No circo - “Deixai aqui toda esperança, vós que entrais”,
Numa das minhas rebeldias sem causa e aventuras típicas da juvenilidade — porque o dono da sorveteria, o seu Silvio, não tinha confiança em me entregar ou deixar que eu pegasse o carrinho, pois o de rodas era somente para os adultos, eu carregava apenas a caixa de isopor, vendíamos picolé, ali chamado de “dolé”, nas horas quentes, e pastel nas mais frias, e eu aproveitava a oportunidade em todos os eventos que aconteciam, principalmente em postos de gasolina, nos parques ou em circos que chegavam à cidade, e fazia amizade com o pessoal —, resolvi me aventurar num circo.
Já com a experiência mostrada, passei a vender uns guarda-chuvinhas de chocolate nas arquibancadas, achando que tinha veia cômica e poderia ser palhaço ― queria testar, para ver qual era a minha etnia. Ocorreu então que o circo saiu da minha cidade e, no meio do caminho, precisamos parar em uma cidadezinha muito pequena, onde acampamos, para abastecermos e darmos água aos animais.
Lá, o circo passou a fazer novas apresentações. Na estreia, a abertura foi com as músicas Magnetic Fields e Fourth Rendez-Vous, e o dono do circo, com aquele sotaque portenho, disse “Aprazível cidade tal”. Fiquei intrigado com as suas primeiras palavras e resolvi interrogá-lo, pois o chamávamos de mestre. Frustrado — porque achava que iríamos para uma grande metrópole, ao invés de pararmos numa cidadezinha mequetrefe, muito menor que a minha —, perguntei-lhe o que aquela acanhada e bucólica cidade tinha de aprazível (falei um palavrão), e ele, olhando para todos os lados, me chamou num canto e disse:
― Por ora, você não deve nem saber, nem ter noção, do que é ser aprazível. É aquilo que nos dá prazer, algo que nos faz sentirmo-nos felizes por ali estar ou por estar com alguém.
E eu, novamente sem a mínima educação, o questionei:
― Por isso mesmo, onde está a felicidade e o prazer?
Com toda a sua sapiência e didática, ele respondeu-me:
― Menino, ao passarmos pela BR, nossa única opção foi adentrarmos nessa cidade. A ideia foi nossa, e entramos aqui por livre e espontânea vontade. Quando você entrar na casa de alguém, limpe os pés no capacho, dobre a sua cabeça e agradeça por te deixarem entrar, por mais humilde que seja o lugar, pois há uma pura e infinita intimidade naquele lar. Você não tem o direito de criticá-lo. Quem mandou você querer entrar lá? Após ter entrado, respeite e componha-se no ato de ser gentil. Tenha o mínimo de gratidão por ter sido recebido!
Perguntou-me, logo em seguida, se conhecia a Divina Comédia, de Dante Alighierie, o Inferno de Dante. Explicou-me que na porta do inferno existia uma inscrição que dizia “Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate”, ou seja, “Deixai aqui toda esperança, vós que entrais”, e completou:
— Antes de adentrar em algo, deve pensar bem e planejar muito, pois após ser efetivada a sua entrada, não haverá mais nenhuma salvação! Ao optarmos em adentrar, e recebidos sermos, devemos manifestar gratidão e idolatria pelo lugar que para o anfitrião é sagrado. Se é sagrado para eles, é aprazível para nós, entendeu? Diante disso, você não pode trabalhar neste circo. Arrume uma carona e volte para a sua casa, não tem capacidade, nem sangue, para pertencer à família circense!”
Pronto! Ninguém sabia dessa minha vergonha de ter levado uma das maiores descomposturas da minha vida. Ele ainda disse que eu deveria começar lavando e recolhendo o esterco dos animais, para daí pleitear uma vaga de aprendiz de palhaço.
* ... meu avô paterno me contou que os seus familiares tinham fugido do Império Otomano. Essa talvez jornada nômade, pela última estada dos meus bisavós provavelmente no atual solo eslovaco. ...esses fugitivos dividiam-se em três denominações, ou grupos étnicos: os ciganos, os circenses e os mascates. O meu avô ― que não era cigano, pois tinha se casado com uma polaca da gema, ― dizia que os ciganos não permitiam esse tipo de mistura étnica, que circense igualmente não era. Por eliminação, restavam os mascates, quem sabe… (outro artigo).
Por fim, em cinco dias, confirmei que da circense realmente eu não era.
DULA, Paulo César: Advogado, pós graduado em direito e processo do trabalho, MBA-FGV em GE Estratégia; Gestão de Projetos, foi especialista em gestão de talentos. (OAB/DF 29.342)