Do Feitor ao Encarregado: mediações, conflitos e legitimidade nas relações de trabalho em grandes empreendimentos


05/12/2025 às 14h24
Por Paulo Cesar Dula

  • Ensaio sobre uma condição liminar no universo da subordinação em projetos de infraestrutura.

 

  • Tal prática também evita que ocorram situações comuns em algumas corporações, onde se cria a tal "guerra” intersetorial, que os transforma em inimigos ou rivais.  Nessas circunstâncias, cada um passa a culpar o outro por quaisquer fagulhas organizacionais, como se houvesse disputa concorrencial internamente, o que desafia a construção de um clima saudável e de uma cultura empresarial sólida, chegando até a gerar micro sabotagens internas.
  • Valorizar os líderes é também valorizar o trabalho invisível que sustenta cada metro de estrada, ponte ou túnel.

 

Introdução

Entre o início da terraplenagem e a finalização do pavimento, rígido ou flexível de concreto asfáltico, habita uma figura singular e, ao mesmo tempo, invisível: o encarregado — outrora chamado ou iniciado como feitor, capataz, chefe de turma, líder de equipe. Quem é esse personagem? Um mediador? Um administrador improvisado? Ou, talvez, apenas um sobrevivente entre duas forças antagônicas: a gerência do contrato, com suas exigências de custo, prazo e produtividade, e os trabalhadores, com seus anseios por reconhecimento, segurança e melhores condições de vida?

No imaginário dessas organizações empresariais, o encarregado é visto como um “agente intermediário em situação de tensão”, aquele que participa intensamente das relações de trabalho, mas sem uma posição clara, definida e legitimada. É ele quem se torna, tantas vezes, o bode expiatório dos conflitos e das falhas, quando, na realidade, sua condição reflete a ausência de uma política mais madura de gestão e de valorização da função.

A condição liminar do encarregado

O encarregado é, quase sempre, um trabalhador promovido pela excelência técnica. O bom executor de ontem converte-se, da noite para o dia, em gestor dos trabalhadores, portador de responsabilidades que não domina. Essa transição súbita ecoa a contradição já apontada por Max Weber*: a separação entre quem concebe e quem executa, entre o saber e o fazer. O encarregado vive nesse espaço de ruptura, convocado a liderar sem ter sido formado para tanto.

  • Alemão (original, de Wirtschaft und Gesellschaft): „Einmal restlos durchgeführte Bürokratie … da ist eine praktisch so gut wie unzerbrechliche Form der Herrschaftsbeziehungen geschaffen.“ wiki.hwr-berlin.de Tradução livre: “Uma vez que a burocracia esteja completamente instaurada … aí é criada uma forma de relações de dominação praticamente inquebrável.”

Esse indivíduo habita, portanto, um território de fronteira. De um lado, recebe pressões verticais da gerência, que lhe cobra metas para o resultado financeiro, eficiência e disciplina. De outro, convive com a horizontalidade dos trabalhadores, que o interpelam por melhores condições de trabalho, salários dignos e respeito humano. Aqui, o conceito de dominação legítima de Max Weber ajuda a compreender: a autoridade do encarregado raramente repousa em uma legitimidade institucional clara; é mais frágil, negociada, muitas vezes sustentada apenas pela tradição ou pelo improviso.

  • A dominação legítima, segundo Max Weber, refere-se ao poder que é aceito e reconhecido pelos dominados, não apenas imposto pela força. Weber identifica três tipos ideais de dominação legítima: a tradicional, baseada no costume e na crença na santidade das tradições; a carismática, fundamentada nas qualidades excepcionais e na devoção pessoal a um líder; e a legal-racional, que se sustenta em um sistema de regras impessoais e racionais, como a lei.

O paradoxo do poder sem autoridade

Há uma ironia trágica na posição do encarregado: exige-se dele autoridade, mas nega-se o poder. Espera-se que administre pessoas como se fosse um “pequeno empreendedor”, mas confina-se sua atuação sob o peso da interferência de múltiplos setores — custos, qualidade, planejamento, manutenção — que reduzem seu campo de ação.

Esse paradoxo pode ser lido à luz da teoria das funções administrativas de Fayol, reelaborada por Idalberto Chiavenato: planejar, organizar, dirigir e controlar são etapas interdependentes, mas esse líder costuma ser responsabilizado apenas pela “direção”, sem acesso pleno ao planejamento nem autonomia para o controle. O resultado é um líder de papel esvaziado, cuja imagem diante da equipe se desgasta.

As frases que ecoam nos canteiros de obras — “não adianta falar com ele”, “ele não resolve”, “ele não sabe nada” — expressam, na verdade, um déficit de legitimidade. Aqui, podemos invocar Pierre Bourdieu: autoridade só se mantém quando há reconhecimento simbólico. Sem respaldo da gerência nem confiança dos operários, o encarregado vê sua função corroída.

A juventude que não aceita mais calar

A situação se agrava com a chegada de uma nova geração de trabalhadores. Diferentes dos antigos, marcados pelo conformismo e pela obediência, os jovens de hoje trazem demandas imediatas: lazer, reconhecimento, qualidade de vida. Não aceitam passivamente regras e ordens. Contestam, pressionam, exigem. Esse embate coloca o encarregado no centro de um conflito que ele não está preparado para administrar.

À luz da psicodinâmica do trabalho de Christophe Dejours, pode-se dizer que o encarregado é também alvo de um sofrimento ético: vive a contradição entre a disciplina imposta pela gerência e a solidariedade natural com seus pares de origem, os trabalhadores. Nesse terreno ambíguo, sua saúde psíquica e sua motivação são constantemente testadas.

Diagnóstico: o encarregado como figura trágica

À luz dessa análise, pode-se afirmar que o encarregado encarna uma figura trágica dentro das organizações: responsável sem poder, cobrado sem preparo, líder sem legitimidade plena. Sua condição liminar — essa permanência na fronteira entre dois mundos — o transforma em peça-chave na produtividade e no clima organizacional, ao mesmo tempo em que o expõe ao desgaste psicológico e profissional.

Altos índices de absenteísmo, rotatividade e conflitos no ambiente de trabalho estão diretamente ligados à atuação (ou à falta de condições de atuação) desses encarregados. Não se trata, portanto, de um problema individual, mas de um nó estrutural da gestão contemporânea.

Conclusão: “O indivíduo em posição de equilíbrio precário entre interesses conflitantes” ao mediador estratégico

Propostas de Intervenção: do improviso à institucionalização do papel do encarregado

A reversão do quadro de fragilidade e indefinição do papel do encarregado exige mais do que boa vontade gerencial. Trata-se de uma agenda estratégica, que deve articular políticas de valorização, capacitação e integração organizacional. Nesse sentido, propõem-se as seguintes medidas:

a) Formação inicial de encarregados: Seleção criteriosa de trabalhadores com aptidão para lidar com pessoas, privilegiando a comunicação, a liderança e a capacidade de mediação, em vez de restringir a escolha apenas à excelência técnica.

b) Capacitação continuada: Treinamentos periódicos em liderança, relações humanas, gestão de conflitos e fundamentos de gestão de projetos, de modo a preparar o encarregado para ser um elo de integração entre diferentes universos.

c) Reconhecimento institucional: Criação de planos de remuneração específicos, vinculados a resultados coletivos e não apenas à execução individual, distinguindo o encarregado dos trabalhadores comuns e conferindo-lhe legitimidade perante a equipe.

d) Autonomia relativa e clara delimitação de papéis: Conferir ao encarregado espaço efetivo de decisão sobre recursos humanos sob sua chefia, restringindo interferências excessivas de setores de apoio, para que ele não seja um gestor esvaziado, mas uma liderança reconhecida.

e) Job Rotation como ferramenta de valorização: Implementar programas de job rotation em que gestores e técnicos percorram diferentes áreas da organização e do projeto. Somente vivenciando os processos executados em outros setores é possível cultivar respeito mútuo, eliminar preconceitos funcionais e compreender a interdependência que sustenta o empreendimento.

f) Integração setorial na admissão como alternativa ao Job Rotation: Na hipótese de a alta direção não dispor de tempo ou recursos para um job rotation completo, impõe-se a implementação de um programa robusto de integração setorial já no momento da admissão, promoção ou transferência. Esse modelo — que eu adotei pioneiramente numa UHE no Rio Uruguai — mostrou resultados consistentes ao combinar palestras e vivências práticas nos setores-chave (RH, financeiro, segurança, custos, almoxarifado, manutenção, planejamento etc.), conduzidas por representantes de cada área. A proposta é que cada admitido percorra esse circuito de socialização organizacional, compreendendo a identidade da empresa, os fluxos interdependentes e a relevância de cada setor. (anexo: o que deu início)

g) Prevenção de rivalidades internas: Tal processo de integração também funciona como antídoto contra a fragmentação organizacional. Evita-se a criação de “campos de guerra” entre setores, que, em muitas corporações, transformam colegas em rivais, culpando uns aos outros por falhas, atrasos e retrabalhos — como se existissem empresas concorrentes dentro da mesma estrutura. A integração setorial combate essa lógica perversa, desarmando os focos de hostilidade e substituindo-os por uma cultura de cooperação e responsabilidade compartilhada.

  • Tal prática também evita que ocorram situações comuns em algumas corporações, onde se cria a tal "guerra” intersetorial, que os transforma em inimigos ou rivais.   Nessas circunstâncias, cada um passa a culpar o outro por quaisquer fagulhas organizacionais, como se houvesse disputa concorrencial internamente, o que desafia a construção de um clima saudável e de uma cultura empresarial sólida, chegando até a gerar micro sabotagens internas.

Mais do que um executor de ordens, o encarregado deve ser compreendido como um mediador estratégico, um tradutor de universos distintos. Quando preparado e reconhecido, ele deixa de ser “uma figura em situação delicada de mediação” para se tornar a ponte entre a racionalidade econômica da gerência e a humanidade concreta dos trabalhadores.

Assim como uma obra só se sustenta pela continuidade entre a primeira camada de terraplenagem e o acabamento do concreto asfáltico, também a empresa só alcança resultados duradouros quando dá coesão ao trabalho invisível de seus encarregados. Eles são o eixo que liga o início ao fim, o esforço ao resultado, a base ao acabamento. Invisíveis na inauguração do empreendimento, mas presentes em cada metro de chão que se abre ao futuro.

 

— Salvo um melhor juízo.

 

A gênese deste ensaio aconteceu no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, atuei como preposto em audiências trabalhistas nas antigas JCJ. Ao sair da sala do juiz, os desabafos dos trabalhadores revelavam tensões (com seus ex-líderes), dilemas e sutilezas das relações de trabalho que muitas vezes não aparecem nos registros oficiais. Dos relatos desses encontros surgiu o presente , que busca refletir sobre as dinâmicas humanas e a gestão de pessoas — aprendizados que permanecem atuais até hoje.

 

DULA, Paulo César: Advogado, pós graduado em direito e processo do trabalho, MBA-FGV em GE Estratégia; Gestão de Projetos, foi especialista em gestão de talentos. (OAB/DF 29.342)

 

 

  • Liderança
  • Conflitos interpessoais
  • Formação de Líderes
  • Capacitação continuada
  • Reconhecimento institucional
  • Autonomia
  • Job Rotation
  • Integração setorial
  • Prevenção de conflitos e rivalidade interna;

Referências

DULA, Paulo César


Paulo Cesar Dula

Advogado - Brasília, DF


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