Das últimas décadas do século passado à atualidade, impulsionada pelos novos paradigmas da Era do Conhecimento e da Informação pela redemocratização do regime político, a sociedade brasileira tem abandonado o papel de expectadora da cena pública, para assumir o verdadeiro protagonismo que o Estado Democrático de Direito lhe garante constitucionalmente. "Nunca antes na história deste país" foram vistos tantos movimentos sociais encabeçados por cidadãos e entidades da sociedade civil que, conscientes de seus direitos fundamentais e inconformados com a má condução da coisa pública, resolveram ir às ruas para manifestar seu profundo descontentamento. Enfim, nasce um inadiável desejo de mudança! Se, por um lado, a onda de protestos deve ser celebrada, posto que representa avanço de maturidade democrática da sociedade, por outro, não se pode ignorar os danos causados aos patrimônios público e privado pelas multidões enfurecidas. Depredação do patrimônio privado, pilhagem de estabelecimentos comerciais, lesões corpoais, isto é, está-se a tratar dos danos causados por atos de multidão, também chamados de movimentos multitundinários, que têm cunho reivindicatório e são motivados por circunstâncias socioeconômicas.
Dúvidas
A questão que se põe é a seguinte: o Estado é responsável civilmente pelos danos produzidos pelas multidões ao patrimônio privado? O tema não é novidade no Direito Administrativo. Como bem observou a professora Sonia Sterman "a responsabilidade do Estado em decorrência de danos produzidos por multidões passou a preocupar os juristas franceses a partir da Revolução Francesa, em razão de danos materiais sofridos pelos particulares em casas, mansões e palácios". Nesse contexto, concebeu-se a teoria da divisão entre atos de império e atos de gestão, segundo a qual, pelos primeiros, não haveria para o Estado dever de reparação dos eventuais danos causados, já que decorriam do traço indelével da supremacia estatal, consubstanciada no seu poder de polícia. Diversamente, se tratasse de atos de gestão, em que não há exercício da supremacia, pois o Poder Público agiria como particular na administração de seus bens, poderia haver obrigação de indenização se configurados os pressupostos necessários para tanto. Na prática, contudo, a grande parte das ações estatais era classificada como atos de império, o que sepultava de uma vez a pretensão reparatória dos cidadãos.
Posteriormente, a própria França tratou de conceber proveitosa legislação, garantindo direito de indenização às vítimas de danos causados por atos multitudinários, a saber: Lei nº 83/1983 e o Código Geral das Coletividades Territoriais (Artigo L. 2216-2). Nessa mesma linha, outros países também preveem responsabilidade civil do Estado por atos de multidão: Itália (Artigo 28 da Constituição; e Artigo 2.043, Código Civil), EUA (Lei nº 107-56/2001) e Portugal (Lei nº 25/2008).
Dolo Ou Culpa
A responsabilidade objetiva do Estado está consagrada no Artigo 37 $ 6º da CF, no Artigo 43 do Código Civil e alcança os danos causados pelos agentes das pessoas jurídicas de direito público e das de direito privado prestadoras de serviços públicos, quando agem no exercício da função pública. A nota característica da responsabilidade objetiva é a desnecessidade de se comprovar dolo ou culpa na conduta do agente público causador do dano como condição para a deflagração do dever de indenizar. Como, no Brasil, não é adotado a teoria do risco administrativo, a culpa do Estado é objetivamente presumida com relação aos danos causados aos particulares. Ideia estribada nos valores de justiça distributiva e de vedação ao enriquecimento injustificado de determinado sujeito (beneficiário da conduta) à custa dos demais (vítimas da conduta).
De outro giro, a responsabilidade subjetiva encontra-se prevista nos Artigos 186, 187 e 927, caput do Código Civil. A tônica dessa modalidade de responsabilidade civil é a exigência de demonstração de dolo ou culpa do causador do dano como requisito para que haja dever de indenizar.
Respondendo à indagação proposta, entendo que o Estado é responsável pelos danos causados por atos de multidão e com base na responsabilidade subjetiva, pois a omissão estatal, caso comprovada, expecífica e deliberada, não é causa do dano, mas condição de sua configuração. Explica-se: a omissão estatal em si, não gera danos, mas pode proporcionar o ambiente favorável à sua ocorrência. No tema em análise, os danos causados por terceiros (a multidão), e não pela conduta de servidores estatais (agentes de segurança pública). Ocorre que, em determinados casos, se tivesse havido intervenção dos órgãos competentes, o dano poderia ter sido completamente evitado, ou, quando menos atenuado. Daí a explicação da responsabilidade subjetiva.
Em consonância com meu pensamento defende Sonia Sterman que: "os danos produzidos aos particulares por quem não seja agente público [no caso a multidão - atos de terceiros] são determinados pela omissão da autoridade em não conter a multidão, o que é condição do dano, e não causa, Desse modo, o Estado só responde por omissão nos casos em que devia agir e não agiu".
Na mesma linha, outra não é a doutrina do saudoso Hely Lopes Meirelles, para quem o $ 6º do Artigo 37 da Constituição: "não responsabilizou objetivamente a Administração por atos predatórios de terceiros, nem por fenômenos naturais que causem danos aos particulares" Celso Antônio Bandeira de Mello também perfilha essa tese.
A tese encontra-se pacificamente encampada na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o que pode ser verificado no conteúdo dos seguintes arestos, cujo teor não reproduzirei para não delongar no texto: RE 36018; RE 28191; RE 20731; RE 17746; RE 18633; RE 17803.
Dessa maneira, conclui-se que aplica a responsabilidade subjetiva ao dever civil de o Estado reparar os danos causados por movimentos multitudinários, devendo o Estado, se demandando a indenizar os prejudicados, demonstrar que foram tomadas as providências necessárias, adequadas e possíveis para evitar os danos.
Considerações
Em suma, retomando a constatação inicial, são proveitosas as mudanças pelas quais vem passando a sociedade brasileira, rumo ao pleno exercício da cidadania, à assunção do poder pelo povo, seu natural titular. Nesse cenário, cabe aos operadores do Direito a busca pela melhor solução jurídica, a mais adequada e menos conflituosa, nunca cedendo ás paixões e simpatias, e sempre crendo que não há melhor caminho para a preservação das liberdades e concretização dos superlativos valores da dignidade da pessoa humana.