longo dos meses seguintes, fui mostrando-lhe que sabia tudo isso e não demorou para que ele viesse com outra “Você sabe o que é ser preposto numa ação trabalhista, quando põem o gato (construtora) no pau? Conhece e sabe a classificação de documentos contábeis e não contábeis no caixa do financeiro?”.

Respondi

“Lógico que não!”, e ele me disse “A partir de amanhã, irei rascunhar os movimentos diários do boletim de caixa e como elaborar uma minuta de defesa prévia, e você irá datilografar e fazer as conferências necessárias dentro das suas horas de folga”, ao que falei “Eu já estou incluso neste rol, sou um quase guarda-livros (como dizia meu pai)”.

Passados alguns meses, o chefe do RH passou no vestibular em Direito e se preparava para ir embora de volta ao seu estado natal. Pela lógica, o subchefe iria virar chefe e eu, que tinha virado uma faz tudo e fiquei no lugar dos amotinados, seria promovido para subchefe. Enganei-me redondamente.

O GAF se reuniu com todos e começou a inquirir os participantes. A primeira pergunta foi “Senhor Dula, você já sabe elaborar os cálculos trabalhistas, fazer as médias de integração e o reflexo de horas extras nas verbas rescisórias?”. Naquela época era tudo à mão, o Sindicato exigia que a memória de cálculo (dos reflexos das verbas) fosse datilografada no verso da RCT, senão não homologava.

Respondi que não, que o senhor subchefe não tinha me ensinado e eu apenas digitava e elaborava todos os demais procedimentos de admissão e desligamento funcional. Era lógico que ele não me ensinasse, pois esse era o seu pulo do gato. Se eu aprendesse o segredo da sua função, qual seria a sua serventia para a empresa? No meio corporativo, conhecimento é poder, e mais do que isso, muitas vezes deter o seu monopólio é a única coisa que te mantém no cargo.

Ato contínuo, ele perguntou ao subchefe “Senhor Tião, por que o senhor não ensinou o garoto toda a atividade do DP?”, e ele todo desconsertado respondeu que estivera sobrecarregado com demissões e a folha de pagamento, e que nunca sobrara tempo para ensinar ninguém. O GAF então pegou o telefone, ligou para uma unidade em outro estado e requisitou um chefe do DP que estava disponível. Depois, chamou alguns outros funcionários que estavam próximo e proferiu o seguinte discurso:

― Meus diletos amigos, nunca esqueçam o que é ser um líder de verdade. Olhem bem para a minha mão:

Primeiro, você pode casar ou ser pai; segundo, você pode tirar férias; terceiro, você pode ser transferido; quarto, você pode acidentar-se ou morrer; e quinto, senhor Tião, o senhor pode ser indicado a uma possível promoção. Então deveria ter preparado um segundinho para substituí-lo. Um líder de vanguarda nunca tem medo de perder o seu posto, se perder para alguém é porque o outro era bem melhor do que você.

Esse será o castigo por ficar escondendo o leite e não dar oportunidade para que outros mais novos aprendam e se qualifiquem profissionalmente.

No fim, veio outro chefe do DP, o Tião permaneceu como subchefe, e eu continuei como Zé Orelha sem a classificação que tanto queria.

Depois de um tempo, após aprender todas as atividades do caixa e os procedimentos de conciliação bancária, o GAF autorizou a alteração da minha função para auxiliar de almoxarifado — o pedido já existia, mas sua aprovação estava pendente. Quando o empreendimento começou a entrar na reta final, o GAF foi transferido para outro lugar, e junto eu fui.

Fomos os primeiros a chegar nas praias. Com toda a crueldade que lhe era peculiar, fomos à noite tomar um chope e ele me disse “Você será o meu Tesoureiro (caixa). A partir de hoje, a mobilização (infra e pessoas) e os trâmites bancários serão com você, se vire, só vou dar as coordenadas”.

 

DULA, Paulo César: Advogado, pós graduado em direito e processo do trabalho, MBA-FGV em GE Estratégia; Gestão de Projetos, foi especialista em gestão de talentos. (OAB/DF 29.342)

 

 

*GAF: Gerente Administrativo Financeiro ou Gerência.

**Downsizing: A curto prazo, o processo envolve demissões, achatamento da estrutura organizacional, reestruturação, redução de custos e racionalização. A longo prazo, espera-se que isso revitalize a empresa com a expansão do seu mercado, desenvolva melhores produtos e serviços, melhore o moral dos funcionários, modernize a empresa e, principalmente, a mantenha enxuta, de forma que as práticas burocráticas não venham a se instalar novamente, uma vez amenizadas as pressões.

***Job Ratation: Menor aprendiz de Mecânica Geral ( convênio SENAI ): Lavador de peças, afiador de brocas de perfuratrizes e ferramentas, organização de ferramentaria etc. Era com os líderes tarimbados e como iniciantes, passávamos por uma treinagem sumária de mentoring para nos instruirmos, orientados pelos encarregados que sobressaíam-se, numa espécie de job rotation para que conhecêssemos todos os ofícios dentro do projeto, por causa disso eu virei um faz-tudo do RH: Fazíamos incursões diárias nas atividades de campo, aprendendo a verificação dos quantitativos executados e acompanhando o controle de qualidade laboratorial e topográfico. Entendendo todas as fases da terraplenagem, compactação das camadas, aplicação do CBUQ, tendo todas as noções de sua temperatura, (da Usina até a regulação da acabadora de asfalto), inclusive conferindo os materiais da central de britagem e estoques para regularização do subleito e base, a atual "fresagem" era feita com escarificador e lâmina da motoniveladora. Local: Restauração e melhorias da Rodovia BR 476, Trecho: Lapa - São Mateus do Sul/PR.

  • Menor iniciante, um faz tudo do RH...

Paulo Cesar Dula

Advogado - Brasília, DF


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