Por: Pedro Henrique Gonçalves Suman
Resumo
Este artigo realiza uma análise crítica e aprofundada das Leis nº 15.269/2025 e 15.235/2025, que reestruturam o setor elétrico brasileiro. O objetivo é cruzar as justificativas técnicas que motivaram a reforma — como a necessidade de modernização tecnológica e abertura de mercado — com suas implicações jurídico-regulatórias. A análise examina não apenas as soluções implementadas, mas também as lacunas conceituais e ambiguidades legais que podem gerar insegurança jurídica, novos subsídios cruzados e riscos futuros para a estabilidade e a eficiência do setor.
1. Introdução e Contexto
A reforma do setor elétrico brasileiro, consolidada pelas Leis nº 15.269/2025 e 15.235/2025, surge em um contexto estratégico de dupla pressão. De um lado, o setor enfrenta um cenário de sobreoferta estrutural de energia, que pressiona os preços e questiona a viabilidade de novos projetos de geração. De outro, o arcabouço legal anterior, concebido para uma matriz predominantemente hidrotérmica, tornou-se obsoleto e inadequado para gerir a complexidade crescente das fontes renováveis intermitentes e da geração distribuída.
Originadas das Medidas Provisórias nº 1.300/2025 e 1.304/2025, as novas leis são uma resposta direta à crise do modelo regulatório que vigorou por décadas. Esse modelo, pautado pela filosofia de "comando e controle" da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), demonstrou-se esgotado. Caracterizava-se pela ineficiência, com altos custos processuais e financeiros, e por uma cultura de confronto entre o regulador e os agentes, que minava a cooperação e não se traduzia em melhorias efetivas na qualidade do serviço.
Diante desse cenário de anacronismo legal e disfuncionalidade regulatória, o legislador propôs um conjunto de soluções estruturantes para modernizar o setor, alinhar o arcabouço legal às novas realidades tecnológicas e promover um ambiente de maior eficiência e cooperação.
2. Soluções Propostas e Implementadas
Esta seção detalha os principais mecanismos técnicos e institucionais criados pelas novas leis para resolver gargalos históricos de custeio, segurança energética e modernização do mercado. As soluções refletem uma nova filosofia regulatória, que busca um equilíbrio mais sofisticado entre incentivos, responsabilidades e estabilidade sistêmica.
Abertura de Mercado e Empoderamento do Consumidor
Um dos pilares da reforma é a liberalização completa do mercado para consumidores de baixa tensão, conferindo-lhes o poder de escolher seu fornecedor de energia. A Lei nº 15.269/2025 estabelece um cronograma mandatório para essa migração. Os prazos apresentados derivam dos períodos definidos nas fontes legais mais formais, que podem divergir de materiais de divulgação simplificados.
Segumento de Consumidores e Prazo para Migração
- Consumidores Industriais e Comerciais em Baixa Tensão: até novembro/27; e,
- Demais Consumidores (Residenciais e Rurais): até novembro/28.
Contudo, a efetivação dessa abertura não é automática. A portaria que estabelece o cronograma é, juridicamente, uma "norma de eficácia contida", cuja plena aplicabilidade está condicionada ao cumprimento de cinco pré-requisitos mandatórios, que exigirão um complexo processo de regulamentação pela ANEEL:
- Plano de Comunicação: Execução de um plano para conscientizar os consumidores sobre as implicações e oportunidades da migração.
- Segregação de Tarifas: Definição de tarifas distintas para os ambientes livre e regulado, refletindo os custos de cada mercado.
- Regulamentação do Supridor de Última Instância (SUI): Definição das regras e condições econômico-financeiras para o SUI, entidade que atenderá consumidores que ficarem sem fornecedor no mercado livre.
- Produto Padrão em Baixa Tensão: Criação de um produto de referência para facilitar a comparação de ofertas pelos consumidores.
- Regulamentação do Encargo de Sobrecontratação: Definição do encargo para cobrir os custos das distribuidoras decorrentes da saída de consumidores.
A criação do Supridor de Última Instância (SUI) funciona como um mecanismo de segurança essencial, garantindo o fornecimento para consumidores que, por qualquer motivo, se vejam desassistidos por seu agente varejista no Ambiente de Contratação Livre (ACL).
Modernização Tecnológica e Segurança Energética
As leis institucionalizam novos mecanismos para garantir a segurança do Sistema Interligado Nacional (SIN). São formalizados o conceito de reserva de capacidade e a licitação de sistemas de armazenamento de energia, instrumentos cruciais para gerenciar a intermitência das fontes renováveis e mitigar o risco hidrológico.
A reforma também promove ativamente novas tecnologias, com foco em:
- Sistemas de Armazenamento por Baterias (BESS): A legislação concede a inclusão no Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura (REIDI) e autoriza o Poder Executivo a zerar o Imposto de Importação para seus componentes, refletindo a precisão da nuance legal.
- Usinas Hidrelétricas Reversíveis (UHRs): A lei incentiva obras de acumulação, reconhecendo o papel dessas usinas como "baterias de água" para armazenamento de longa duração.
Racionalização de Custos e Encargos
Em busca de maior "justiça tarifária", a reforma promove uma ampla revisão de subsídios que oneram a conta de luz. Dois focos se destacam pelo custo crescente:
- Geração Distribuída: O subsídio, cujo custo é projetado em R$ 14,24 bilhões em 2025, é considerado desproporcional. A taxa de retorno do investimento chegou a 48% ao ano em 2024, um valor quatro vezes superior ao retorno regulatório de 12,17% concedido às concessionárias de distribuição, o que evidencia a distorção.
- Fontes Incentivadas: O desconto nas tarifas de uso da rede (TUST/TUSD) para grandes usinas renováveis saltou de R 13,05 bilhões em 2024 para uma projeção de quase **R 17 bilhões** em 2025.
Para evitar a criação descontrolada de novos custos, foi instituído o mecanismo de "Responsabilidade Tarifária". Inspirado na Lei de Responsabilidade Fiscal, ele exige que qualquer proposta de novo encargo ou benefício tarifário seja acompanhada de uma análise prévia de seu impacto financeiro e na tarifa do consumidor.
Apesar desses inegáveis avanços estruturais, uma análise crítica revela que questões jurídicas e regulatórias importantes permaneceram sem solução, abrindo margem para incertezas futuras.
3. Análise Crítica: O Que Não Foi Resolvido (Lacunas)
Apesar do avanço conceitual em direção a um modelo regulatório mais moderno, o novo marco legal deixa de endereçar questões jurídicas fundamentais e introduz ambiguidades que podem comprometer a eficácia das próprias soluções propostas. As lacunas identificadas são a semente de futuros conflitos, notadamente do aumento da judicialização estratégica. As principais são:
A Discricionariedade do Regulador e o Risco ao Princípio da Isonomia: A reforma amplia a discricionariedade da ANEEL para aplicar uma "fiscalização assimétrica", tratando agentes de forma diferenciada. No entanto, as leis falham em estabelecer critérios objetivos e transparentes para essa diferenciação. Essa lacuna torna as ações da agência vulneráveis a alegações de arbitrariedade e violação do princípio constitucional da isonomia, gerando imprevisibilidade para os investidores. Um exemplo concreto dessa distorção é o tratamento díspar dado às tecnologias de armazenamento: enquanto os Sistemas de Armazenamento por Baterias (BESS) recebem incentivos fiscais, as Usinas Hidrelétricas Reversíveis (UHRs) isoladas não foram isentas da cobrança de encargos como o Uso de Bem Público (UBP) e a Compensação Financeira (CFURH). Esse tratamento diferencial é um exemplo de como a ausência de critérios objetivos cria distorções econômicas, favorecendo uma tecnologia sobre outra sem justificativa técnica clara e ferindo a isonomia.
- A Flexibilização da Sanção e o Conflito com a Legalidade Estrita: A filosofia de permitir acordos consensuais em vez de sanções punitivas entra em tensão direta com o princípio da legalidade estrita. O cerne do conflito jurídico reside na questão de se uma resolução administrativa pode criar uma "margem de tolerância" para uma obrigação definida em lei federal. Essa ambiguidade coloca os acordos da ANEEL em terreno juridicamente precário.
- Omissões Críticas na Governança e Transparência: A ampliação dos poderes discricionários da ANEEL não foi acompanhada pelo fortalecimento de mecanismos de governança e transparência. As leis não estabelecem um processo obrigatório para a publicação e justificação dos critérios que guiarão a fiscalização assimétrica ou a celebração de acordos, dificultando o controle social e pelos órgãos de controle.
Essas lacunas e contradições não são meramente teóricas; elas se conectam diretamente aos problemas concretos que o setor poderá enfrentar nos próximos anos.
4. Prognóstico: Riscos e Problemas Futuros
As ambiguidades e omissões legislativas do novo marco podem gerar novos focos de conflito, instabilidade e custos para o setor elétrico. A materialização dos benefícios da reforma dependerá criticamente da capacidade da ANEEL de regulamentar os novos instrumentos com rigor técnico, transparência e previsibilidade.
Aumento da Judicialização Estratégica
O foco dos litígios judiciais tende a se deslocar da contestação de multas para a contestação dos próprios critérios de atuação da ANEEL. Futuras disputas provavelmente serão ancoradas em alegadas violações ao princípio da isonomia, desafiando a legalidade da metodologia de "fiscalização assimétrica". Isso pode inaugurar uma nova onda de insegurança jurídica, ameaçando paralisar a agilidade da agência.
Impacto Assimétrico e Subsídios Cruzados
O rateio dos custos de novos mecanismos, como a reserva de capacidade, cria um risco substancial de onerar desproporcionalmente o consumidor cativo. Uma crítica específica recai sobre o custeio do Supridor de Última Instância (SUI). A lei determina que os custos de um eventual déficit do SUI serão rateados entre todos os consumidores do mercado livre. Este mecanismo força consumidores prudentes que escolheram fornecedores estáveis e confiáveis a subsidiar as perdas causadas por agentes especulativos ou ineficientes, socializando o risco privado e penalizando os participantes responsáveis do mercado.
Desafios de Governança e Risco de Captura Regulatória
A maior discricionariedade, desacompanhada de um aumento correspondente nos mecanismos de transparência e controle, torna a ANEEL mais suscetível à captura por interesses específicos. A ausência de clareza nos critérios decisórios pode erodir a confiança na imparcialidade técnica da agência, enfraquecendo sua posição como árbitro do setor.
Para avaliar a profundidade desses riscos, é necessário confrontar a nova arquitetura regulatória com os princípios doutrinários do direito brasileiro.
5. Validação Doutrinária
A tese central desta análise crítica é que os objetivos técnicos louváveis da reforma — eficiência, justiça tarifária e modernização — estão fundamentalmente minados por sua fragilidade jurídica. A questão não é se a nova arquitetura regulatória está em harmonia com os princípios do Direito Administrativo, mas sim que ela nasce em conflito direto com eles, criando uma vulnerabilidade estrutural que ameaça o sucesso de toda a empreitada.
A reforma busca implementar um modelo de "regulação responsiva", que pressupõe flexibilidade e discricionariedade para o regulador. No entanto, a validação doutrinária revela que a legislação falhou em fornecer os contornos legais indispensáveis para proteger princípios basilares como a isonomia (tratamento igualitário entre os agentes) e a legalidade estrita (a administração pública só pode fazer o que a lei expressamente permite).
Essa tensão entre a flexibilidade almejada e a rigidez dos princípios constitucionais é o cerne do debate acadêmico, conforme aprofundado nos trabalhos de Lima (2022) sobre a aplicação da regulação responsiva no processo sancionador da ANEEL e de Santos (2021) sobre os limites do poder normativo das agências. O resultado dessa validação é que, embora tecnicamente justificada, a reforma nasce com uma falha de concepção jurídica. Ao conceder poder discricionário sem critérios objetivos, o legislador não criou flexibilidade, mas sim uma porta para a arbitrariedade, expondo a reforma a questionamentos sobre sua própria constitucionalidade e legalidade.
6. Conclusão
O saldo da reforma do setor elétrico é ambivalente. Há avanços inegáveis em direção à modernização tecnológica, com incentivos claros para o armazenamento de energia, e à abertura de mercado, que promete maior competição e poder de escolha para o consumidor. Essas medidas são essenciais para alinhar o Brasil à nova realidade da transição energética.
Entretanto, esses pontos positivos são contrabalançados por riscos e lacunas críticas. A insegurança jurídica decorrente da alta discricionariedade concedida à ANEEL sem critérios objetivos é a mais proeminente. Adicionalmente, a criação de novos subsídios cruzados, como o rateio dos custos do SUI, distorce os sinais de preço no mercado livre e penaliza a eficiência. Por fim, a falta de mecanismos robustos de governança e transparência abre uma perigosa janela para a captura regulatória.
A perspectiva para os agentes do setor nos próximos anos é de adaptação e vigilância. O sucesso da modernização dependerá crucialmente da capacidade da ANEEL de regulamentar os novos instrumentos com transparência, previsibilidade e critérios técnicos objetivos. O desafio será transformar a discricionariedade concedida em ganhos de eficiência mensuráveis para a sociedade, em vez de permitir que ela se degenere em arbitrariedade regulatória.
