O QUE É DIREITO DIGITAL?
O homem não pode viver senão em sociedade. As sociedades são organizações de pessoas para a obtenção de fins comuns, em benefício de cada qual[1]. Destas relações sociais nasce o Direito, o que torna viável o convívio, a harmonia e a paz social, sendo impossível à existência de um grupo social sem normas que o regulamentem, normas que exercem, a priori, uma coação psicológica, prevenindo a prática de ilícitos. Vindo a falhar esta coação abstrata, o Direito fará uso concreto de um de seus atributos, a força imperativa, e imporá ao membro faltoso as sanções previstas no ordenamento jurídico.
Sob esta ótica, Ada Pelegrine Grinover, Antonio Carlos de Araújo Cintra e Cândido Rangel Dinamarco[2], estabelecem a correlação entre o Direito e a sociedade, nos seguintes termos:
Indaga-se desde logo, portanto, qual a causa dessa correlação entre sociedade e Direito. E a resposta está na função que o Direito exerce na sociedade: a função ordenadora, isto é, de coordenação dos interesses que se manifestam na vida social, de modo a organizar a cooperação entre pessoas e compor conflitos que se verificarem entre os seus membros.
Considerando que a sociedade está em constante transformação, o Direito deve acompanha-la. Contudo, é notória a dificuldade do sistema legal em acompanhar essa evolução social e, para complicar ainda mais, a Informática vem fazendo com que a sociedade mude em uma velocidade ainda maior, diariamente. Logo, a missão legislativa, que já era muito difícil, tornou-se hercúlea.
Ademais, a evolução social trazida pela Informática, fez com que o Direito necessitasse de novos instrumentos para disciplinar as relações entre o homem e a tecnologia, visando preservar o convívio, a harmonia e a paz social, como dito inicialmente. Disto, surge o Direito Digital – mas não como um novo ramo do Direito, assim como são o Direito Civil e o Direito Penal –, e sim como uma releitura do Direito tradicionalmente conhecido, sob a ótica dos impactos e reflexos tecnológicos, conforme bem pontuado pelos Professores Coriolano Camargo e Marcelo Crespo. Portanto, o Direito Digital vem a propiciar uma nova forma de compreensão e interpretação dos problemas que agora acontecem no meio ambiente virtual.
Por conseguinte, o Direito Digital “consiste na evolução do próprio Direito, abrangendo todos os princípios fundamentais e institutos que estão vigentes e são aplicados até hoje, assim como introduzindo novos institutos e elementos para o pensamento jurídico, em todas as suas áreas[3]”, conforme muito bem conceituado por Patricia Peck Pinheiro.
Outro conceito de Direito Digital é o aventando por Marcelo de Camilo Tavares Alves [4], para o qual “o Direito Digital é o resultado da relação entre a ciência do Direito e a Ciência da Computação sempre empregando novas tecnologias. Trata-se do conjunto de normas, aplicações, conhecimentos e relações jurídicas, oriundas do universo digital. Como consequência desta interação e a comunicação ocorrida em meio virtual, surge a necessidade de se garantir a validade jurídica das informações prestadas, bem como das transações, através do uso de certificados digitais. A tecnologia também foi capaz de outorgar aos profissionais do Direito, ferramentas computacionais que simplificaram e aperfeiçoaram suas tarefas. Entretanto, essa mesma tecnologia inovou e potencializou a ocorrência de crimes, como a violação de direito autoral. Buscando a materialidade e autoria dos delitos praticados neste ambiente, estudiosos de ambas as áreas se unem na análise forense computacional”.
Após a devida conceituação de Direito Digital, é importante definirmos outros termos bastante comuns nesta área e, nesta toada, temos o vocábulo Informática, que é definido pelo Dicionário Aurélio como a “ciência que visa ao tratamento da informação através do uso de equipamentos e procedimentos da área de processamento de dados”. Em uma definição mais ampla e explicativa, a Wikipédia informa que a Informática é um “termo usado para descrever o conjunto das ciências relacionadas ao armazenamento, transmissão e processamento de informações em meios digitais, estando incluídas neste grupo: a Ciência da Computação, a Teoria da Informação, o processo de cálculo, a análise numérica e os métodos teóricos da representação dos conhecimentos e da modelagem dos problemas. Mas, também a informática pode ser entendida como ciência que estuda o conjunto de informações e conhecimentos por meios digitais”.
Com efeito, trata-se de uma vasta área de conhecimento, entretanto, dentro da Informática, destaca-se a Internet, definida pelo Michaelis Online[5] como uma “rede remota internacional de ampla área geográfica que proporciona transferência de arquivos e dados, juntamente com funções de correio eletrônico para milhões de usuários ao redor do mundo; net, rede, web”. Fica absolutamente claro que o conceito trazido pelo respeitado Dicionário já encontra-se defasado. A Internet, hoje, é muito mais do que transferência de dados ou correio eletrônico, pois, através dela, são oferecidos serviços bancários, comércio bens e serviços, vídeos on demand, comunicação em tempo real, sendo possível até se fazer uma graduação ou pós-graduação online. Destarte, fica claro a dificuldade em se acompanhar estas constantes mudanças trazidas pela Informática, pois se para o Dicionário é difícil acompanhar estas inovações, imagine para os Poderes Legislativo e Judiciário.
Mas, e em números, o que é a Internet? Pois bem, no Mundo a Internet já alcança 47% da população mundial, vide os dados apresentados pela União Internacional de Telecomunicações (UIT), em 22/07/2016[6], o que representa, aproximadamente, 4 bilhões de pessoas conectadas. A realidade brasileira não é diferente, visto que o número de lares conectados à Internet chegou a 32,3 milhões de domicílios em 2014, ou seja, 50% do total das casas do país estão conectadas à rede mundial de computadores, conforme os dados obtidos pela pesquisa TIC Domicílios 2014, realizada pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação (Cetic.br)[7].
Os números acima já são colossais e continuam crescendo assustadoramente, e a razão principal são os dispositivos móveis, que hoje permitem o fácil acesso à Internet, e a todos os derivados daí advindos. Esta é a conclusão da última edição do Cisco Visual Networking Index (VNI) Global Mobile Data Traffic Forecast, que apresenta as projeções de crescimento mundial do tráfego móvel. Segundo este estudo, até 2021, a população global terá mais telefones celulares (5,5 bilhões) do que contas bancárias (5,4 bilhões), água canalizada (5,3 bilhões) e telefones fixos (2,9 bilhões). No Brasil, o tráfego de dados móveis terá um crescimento duas vezes mais rápido que o tráfego IP entre 2016 e 2021, e 77% das conexões móveis no País serão conexões "inteligentes" até 2021[8].
Por tais razões, questões complexas, como proteção de marcas e domínios, e simples, como uma compra online, exigem uma nova postura do operador do Direito, uma nova forma de interpretar estes fatos. Ou seja, já não basta apenas um conjunto de leis, sendo que é preciso estabelecer uma interpretação mais dinâmica, e desta forma interagir no ambiente em que está a manifestação de vontade[9].
Assim, o Direito encontra dificuldades em solucionar situações que ainda não são disciplinadas por leis específicas, vide os problemas ocasionados entre o aplicativo Uber e os taxistas, o conflito entre operadoras de telefonia e o WhatsApp, a disputa entre o Airbnb e os hotéis, entre outros diversos exemplos de situações litigiosas e carentes de solução legislativa adequada. Como não há para nenhum destes casos um desenlace legal previsto em nosso ordenamento, havendo, então, uma anomia legislativa, o julgador vem se valendo dos princípios gerais do Direito para tentar equalizar estas questões.
Em rápidas pinceladas, a questão da anomia legislativa apontada no parágrafo anterior é mais complicada do que pode parecer em uma análise superficial, não bastando, simplesmente, que seja elaborada uma norma para disciplinar a matéria. Veja a situação do aplicativo Uber, onde diversos municípios legislaram com o fito de proibi-lo ou, ao menos, restringi-lo. Contudo, instalou-se a dúvida sobre a competência legislativa municipal sobre o tema, havendo manifestação da Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Fátima Nancy Andrighi, no sentido de que somente lei federal poderia regulamentar o Uber, pois as legislações estaduais e municipais sobre o tema violariam o art. 30, da Constituição Federal[10].
Sobremais, não é só a questão da competência legislativa que dificulta a regulamentação legal do Uber. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo julgou inconstitucional lei da capital paulista que restringia o famigerado aplicativo, contudo, o fez por outro fundamento. O Desembargador Relator Francisco Casconi proferiu voto no sentido de que o Município pode legislar sobre esta matéria. Superada a inconstitucionalidade formal, no mérito, a lei afrontou os princípios da livre iniciativa, da liberdade de trabalho e da livre concorrência, fixados pela Constituição Federal[11], razão de decretar-se sua inconstitucionalidade material. Como visto, há muitas polêmicas sobre o Direito Digital quanto as inconstitucionalidades formais e materiais, sendo que não nos estenderemos sobre este assunto neste momento, reservando o tema para uma análise mais criteriosa e detalhada em futuro artigo.
Como já se pôde notar, o Direito Digital está presente em todos os ramos Direito, pois a Informática e as tecnologias em geral invadiram todos os ambientes da nossa sociedade. Consequentemente, surgiram novas situações, enquanto outras condutas sofreram modificações em seu modus operandi. Hoje, temos delitos que se esgotam na própria rede de computadores, os quais são classificados como crimes digitais próprios, tendo como exemplo o tipo penal previsto no art. 154-A, do Código Penal, acrescentado pela Lei Ordinária Federal nº. 12.737/2012, mais conhecida como Lei Carolina Dieckmann. O citado artigo considera criminoso “invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita”, penalizando a prática com até 01 ano de detenção e multa.
Por outro lado, antigas condutas – principalmente criminosas – ganharam um novo meio de execução através da Internet: aqui temos os chamados crimes digitais impróprios. Citem-se como exemplos os delitos contra a honra ou a ameaça (Código Penal, art. 138 e ss. e art. 147) praticados via E-mail, redes sociais ou aplicativos de comunicação instantânea. Estes crimes utilizam o computador/celular como um meio, sendo que o seu resultado se dá no mundo real. Nestas situações, não foi necessário legislar criando novas figuras penais, mas apenas reinterpretar os tipos criminais já existentes, não havendo que se falar em analogia in malam partem.
O Direito Digital também enfoca os contratos feitos exclusivamente em ambiente virtual, o comércio eletrônico, a lesão a direitos do consumidor, os direitos trabalhistas pleiteados em razão da verificação e resposta de E-mails fora do local e horário de trabalho, a infidelidade conjugal via websites de relacionamento ou aplicativos de mensagens, além de páginas dedicadas a facilitar relacionamentos extraconjugais, ocasionando consequências no âmbito do Direito de Família.
Enfim, o Direito Digital não possui os elementos necessários a ser considerado um ramo autônomo do Direito. Inobstante isto, está presente em todos as áreas jurídicas: no Processo Civil e Penal, com o Processo Judicial Eletrônico (PJe), razão, ainda, de muitos problemas e dúvidas não só aos Advogados, mas também aos serventuários da Justiça, Juízes e Promotores; no Direito Penal, com crimes digitais próprios e impróprios; no Direito do Consumidor, com a regulação de compras online, publicidade enganosa e abusiva, entre outros. Também marca forte presença nos direitos autorais (pirataria, plágio etc.), tributário (como tributar serviços prestados pela Internet, mas que não tem base em território nacional?) e trabalhista (horas extras, sobreaviso, entre outros).
Em remate, estamos caminhando para uma verdadeira globalização, onde fronteiras estão sendo facilmente superadas e o contato entre pessoas, empregas, órgãos e governos de todo o mundo se dá em tempo real e a um custo cada vez menor. Posto isto, é dever dos operadores do Direito compreender este novo ambiente e interpretá-lo com as particularidades trazidas pela Informática e pelas tecnologias em geral, sob pena de se tornarem ultrapassados e obsoletos a este novo mundo cada vez mais virtual.
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* Artigo atualizado em 01/03/2017.