O princípio do juiz natural como direito e garantia constitucional


09/09/2014 às 17h58
Por Advocacia e Consultoria Dra. Aline Marques Marino

por Aline Marques Marino*

Os direitos e garantias fundamentais funcionam como um sistema de pesos e contrapesos, em que o próprio Estado elenca direitos aos cidadãos e, ao mesmo tempo, estabelece limites nas relações entre os particulares (eficácia horizontal) e entre o Estado e o particular (eficácia vertical). Assim, a Constituição coloca garantias constitucionais juridicionais como, por exemplo, o princípio do juiz natural, que merece uma análise sistemática.

A maioria doutrinária entende que o princípio do juiz natural tem seus primórdios na Magna Carta de 1215, do Rei João Sem Terra, na Inglaterra[1]. No entanto, Ada Pellegrini Grinover (1983, p. 11-33) esclarece que se deve observar o contexto histórico da época, concluindo que a origem de tal princípio é posterior e remonta à formação do Estado Moderno, sobretudo com a ruptura do regime absolutista, tendo em vista que, à época, a função jurisdicional estatal era pouca desenvolvida e o que se verificava era uma justiça feudal (COUTINHO, 1998, p. 171).

No Brasil, a origem do princípio do juiz natural está interligada com o desenvolvimento da jurisdição. A Constituição de 1824[2] já o previa, apesar de, na prática, não ser tão respeitado, visto que este diploma foi outorgado pelo imperador.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, atualmente em vigor, prevê o princípio do juiz natural no artigo 5º, incisos XXXVII (“não haverá juízo ou tribunal de exceção”), LIII (“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”) e LIV (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”).

Como se observa, o princípio do juiz natural decorre da garantia constitucional do devido processo legal. Nesse sentido, é a jurisprudência:

“(...) Tão antigo como antiga é a própria legislação – não há falar em jurisdição sem falar em juiz natural - , o princípio do juiz natural tem, ao fim e ao cabo, a finalidade de resguardar a legitimidade, a imparcialidade e a legalidade da jurisdição.” (STJ. AgReg no HC 106590/SP. Rel. Min. Nilson Naves. Sexta Turma. J. 05.05.2009. Dje 01.06.2009)

O conteúdo do princípio do juiz natural se refere ao juízo adequado para o julgamento de determinada demanda, conforme as regras de fixação de competência e a proibição de juízos extraordinários ou tribunais de exceção (ex post facto), ou seja, constituídos após os fatos.

“(...) o vocábulo ‘natural’ simboliza aquilo que é ordinário, que não é artificial, que pode ser reconhecido facilmente, que foi estabelecido sem qualquer tipo de manipulação, de forças que atuam externa ou internamente ao Judiciário.” (RODRIGUES, 2007, p. 174.)

Conforme os ensinamentos de Ada Pellegrini Grinover (1983, p. 28), o princípio do juiz natural contém dupla garantia: a) a proibição de juízos extraordinários, constituídos ex post facto; e b) a proibição de subtração do juiz constitucionalmente competente. Daí, decorrem três conceitos: a) só são órgãos jurisdicionais os instituídos pela Constituição Federal; b) ninguém pode ser julgado por órgão constituído após a ocorrência do fato; e c) ordem taxativa de competências dos juízos pré constituídos, o que exclui a discricionariedade.

Numa explicação mais contemporânea, as lições de Nelson Nery Junior acrescenta um terceiro aspecto, a imparcialidade do juiz:

“Significa que 1) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de exceção; 2) todos têm o direito de submeter-se a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; 3) o juiz competente tem de ser imparcial.” (NERY JÚNIOR, 2002, p. 28)

Da mesma forma, é o entendimento de Fredie Didier Júnior:

“Substancialmente, a garantia do juiz natural consiste na exigência da imparcialidade e da independência dos magistrados. Não basta o juízo competente, objetivamente capaz, é necessário que seja imparcial, subjetivamente capaz.” (DIDIER JÚNIOR, 2009, p. 92)

Todas as garantias do juiz natural visam a proteção da ordem democrática. Ao vedar os tribunais de exceção, verifica-se que o órgão judiciário responsável pelo julgamento deve preexistir aos fatos, o que impede a arbitrariedade do Estado. O juiz competente é a autoridade definida pela Constituição Federal ou pela lei que tem a atribuição de processar e julgar determinada causa. A imparcialidade significa que o julgador é equidistante das partes, o que é necessário a um julgamento justo e demonstra a igualdade entre os litigantes da relação processual.

Carlos Alberto Alvaro Oliveira dispõe tal princípio como “garantia constitucional”, no caso, relacionada à jurisdição e ao processo:

“A garantia do juiz natural, por sua vez, compõe também importante faceta do formalismo processual, por igualmente circunscrever o exercício arbitrário do poder impedindo a alteração da competência do órgão judicial ou a criação de tribunal especial, após a existência do fato gerador do processo, para colocar em risco os direitos e garantias da parte, tanto no plano processual quanto material. Daí a necessidade de tal matéria ser regulada por um direito processual rigoroso, aplicado de maneira formal, sugestão a que desde muito se mostra sensível o ordenamento jurídico brasileiro, erigindo o princípio à condição de garantia constitucional.” (OLIVEIRA, 2009, p. 105)

Algumas situações parecem que violam tal princípio, mas, numa observação mais minuciosa, depreende-se o contrário. Por exemplo: 1) a competência ratione personae é estabelecida em razão da função, e não da pessoa individualmente; 2) a prorrogação de competência; 3) a arbitragem, visto que há faculdade das partes quanto à escolha desse meio de resolução de conflitos; 4) a distribuição por dependência; e 5) o respeito à regra de substituição dos magistrados, no caso de excesso de prazo injustificado e remessa dos autos a outro juízo (artigo 198 do Código de Processo Civil).

Consoante entendimento jurisprudencial (STF. HC 86889/SP. Rel. Ministro Menezes Direito. 1ª Turma. DJ 15.02.2008. STJ. HC 118468-SP. Rel. Min. Jorge Mussi. 5ª Turma. J. 16-04-2009), a convocação de juízes singulares para compor, extraordinariamente, o Órgão Julgador Colegiado nos Tribunais constitui exceção à regra e não ofende o princípio do juiz natural, pois há previsão em lei (artigo 118 da Lei Complementar 35/1979 e artigo 4º da 9788/1999)

Outra manifestação do princípio do juiz natural encontra-se na identidade física do juiz, estabelecida nos artigos 132[3] do Código de Processo Civil e 399[4] do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, podemos constatar que o princípio do juiz natural encontra-se entre os direitos fundamentais, a medida que confere certeza ao jurisdicionado de que a ação será processada e julgada por um juiz ou tribunal competente, um dos sub-princípios, portanto, do devido processo legal.

[1] Magna Carta de 1215, art. 21: “condes e barões não serão multados senão pelos seus pares, e somente de conformidade com o grau de transgressão”.

[2] CF 1824, artigo 179, incisos XI (“Ninguem será sentenciado, senão pela Autoridade competente, por virtude de Lei anterior, e na fórma por ella prescripta”) e XVII (“A excepção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juizos particulares, na conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem Commissões especiaes nas Causas civeis, ou crimes”).

[3] CPC, artigo 132: “O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência, julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer motivo, promovido ou aposentado, casos em que passará os autos ao seu sucessor.

Parágrafo único. Em qualquer hipótese, o juiz que proferir a sentença, se entender necessário, poderá mandar repetir as provas já produzidas.”

[4] CPP, artigo 399, § 2º: “O juiz que presidiu a instrução deverá proferir a sentença”.

* Aline Marques Marino é advogada, graduada em Direito pelo UNISAL-U.E. de Lorena, Especialista em Direito Administrativo pelo AVM Faculdade Integrada e WDireito, e Mestranda em Concretização dos Direitos Sociais, Ecnômicos e Culturais e dos Direitos de Titularidade Difusa e Coletiva pelo UNISAL-U.E. de Lorena. Contatos: (12) 98867-9398; alinemarinoadv@gmail.com

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  • jurisdição
  • justiça

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em: 10 de março de 2012.

BRASIL. Constituição de 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em: 10 de março de 2012.

BRASIL. Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm. Acesso em: 10 de março de 2012.

BRASIL.  Código de Processo Penal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso em: 10 de março de 2012.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Habeas Corpus 106590/SP. Relator: Ministro Nilson Naves. Sexta Turma. Julgamento: 05.05.2009.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 118468-SP. Relator: Ministro Jorge Mussi. Quinta Turma. Julgamento: 16.04.2009.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 86889/SP. Relator: Ministro Menezes Direito. Primeira Turma. Julgamento: 15.02.2008.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Introdução aos Princípios Gerais do Processo Penal Brasileiro”. Revista da Faculdade de Direito da UFPR. n. 30. Curitiba, 1998.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 11 ed. Salvador: JusPODVM, 2009.

GRINOVER, Ada Pellegrini. “O princípio do juiz natural e sua dupla garantia”. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 29, p. 11-33, jan-mar 1983.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

Magna Carta de 1215. Disponível em: http://corvobranco.tripod.com/dwnl/magna_carta.pdf. Acesso em: 10 de março de 2012.

NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 7 ed. São Paulo: RT, 2002.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Do Formalismo no Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2009.

RODRIGUES, Geisa de Assis. Anotações sobre o princípio constitucional do juiz natural. Constituição e Processo. In.: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JR., Luiz Manoel (org.). Salvador: JusPODIVM, 2007.



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