Quando a afeição dá lugar a traição


31/03/2019 às 15h25
Por Albenici Melo

Afeição é um dos elementos presentes no momento da constituição de uma sociedade quer seja ela de pessoas ou de capital. Conhecida como affectio societatis, refere-se a intenção que pessoas físicas e/ou jurídicas possuem de unirem esforços através de ações colaborativas para a exploração de atividades que resultem em benefícios positivos que possam ser partilhados entre as mesmas.

No caso das sociedades limitadas, maior tipo societário constituído no Brasil, ainda que seja possível sua composição por pessoas jurídicas, os elementos de afeição e confiança estarão sempre presentes, afinal os responsáveis no comando de uma organização ou mesmo uma pessoa física não se vincularão a outras pessoas físicas ou jurídicas com as quais não se têm confiança ou afeição para a união de esforços, alcance de propósitos comuns e logicamente para obtenção de resultados positivos.

Muitas sociedades são formadas por ex-colegas de cursos, ex-colegas de trabalho, por familiares, dentre outras possibilidades, mas o fato é que o conjunto de pessoas por trás do indivíduo sócio o qual se tem a afeição e confiança, na maioria dos casos não é observado e isto é extremamente relevante quando se discute dissolução societária ou falecimento de sócio.

Desta maneira, na fase inicial do estabelecimento de uma sociedade, normalmente os proponentes a sócios estão ansiosos e cheios de expectativas em relação ao futuro empreendimento e com isso acabam por desenvolver naturalmente um clima de confiança e positividade.

A atmosfera colaborativa e interessada deste primeiro momento acaba por gerar efeitos na formalização dos procedimentos necessários não só para a legalização da sociedade, mas também para a sua própria gestão. É o caso, por exemplo, da ausência de previsibilidade contratual mais precisa acerca da gestão administrativa e financeira da organização e dos aspectos relacionados a dissolução societária.

Na prática como é sabido que o ser humano não pode ser “bom” em tudo, no momento da abertura de uma sociedade, os futuros sócios acabam terceirizando atividades relevantes ou dando um tratamento negligente para as mesmas. Sob esta óptica, a responsabilidade por determinada área será do sócio X, ou do parceiro Y, ou ainda de um administrador contratado, procedendo na sequência com uma fraca fiscalização e acompanhamento, seja pela falta de interesse ou até mesmo pela dificuldade na compreensão do funcionamento da área cuja responsabilidade foi delegada.

É muito comum nas sociedades a segregação das áreas, onde os dirigentes no topo da gestão simplesmente não se inteiram acerca do que é desenvolvido em outras áreas, ficando totalmente alheios ao universo além do que julgam serem de sua responsabilidade. No âmbito das startups esta realidade é ainda mais evidente pois a ideia embrionária desenvolvida, normalmente de natureza técnica, requer cuidadosa análise quanto a sua formalização especialmente pelos riscos que lhe são próprios.

Todo este universo contribui para que sócios e/ou administradores executem ações incompatíveis com os propósitos institucionais estabelecidos, pois o elemento confiança atua como pano de fundo e intimida possíveis medidas de controle advindas de seus pares na tentativa de acompanhar suas ações. Em outras palavras, é comum encontrarmos situações em que sócios deixam de implementar medidas de controle das atividades desenvolvidas por seus pares com o intuito de evitar possíveis atritos nas relações com os mesmos.

A confiança e afeição são elementos fundamentais para o sucesso de um empreendimento, mas não devem jamais substituir medidas de formalização das relações estabelecidas, tampouco as ações  de fiscalização e controle da gestão de uma organização, quando isso ocorre, o que se verifica são as inúmeras ações judiciais envolvendo ex-sócios, que em certo momento da relação simplesmente ignoraram quaisquer eventos que pudessem vir a ocorrer e comprometer a relação então estabelecida. Desta maneira, o que se percebe não é que a afeição deu lugar a traição, mas sim que medidas de precaução contra eventuais danos e perdas, nunca existiram!

  • compliance
  • conformidade

Referências

Mestre em Controladoria Empresarial, perita contábil judicial e extrajudicial, mediadora judicial e extrajudicial, advogada e contadora atuante em conflitos empresariais, também na área de compliance como instrumento de prevenção de litígios.


Albenici Melo

Advogado - São Paulo, SP


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