por Aline Marques Marino*
As discussões em torno da natureza jurídica das fundações instiuídas pelo Poder Público remontam aos anos anteriores à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. No entanto, atualmente há entendimento predominante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Vejamos os detalhes.
No decreto-lei 200/67, o ente fundacional integrava a Administração Pública Indireta, submetendo aos controles próprios das empresas estatais, com expressa menção à sua personalidade de direito privado. Com as alterações introduzidas pelo decreto-lei 900/69, a fundação foi retirada da Administração Pública, sujeitando-se às regras do Código Civil, sendo que parcela doutrinária, como Franco Sobrinho, Kelly Meirelles e Sérgio D’Andréa Ferreira, adotava a tese de inexistência de fundações de direito público no Brasil. Por outro lado, Cretella Júnior, Miguel Reale e Lafayette Pondé defendiam a ideia oposta, ou seja, demonstravam a existência das fundações de direito público, tendo em vista as características que as definem, sobretudo o exercício de atividades tipicamente públicas.
As críticas apareceram, alguns classificavam as fundações como entes de cooperação. Mas, devido à observância de abusos ocorridos na prática cotidiana em relação à aplicação das verbas públicas e à acumulação de cargos, sobretudo com a entrada em vigor das leis 6860/80 (autorizou a criação da Fundação Petrônio Portella), 7555/86 (autorizou a criação da Fundação São João Del Rey) e 6687/79 (autorizou a criação da Fundação Joaquim Nabuco), os entes fundacionais foram sendo paulatinamente submetidos às regras das entidades integrantes da Administração Indireta, como forma de moralização a evitar tais abusos. Esse contexto possibilitou o surgimento do decreto-lei 2299/86, que incluiu as fundações na Administração Indireta, e, após, da Lei Federal 7596/87, que alterou o decreto-lei 200/67 e revogou dispositivos do decreto-lei 900/69.
Em virtude do contexto histórico-social, bem como dos entendimentos doutrinários tenderem para o caráter publicista das fundações, a jurisprudência acompanhou essas ideias, chegando a admitir a possibilidade de dois regimes jurídicos de fundações[1]. O Supremo Tribunal Federal apresentou fases interpretativas diversas sobre este tema. Primeiramente, adotou a tese privatista de Hely Lopes Meirelles (Recurso Extraordinário 75.315-GO[2] e Conflito de Jurisdição 6.175[3]). Posteriormente, passou a aceitar o entendimento da existência das Fundações de Direito Público, em consonância com a doutrina majoritária (Recurso Extraordinário 101.126-2-RJ[4] e CJ 6.566-3-MG[5]).
Os entendimentos publicistas influenciaram a redação da Constituição Federal de 1988[6], que fez referência expressa às fundações de direito público nos artigos 37, caput (redação original) e incisos XVIII e XIX; 22, XXVII; 38; 150, VI, a; e 19, do ADCT, além do revogado artigo 39.
Assim, é possível afirmar a existência de duas correntes quanto à natureza jurídica das fundações: 1ª) há dois tipos de fundações: as de direito público (espécie de autarquia, conforme as lições de Celso Antonio Bandeira de Mello) e as de direito privado, aquelas com personalidade jurídica de direito público e estas, de direito privado. É a defendida pelo STF. 2ª) as fundações têm personalidade jurídica de direito privado, ainda quando instituídas pelo Poder Público.
São quatro os fatores diferenciais trazidos pelo STF para distinção entre as fundações governamentais de direito público e as de direito privado: a) desempenho de serviço estatal; b) regime administrativo; c) finalidade; d) origem dos recursos, admitindo-se que serão fundações estatais de direito público aquelas cujos recursos tiverem previsão própria no orçamento da pessoa federativa e que, por isso mesmo, sejam mantidas por tais verbas, ao passo que de direito privado serão aquelas que sobrevivem basicamente com as rendas dos serviços que prestem e com outras rendas e doações oriundas de terceiros.
Importa salientar, inclusive, que a alteração do artigo 37, inciso XIX, da CF, pela EC n° 19/98, conforme a opinião de Maria Sylvia Di Pietro, José dos Santos Carvalho Filho e José Afonso da Silva, constituiu o reconhecimento constitucional da possibilidade do Poder Público de instituir fundações dotadas de personalidade jurídica de direito privado ao lado das fundações de direito público existentes. Nesse sentido, é o entendimento de Lenir Santos:
As fundações de natureza jurídica de direito privado ingressam no mundo jurídico por vontade do Poder Público, manifestado por lei autorizativa, nos expressos termos do inciso XIX do art. 37 da Constituição Federal, com a redação dada pela EC nº 19, de 4 de junho de 1998, e pelo art. 1º, inciso II, da Lei nº 7.596/87, e adquirem personalidade por meio da inscrição de seu estatuto no Registro das Pessoas Jurídicas. (SANTOS, 2009, p. 148)
São esclarecedoras as seguintes ementas:
De tudo se conclui que o ordenamento jurídico brasileiro contempla três espécies do gênero fundação: aquelas tipicamente privadas, melhor dito, particulares, por não registrar qualquer participação, em sua criação, do Poder Público, regidas exclusivamente pelo Código Civil Brasileiro; aquelas criadas pelo Poder Público e que consignam, no ato de sua instituição, personalidade jurídica de direito público; e, finalmente, aquelas que, criadas pelo Poder Público, são instituídas, todavia, como pessoas jurídicas de direito privado (...). Essas duas últimas espécies – as fundações com personalidade jurídica de direito público criadas pelo Estado, e as fundações com personalidade jurídica de direito privado, também criados pelo Estado, agora mediante lei e antes por autorização legislativa, compõem o sub-gênero dito “fundações públicas”, submetendo-se, ambas aos controles públicos, e integrando, ambas, a Administração Pública Indireta. O que as distingue entre si é que as fundações de direto público nada mais são que autarquias travestidas em forma fundacional. Por essa razão os servidores são considerados servidores públicos civis, aplicando-se-lhes, por exemplo, a norma do art. 39 da Constituição Federal. Já a fundação de direito privado instituída pelo Poder Público – também fundação pública – é privada, mas não é particular (STF. Agravo no RE n° 219.900-1/RS, 1ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, 04.06.2002)
Apesar das divergências doutrinárias, podem ser visualizadas no Brasil três tipos de fundações: as privadas, as públicas com regime de direito privado e as públicas propriamente ditas. Afirma que, entre as espécies citadas, a única que prescinde de lei para sua criação é a estritamente privada, sendo vedado ao Estado a criação de fundações dessa modalidade (STF. MS nº 24. 427 – 5/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eros Grau, 30.08.2006)
Logo, pode-se concluir que há três espécies/natureza jurídica de fundações: fundações privadas ou particulares; fundações públicas de direito público (espécies de autarquia); e fundações públicas de direito privado[7]. O Poder Público poderá constituir fundações estatais com personalidade jurídica de direito privado para o desenvolvimento de atividades que não tenham fins lucrativos, não sejam exclusivas do Estado, bem como não exijam o exercício do poder de autoridade, em áreas como assistência social, saúde, ciência e tecnologia, meio ambiente, cultura, desporto e previdência complementar do servidor público.
[1]{C} STF. CJ 6.073-MG. Tribunal Pleno. Rel. Min. Cordeiro Guerra. 02.06.1977.
[2]{C} “Crime em detrimento do IBGE. Competência da Justiça Estadual, eis que se trata de fundação. Inteligência do artigo 125, inciso IV, da Lei Magna. Recurso Extraordinário a que se nega provimento” (STF. RE 75.315-GO, 1ª Turma, Rel. Min. Djaci Falcão, 27.02.1973).
[3]{C} “Conflito de Jurisdição. IBGE. As Fundações instituídas por lei não mais se incluem na Administração Indireta, segundo se vê do artigo 89 do Decreto-lei 900/69, que revogou sua equiparação às empresas públicas (artigo 49, § 29, do Decreto-lei 200/67. Em consequência, não gosam do foro da Justiça Federal (artigo 125, inciso I, da CF). Competência da Justiça Estadual.” (STF. CJ 6.175-7-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Djaci Falcão, 07.06.1979).
[4]{C} “Acumulação de cargo, função ou emprego. Fundação instituída pelo Poder Público. Nem toda fundação instituída pelo Poder Público é fundação de direito privado. As fundações, institpuidas pelo Poder Público, que assumem a gestão de serviço estatal e se submetem a regime administrativo previsto, nos Estados-membros, por leis estaduais são fundações de direito público, e, portanto, pessoas jurídicas de direito público. Tais fundações são espécies do gênero autarquia, aplicando-se a elas a vedação a que alude o § 2º do artigo 99 da Constituição Federal. São, portanto, constitucionais o artigo 2º, § 3º, da Lei 410, de 12 de março de 1981, e o artigo 1º, do Decreto 4086, de 11 de maio de 1981, ambos do Estado do Rio de Janeiro. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (STF. RE 101.126-2-RJ, Tribunal Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 24.10.1984).
[5]{C} “Competência. Fundação Legião Brasileira de Assistência – LBA – Nos julgamentos plenários do Supremo Tribunal Federal, nos CJ 6650-RS e 6651 (sessões do dia 14 de maio de 1986) ficou decidido que era da competência da Justiça Federal o processamento e julgamento de reclamações trabalhistas em que fosse parte a LBA. É que, no julgamento do RE 101.126 (sessão de 24.10.1984) entendeu o STF que fundações instituídas pelo Poder Público que assumem a gestão de serviço estatal e se submetem a regime administrativo previsto, no âmbito federal, a leis federais, devem ser consideradas como fundações de direito público que integram o gênero autarquias, possuindo a LBA tais requisitos, como decorre de seu estatuto, aprovado pelo Decreto 83.148-79.” (STF. CJ 6.566-3-MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Aldir Passarinho, 20.05.1987).
[6] “A Constituição de 5 de outubro de 1988, não obstante referir-se às fundações de forma assitemática e até confusa, reconheceu, no âmbito do direito constitucional, a existência da fundação pública instituída e mantida pelo Poder Público e da fundação pública instituída pelo Poder Público porém de natureza jurídica de direito privado.” (SANTOS, 2009, p.135)
[7]{C} Quanto às fundações públicas de direito privado, cabe esclarecer:
“(...) a posição da fundação governamental privada perante o poder público é a mesma das sociedades de economia mista e das empresas públicas; todas elas são entidades públicas com personalidade jurídica de direito privado, pois elas são instrumentos de ação do Estado para a consecução de seus fins; todas elas submetem-se ao controle estatal para que a vontade do ente público que a instituiu seja cumprida; nenhuma delas se desliga da vontade do Estado para ganhar vida inteiramente própria; todas elas gozam de autonomia parcial, nos termos outorgados pela respectiva lei instituidora.” (DI PIETRO, 1998, p. 323/324)
“Estão seus empregados sujeitos ao regime jurídico celetista, mediante concurso público de provas ou de provas e títulos (art. 37, II, da CF), inclusive para acumulo de cargos para fins criminais (art. 327 do Código Penal) e para fins de improbidade administrativa (arts. 1º e 2º da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992). Não se aplica a estabilidade constante do art. 41 da Constituição Federal , da mesma forma que os empregados de empresas estatais não se enquadram na situação descrita na norma. São beneficiários de acordo coletivo de trabalho e do FGTS e possuem plano de carreira, emprego e salários próprios.” (SANTOS, 2009, p. 149/153)
“Submissão à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, para a realização de licitação, nos termos dos arts. 1º e 19; possibilidade de contratação direta com o Poder Público, sem licitação, na hipótese prevista no art. 24, inciso XIII.” (SANTOS, 2009, p. 149/153)
* Aline Marques Marino é advogada, graduada em Direito pelo UNISAL-U.E. de Lorena, Especialista em Direito Administrativo pelo AVM Faculdade Integrada e WDireito, e Mestranda em Concretização dos Direitos Sociais, Ecnômicos e Culturais e dos Direitos de Titularidade Difusa e Coletiva pelo UNISAL-U.E. de Lorena. Contatos: (12) 98867-9398; alinemarinoadv@gmail.com