O princípio da razoabilidade e o método de interpretação conforme a Constituição


09/09/2014 às 17h53
Por Advocacia e Consultoria Dra. Aline Marques Marino

por Aline Marques Marino*

Conforme o Dicionário Aurélio (2010, p. 641), razoável é algo não absurdo, que está de acordo com a razão, que tem lógica. No âmbito jurídico, tal definição é positivada através das normas por força das características sociais de determinado povo, visto que a razoabilidade tem de ser apreendida com observância do consenso e do senso comum. É a “busca do meio termo, com renúncia de atitudes ou práticas de absolutismo” (SILVA, 1999, p. 9/10). “A norma razoabilidade visa aproximar o senso comum do bom senso” (OLIVEIRA, 2007, p. 184/185). Daí a elevação à categoria de princípio[1], o que permite a correlação lógica entre os objetos em estudo (OLIVEIRA, 2007, p. 19), servindo como alicerce aos Estados (MAQUIAVEL, 2005, p. 69).

Razoável traduz, pois, o julgamento conforme a justiça e o equilíbrio. O filósofo grego Aristóteles, na obra A Política, explana que “a justiça é a procura do meio termo” e que encontrar este meio é tarefa dificultosa, sendo que aquele dedicado às atividades públicas, o legislador, o julgador ou administrador, deve voltar-se à prudência. (ARISTÓTELES, 1996, p. 46/63).

Na mesma esteira, outros pensadores colocam a mesma ideia. Thomas Morus (1990, p. 70), no livro A Utopia, diz que “quando não se consegue atingir a perfeição, deve-se, ao menos, atenuar o mal”. Thomas de Aquino (1980, p. 267/268) entende que não é razoável deixar de fazer aquilo que se entende por certo, bem como não se pode admitir como razoável aquilo que se entende errado. René Descartes (2006, p. 72) alerta para o “cuidado com a escolha dos extremos, evitando os excessos”.

No mesmo sentido:

Razoabilidade é a norma constitucional que estabelece critérios formais e materiais para a ponderação de princípios e regras, com o que confere lógica aos juízos de valor e estreita o âmbito da discricionariedade com base na pauta prevista pela Constituição, estando essencialmente ligada ao bom senso maios do que ao senso comum. (OLIVEIRA, 2007, p. 105)

Dessa forma, há de se observar a relação do princípio da razoabilidade com a interpretação conforme a Constituição:

“(...) os princípios constitucionais, explícitos ou implícitos, desempenham um papel fundamental como reflexos normativos dos valores constitucionais (...). Em outros termos, pode-se dizer que estes se traduzem juridicamente, desde a base do ordenamento jurídico, em princípios, nele explicitados ou não, tidos como verdadeiros instrumentos de implementação e proteção de tais valores historicamente consagrados na maioria dos sistemas normativos ocidentais.” (CADEMARTORI, 2006, p. 80)

Percebe-se que há uma relação intrínseca do princípio da razoabilidade com as normas de interpretação, bem como o destaque ao aspecto axiológico.

A origem do princípio da razoabilidade, consoante a doutrina majoritária, encontra-se no artigo 39 da Magna Carta Inglesa de 1215 (sistema do commom law). Menciona-se a decisão do caso da Associated Provincial Picture House Ltd. V. Wednesbury Corpn, de 1948, quando o Lord Greene estabeleceu que “existe irrazoabilidade quando a Administração realiza uma atuação tão absurda que nenhuma pessoa sensível poderia sequer sonhar que ela se acha dentro dos poderes de autoridade” (OLIVEIRA, 2007, p. 82; CADEMARTORI, 2006, p. 115).

Cademartori (2006, p. 115) traz à baila um registro ainda mais antigo, datado de 1905, no direito britânico, em que a razoabilidade serviu como critério de julgamento. Trata-se da jurisprudência anglo-saxônica, quando o Lord Macnaughten decretou a seguinte regra: “It is well setted that a public body invested with statutory powers such as those conferred upon the corporation must take not to exceed or abuse its powers. It must keep within limits of the authority committed to it. It must act in good faith. And it must act reasonably. The last proposition is involved in the second, if not in the first”[2].

Luís Roberto Barroso (1998, p. 71) utiliza as nomenclaturas “razoabilidade externa” e “razoabilidade interna”, seguindo a base teórica do jurista argentino Humberto Quiroga Lavié. Enquanto a razoabilidade interna cuida da compatibilidade entre meio e fim, a razoabilidade externa avalia a legitimidade dos meios.

Esta razoabilidade deve ser aferida, em primeiro lugar, dentro da lei. É a chamada razoabilidade interna, que diz com a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins. (...) De outra parte, havendo razoabilidade interna é preciso verificar sua razoabilidade externa, isto é: sua adequação aos meios e fins admitidos e preconizados pelo texto constitucional, não será legítima nem razoável à luz da Constituição, ainda que o fosse internamente. (BARROSO, 1998, p. 71)

O constitucionalista dá continuidade às observações, destacando o sentido valorativo do princípio da razoabilidade:

O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo o ordenamento jurídico: a justiça. (BARROSO, 1998, p. 69)

No Direito Brasileiro, o princípio da razoabilidade pode ser observado, por exemplo, no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal[3], no artigo 461, § 4º, do Código de Processo Civil[4], no artigo 2º da Lei 9.784/99[5], no artigo 3º da Lei 1.533/51 (antiga Lei do Mandado de Segurança), no artigo 111 da Constituição do Estado de São Paulo e nas súmulas 285 e 400 do Supremo Tribunal Federal[6].

Ressalta-se, também, que o princípio da razoabilidade está interligado ao princípio do devido processo legal (CASTRO, 1989, p. 381; BARROSO, 1998, p. 69). Cademartori (2006, p. 116) explica que a conexão entre a razoabilidade e o devido processo legal obedeceu duas etapas, formal e substantiva:

Em termos históricos, a trajetória de consolidação do princípio do devido processo legal como principio conexo ao da razoabilidade observou duas etapas. A primeira enfatixou o caráter estritamente formal e processual (procedural process) do Direito. Numa segunda etapa, produto de um avanço paulatino, o devido processo legal assumiu um caráter substantivo (substantive due process) onde passou a ser avaliada, também, a razoabilidade e racionalidade das normas, num processo de análise baseado na verificação de compatibilidade entre o respeito pelas liberdades individuais, de um lado, e, por outro, as exigências sócio-políticas que moldam os valores constitucionais do Estado. (CADEMARTORI, 2006, p. 116)

Por fim, verifica-se que o princípio da razoabilidade é “um valioso instrumento de proteção dos direitos fundamentais e do interesse público, por permitir o controle da discricionariedade dos atos do Poder Público e por funcionar como medida com que uma norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim constitucional nela embutido ou decorrente do sistema” (BARROSO, 2002, p. 373).

[1] Quanto aos princípios, faz-se mister a observação do jurista Paulo Bonavides, ao destacar a juridicidade destes: “A proclamação da normatividade dos princípios em novas formulações conceituais e os arestos das Cortes Supremas no constitucionalismo contemporâneo corroboram essa tendência irresistível que conduz à valoração e eficácia dos princípios como normas-chaves de todo o sistema jurídico; normas das quais se retirou o conteúdo inócuo de programaticidade, mediante o qual se costumava neutralizar a eficácia das Constituições e seus valores reverenciais.” (BONAVIDES, 2007, p. 286)

[2] Tradução: “Está estabelecido que uma entidade pública investida de poderes legais como os que se concedem a uma corporação deve ter o cuidado de não exceder ou abusar dos seus poderes. Deve manter-se dentro dos limites de autoridade que lhe foram conferidos. Deve atuar de boa-fé. E deve atuar razoavelmente. A última proposição está incluída na segunda, se não na primeira.” (CADEMARTORI, 2006, p. 115)

[3] CF, art. 5º, LXXVIII: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” (grifo nosso)

[4] CPC, art. 461, § 4º: “O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito” (grifo nosso)

[5] Lei 9.784/99 (Processo Administrativo), art. 2º, caput: “A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência” (grifo nosso)

[6] STF, Súmula 285: “Não sendo razoável a arguição de inconstitucionalidade, não se conhece do recurso extraordinário fundado na letra ‘c’ do art. 101, III, da Constituição Federal” (grifo nosso)

STF, Súmula 400: “Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra ‘a’ do art. 101, III, da Constituição Federal” (grifo nosso)

* Aline Marques Marino é advogada, graduada em Direito pelo UNISAL-U.E. de Lorena, Especialista em Direito Administrativo pelo AVM Faculdade Integrada e WDireito, e Mestranda em Concretização dos Direitos Sociais, Ecnômicos e Culturais e dos Direitos de Titularidade Difusa e Coletiva pelo UNISAL-U.E. de Lorena. Contatos: (12) 98867-9398; alinemarinoadv@gmail.com

  • princípio da razoabilidade
  • interpretação conforme a Constituição
  • Justiça
  • Direitos Fundamentais

Referências

AQUINO, Santo Tomaz de. Summa Theologicae. Tradução de Alexandre Corrêa. Caxias do Sul: Sulina, 1980.

ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. 15 ed. São Paulo: Coleção Mestres Pensadores. Editora Escala. 1996.

BARROSO, Luís Roberto. “Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional”. Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. Revista dos Tribunais. 23 ed. 1998.

________. Interpretação e aplicação da Constituição. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 20 ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CADEMARTORI, Luiz Henrique Urquhart. Discricionariedade administrativa no Estado Constitucional de Direito. 6ª tir. Curitiba: Juruá, 2006.

CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989.

CURIA, Luiz Roberto; CÉSPEDES, Lívia; NICOLETTI, Juliana (organizadores). Vade Mecum compacto. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução de João Cruz Costa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Míni Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8 ed. Curitiba: Positivo, 2010.

MAQUIAVEL. O Princípe. Tradução de Torrieri Guimarães. 7 ed. São Paulo: Hemus, 2005.

MORUS, Thomas. A Utopia. Tradução de Luís de Andrade. São Paulo: Ediouro, 1990.

OLIVEIRA, Fábio de. Por uma teoria dos princípios – o princípio constitucional da razoabilidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007.

SILVA, Moacyr Motta da. “O princípio da razoabilidade como expressão do princípio de justiça e a esfera dos poderes jurisdicionais do juiz”. Revista Novos Estudos Jurídicos. Ano V, n. 8, abril de 1999.



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