Princípio da vedação do retrocesso: “efeito cliquet”


06/05/2014 às 16h29
Por Carla Rosane Pesegoginski Garcia

Princípio da vedação do retrocesso: “efeito cliquet

Carla Rosane Pesegoginski Garcia

RESUMO

O trabalho aborda a origem do princípio da vedação do retrocesso com um breve conceito e sua eficácia no mundo jurídico em relação aos direitos que são atingidos. Como o assunto é tratado pela doutrina e jurisprudência, inclusive a sua evolução histórica através de decisões que embasam o posicionamento e a forma como o princípio é adotado, inclusive nos demais ramos do direto e sua importância para a segurança jurídica.

Palavras-chave:

Princípio da vedação do retrocesso. Efeito cliquet. Direitos Fundamentais.

ABSTRACT

The article deals the origin with a brief concept and its effectiveness in the legal world to entitlement that are achieved. As the matter is addressed in doctrine and jurisprudence, including its historical development through decisions that support the positioning and how the principle is followed, including the other areas of the entitlement and its importance for legal certainty.

Key words:

Principle of the fence setback. Effect Cliquet. Fundamental entitlements.

INTRODUÇÃO

Este trabalho se propõe, em breve análise, conceituar o tema, demonstrando sua origem e eficácia no mundo jurídico.

Além disso, enfatiza a importância do princípio da vedação do retrocesso em relação às normas constitucionais de direitos fundamentais, tanto na esfera dos direitos sociais como nos de liberdade.

Veremos que existe uma vinculação entre o direito de segurança social e o direito de segurança jurídica. Aqueles voltados a garantir uma vida com dignidade, sejam eles positivos ou negativos.

As posições doutrinárias em favor da proibição do retrocesso, face flagrante violação do princípio da confiança deduzido do princípio do Estado de Direito, implicando a inconstitucionalidade de medidas que venham a ameaçar aquelas já existentes.

No tocante as jurisprudências como se desenvolveu o pensamento no nosso país pela Suprema Corte, bem como nos demais órgãos judiciais.

Por fim, há um enfoque em relação aos demais ramos do direito, sendo que em alguns a análise é realizada pelo conflito de leis.

1 ORIGEM

A origem da nomenclatura é francesa, onde a jurisprudência do Conselho Constitucional reconhece que o princípio da vedação do retrocesso (chamando “efeito cliquet”) se aplica inclusive em relação aos direitos de liberdade, no sentido de que não é possível a revogação total de uma lei que protege as liberdades fundamentais sem a substituir por outra que ofereça garantias com eficácia equivalente.

O Conselho Constitucional, em 1984, aplicou o princípio de vedação do retrocesso quando julgou inconstitucional a revogação de uma lei sobre os domínios das liberdades fundamentais, por outro que não oferecia uma garantia da eficácia no mínimo equivalente a já existente.

Em 1991 adotou a mesma orientação no tocante aos direitos econômicos e sociais.

1.1 CONCEITO

Segundo Canotilho[1] "efeito cliquet” dos direitos humanos significa que os direitos não podem retroagir, só podendo avançar na proteção dos indivíduos. Significa que é inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios".

Além disso, entende que do princípio da democracia econômica e social aponta a proibição de retrocesso social, também designada como proibição de “contra-revolução social” ou da “evolução reacionária”. Dentro desses direitos sociais e econômicos, como por exemplo: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação, uma vez atingido o seu grau de efetividade passam a constituir uma garantia constitucional e um direito subjetivo, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criação de outras alternativas ou compensatórias, se traduzam em `anulação´, `revogação´ ou `aniquilação´ pura e simples do núcleo essencial desses direitos.

1.2 EFICÁCIA

Sérgio Luiz Junkes[2] atribui a eficácia do princípio da vedação do retrocesso “a todo princípio jurídico, resultando em três modalidades: interpretativa, negativa e vedativa do retrocesso.

A saber, a interpretativa está ligada ás características dos Princípios jurídicos e a superioridade hierárquica do texto constitucional que é a base do Princípio da Justiça Social.

A negativa é a que proíbe qualquer ato ou a edição de normas que se oponham ao seu conteúdo.

E com relação à vedativa do retrocesso pressupõe que a concretização dos Princípios jurídicos consagradores de direitos fundamentais também é produzida através das normas infraconstitucionais, as quais cabem, progressivamente, a tarefa de ampliá-los na medida do possível.”

2 POSIÇÃO DOUTRINÁRIA

No Brasil a expressão está intimamente ligada ao princípio de vedação ao retrocesso, inserido implicitamente na Constituição de 1988 [3], por conseqüência do Princípio da Justiça Social, tendo em vista que este engloba uma gama de diversos princípios.

O Princípio da Justiça Social exige dos órgãos estatais uma conduta que seja pautada na Justiça Social[4], ou seja, todas as leis, decretos e atos administrativos devem vincular-se a este princípio.

Com isto, editadas as normas infraconstitucionais, seus direitos serão incorporados ao patrimônio das pessoas.

Assim, a eficácia vedativa do retrocesso impede que o legislador revogue essas normas infraconstitucionais concretizadoras de tais Princípios sem a edição de legislação alternativa equivalente.{C}[5]{C} Caso ocorra alguma violação resultará em flagrante inconstitucionalidade.

Cumpre destacar ainda, que por se tratar de um princípio implícito na Constituição, na doutrina existem posições diversas a respeito da proibição do retrocesso ou do regresso (efeito cliquet), tendo em vista que as vantagens sociais conquistadas não podem ser perdidas, as garantias não podem regredir.

É nesse ponto que vem a indagação se os direitos sociais são, ou não, cláusulas pétreas. O art. 60, §4º, da CR, fala apenas em direitos e garantias individuais.

Formaram-se, então, três correntes: a) os direitos sociais não são cláusulas pétreas e, portanto, podem ser abolidos; b) os direitos sociais são, todos, cláusulas pétreas; c) os direitos sociais de titulari­dade INDIVIDUAL (ex: art. 7º, art. 205) seriam cláusulas pétreas, mas os direitos sociais COLETIVOS (art. 8º, por exemplo) poderiam ser abolidos.

Não existe um consenso, mas há uma forte tendência em predominar a terceira corrente.

Apropriado, no entanto, o posicionamento adotado por Ingo Wolfgang Sarlet[6] de que “a eficácia do direito à segurança jurídica na condição de direito à proteção contra o retrocesso em matéria de direitos fundamentais, priorizando aquilo que a doutrina tem designado de princípio da vedação do retrocesso social, já que é na esfera dos direitos sociais (pela intensa e muitas vezes indispensável atuação do legislador infraconstitucional no que concerne à sua regulamentação e implementação) onde se concentra o maior número de problemas”.

3 POSIÇÃO JURISPRUDENCIAL

3.1 NO SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal, em 2000, se pronunciou pela primeira vez a respeito do tema através do voto do Ministro Sepúlveda Pertence no acórdão prolatado na ADIn 2065-0/DF, o qual questionou a Medida Provisória n. 1.911-8 “ao revogar dispositivos que dispõem de uma maneira geral sobre o caráter democrático da gestão da Seguridade Social, acaba regulamentando dispositivo constitucional alterado pela Emenda Constitucional n. 20” (7)(acórdão ADI), ofendendo os artigos 56 da ADCT e 194, VII, da Constituição Federal.

O Ministro ao admitir a inconstitucionalidade de lei que revogava lei anterior necessária a eficácia plena de norma constitucional, reconhece a vedação genérica ao retrocesso social. Vejamos trecho do referido acórdão:

[...] O mesmo cabe dizer em tese, mutatis mutandis, da viabilidade da argüição posta nesta ação, direta, malgrado aqui que a lei cuja “revogação pura e simples” se tacha de inconstitucional, por violar o referido art. 194, VII, CF, seja posterior à Lei Fundamental vigente.

Pouco importa. Certo, quando, já vigente à Constituição, se editou lei integrativa necessária à plenitude da eficácia, pode subsequentemente o legislador, no âmbito de sua liberdade de conformação, ditar outra disciplina legal igualmente integrativa do preceito constitucional programático ou de eficácia limitada; mas não pode retroceder – sem violar a Constituição – ao momento anterior de paralisia de sua efetividade pela ausência da complementação legislativa ordinária reclamada para implementação efetiva de uma norma constitucional. [...]

Outras decisões foram proferidas como na ADIn nº 3.105-8-DF, de 2005, que trata da inconstitucionalidade do artigo 4º da Emenda Constitucional nº 41/03 com alegação de que os “servidores públicos aposentados e os que preenchiam as exigências de aposentação antes da vigência da nova norma constitucional estavam submetidos, quando das aposentadorias ou do momento em que poderiam se aposentar, a regime previdenciário que não tinha caráter contributivo ou solidário (antes da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998), ou apenas tinha caráter contributivo (depois da Emenda Constitucional nº 20, de 1998)”, estes exerceram ou incorporaram ao seu patrimônio jurídico o direito de não mais pagarem contribuição previdenciária.”

No voto do Ministro Carlos Britto, o mesmo se manifesta em relação às cláusulas pétreas, da seguinte forma:

[...] Quanto à questão das cláusulas pétreas – a preocupação do Ministro Joaquim Barbosa-, eu lembraria que elas, na Constituição de 1988, não cumprem uma função conservadora, mas, sim, impeditivas de retrocesso, ou seja, garantem o progresso. [...]

Já na ADIn 3.128-7-DF, no mesmo ano, a manifestação foi no mesmo sentido quando o Ministro Carlos Britto se pronunciou sobre as cláusulas pétreas.

Em 2006, no MS nº 24.875-1-DF, o Ministro Celso de Mello abordou o tema da seguinte forma:

Registro, de outro lado, que tenho igualmente presente, no exame desta controvérsia constitucional, o postulado da proibição do retrocesso social, cuja eficácia impedeconsiderada a sua própria razão de ser – sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão, que não pode ser despojado, por isso mesmo em matéria de direitos sociais, no plano das liberdades reais, dos níveis positivos de concretização por ele já atingidos, consoante assinala (e adverte) autorizado magistério doutrinário (GILMAR PEREIRA MENDES, INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO E PAULO GUSTAVO GONET BRANCO, “Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais”, p. 127/128, 1a ed./2a tir., 2002, Brasília Jurídica; J.J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional e Teoria da Constituiçao”, p. 320/322, item n. 03, 1998, Almedina, Coimbra; ANDREAS JOACHIM KRELL, “Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha”, p. 40, 2002, Fabris Edito; INGO WOLFGANG SARLET, “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”, p. 368/376, item n. 4.6.4.3, 2a ed., 2001, Livraria do Advogado Editora, v.g.).

Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz , no processo de sua concretizaçao, verdadeira dimensao negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequencia, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses – de todo inocorrente na espécie – em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais.

Lapidar, sob todos os aspectos, o magistério de J.J. GOMES CANOTILHO, cuja lição, a propósito do tema, estimula as seguintes reflexões (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 320/321, item n. 3, 1998, Almedina:

´O princípio da democracia econômica e social aponta para a proibição de retrocesso social.

A idéia aqui expressa também tem sido consignada como proibição de `contra-revolução social´ ou da evolução reaccionária´. Com isso, quer dizer-se que os direitos sociais e económicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo. A `proibição de retrocesso social´ nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da protecção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural, e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana. O reconhecimento desta proteção de direitos prestacionais de propriedade, subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjectivamente alicerçadas. A violação no núcleo essencial efectivado justificará a sanção de insconstitucionalidade relativamente aniquiladoras da chamada justiça social. Assim, por ex., será insconstitucional uma lei que extinga o direito a subsídio de desemprego ou pretenda alargar desproporcionalmente o tempo de serviço necessário para a aquisição do direito à reforma (...). De qualquer modo, mesmo que se afirme sem reservas a liberdade de conformação do legislador nas leis sociais, as eventuais modificações destas leis devem observar os princípios do Estado de direito vinculativos da actividade legislativa e o núcleo essencial dos direitos. O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos já realizado e efectivado através de medidas legislativas (`lei da segurança social´, `lei do subsídio de desemprego´, `lei do serviço de saúde´) deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa `anulação´, `revogação´ ou `aniquilação´ pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.´ (grifei)

Bem por isso, o Tribunal Constitucional português (Acórdão nº 39/84), ao invocar a cláusula da proibição de retrocesso, reconheceu a inconstitucionalidade de ato estatal que revogara garantias já conquistadas em tema de saúde pública, vindo a proferir decisão assim resumida pelo ilustre Relator da causa, Conselheiro VITAL MOREIRA, em douto voto de que extraio o seguinte fragmento (“Acórdãos do Tribunal Constitucinal”, vol. 3/95-131, 117-118, 1984, Imprensa Nacional, Lisboa):

(citacao do texto transcrito) ´Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá ser objeto de censura constitucional me sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, então a censura constitucional já se coloca no plano da própria inconstitucionalidade por acção.

Se a Constituição impõe ao Estado a realização de uma determinada tarefa – a criação de uma certa instituição, uma determinada alteração na ordem jurídica -, então, quando ela seja levada a cabo, o resultado passa a ter a proteção directa da Constituição. O Estado não pode tornar a colocar-se na situação de devedor. (...) Se o fizesse, incorreria em violação positiva (...) da Constituição.

......................................................................................................

Em grande medida, os direitos sociais traduzem-se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema escolar, sistema de segurança social, etc.). Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas após terem sido criadas, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a cria-los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados.

Quer isto dizer que a partir do momento em que o Estado cumpre (ttal ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar (ou passar também a ser) numa obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social.

Este enfoque dos direitos sociais faz hoje parte integrante da concepção deles a teoria constitucional, mesmo lá onde é escasso o elenco constitucional de direitos sociais e onde, portanto, eles têm de ser extraídos de cláusulas gerais, como a cláusula do `Estado social´.

[...] [grifo do autor]

No ano de 2007, através da ADIn 3104/DF, que questionava o artigo 2º e a expressão “8º” do artigo 10, ambos da Emenda Constitucional nº 40/2003, o voto proferido pelo Ministro Carlos Britto dá ênfase a vedação ao retrocesso, se pronunciando assim: “[...] Logo, comunicando à razoabilidade e à proporcionalidade o caráter pétreo do inciso IV do § 4º do art. 60 da CF. É dizer, essa petrealidade se estende à dimensão substantiva do devido processo legal. De sorte que não se parece nem razoável nem proporcional admitir que servidores públicos ingressem, por concurso público no serviço público, debaixo de certas regras assecuratórias de uma dada aposentadoria ou pensão, e tudo isso fique inteiramente à disposição da entidade mantenedora do sistema de previdência. Ainda que, faltando quatro, cinco ou um mês para aposentadoria, o servidor pode ser colhido por uma nova regra, agravando extremamente a sua situação e aumentando o tempo de contribuição, com certo caráter arbitrário, além do tempo de idade para a respectiva aposentação. [...] Não me parece lógico, até porque um dos sentidos das cláusulas pétreas é impedir o retrocesso. É garantir o avanço. Esse o significado último de uma cláusula pétrea. A nova Constituição traz uma conquista política social, econômica e fraternal, de que natureza for, e a petrealidade passa a operar como uma garantia do avanço, então obtido. Uma interdição ao retrocesso. [...]”.

No âmbito do Direito do Consumidor o RE 351750, do Rio de Janeiro, acórdão proferido pelo Ministro Carlos Britto em 17/03/2009, Primeira Turma, nos diz:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DANOS MORAIS DECORRENTES DE ATRASO OCORRIDO EM VOO INTERNACIONAL. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. NÃO CONHECIMENTO. 1. O princípio da defesa do consumidor se aplica a todo o capítulo constitucional da atividade econômica. 2. Afastam-se as normas especiais do Código Brasileiro da Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia quando implicarem retrocesso social ou vilipêndio aos direitos assegurados pelo Código de Defesa do Consumidor. 3. Não cabe discutir, na instância extraordinária, sobre a correta aplicação do Código de Defesa do Consumidor ou sobre a incidência, no caso concreto, de específicas normas de consumo veiculadas em legislação especial sobre o transporte aéreo internacional. Ofensa indireta à Constituição de República. 4. Recurso não conhecido. [grifei]

O Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo no 639.337, em que se discutia o direito da criança de até cinco anos de idade receber atendimento em creche e pré-escola, o STF estabeleceu um conceito a respeito do tema:

“O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. […] Em conseqüência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados.

3.2 EM OUTROS ÓRGÃOS DO JUDICIÁRIO

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul apreciou o tema na Apelação Cível nº 70004480182, Quinta Câmara Cível, Relator Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha, julgado em 15/05/2003, vejamos a ementa:

CIVIL E CONSTITUCIONAL. ENSINO PARTICULAR. DESCONTO DA MENSALIDADE. SEGUNDO FILHO. APLICAÇÃO AO ENSINO UNIVERSITÁRIO. 1. O art. 24 do DL 3.200/41 foi concebido para beneficiar famílias de prole numerosa, garantindo o acesso de todos ao ensino. Repasse do custo às mensalidades (art. 205 da CF). Aplicação do texto ao ensino universitário (arts. 208, V, e 209, I, da CF). 2. O dispositivo em questão nada mais é do que uma conquista social da época e que não foi revogado ou derrogado pela legislação ou Constituições supervenientes, pois nenhuma destas normas mostra-se incompatível ou regula inteiramente a matéria que tratava a lei anterior (art. 2º da LICC). Manteve-se íntegro no tempo, obediente ao princípio da proibição de retrocesso social defendido por J. J. Canotilho. (A.C. n.º 598193845). Apelo improvido.)” [grifei]

A matéria também foi analisada pela 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais da Seção Judiciária do Mato Grosso do Sul, em 26/04/2004, através dos processos nºs 2003.60.84.002388-1 e 2003.60.84.002388-1, tendo como Relator o Juiz Federal Renato Toniasso, proferindo a mesma decisão sobre o tema proposto. Demonstramos abaixo uma das decisões:

[...] I - RELATÓRIO O Instituto Nacional do Seguro Social interpôs recurso inominado contra a decisão que julgou procedente o pedido de concessão de benefício assistencial a Dione Rodrigues Souza. Alega que renda per capita da família é superior a ¼ do salário mínimo. Em contra-razões, o recorrido requer que seja julgado improcedente o recurso. II - VOTO A controvérsia gira em torno da renda mensal per capita do grupo familiar do recorrido. O recorrente aduz que referida renda é superior a ¼ do salário mínimo, não se enquadrando, portanto, no § 3ºdo art. 20 da Lei n° 8.742/93, considerado constitucional pelo STF. Conforme levantamento social às fls. 35/39, a renda familiar seria de aproximadamente R$ 125,00. No entanto, às fls. 71/72, consta que o pai do recorrido percebe R$ 240,00 (rendimento bruto) mensalmente. Verifica-se que o núcleo familiar é composto pelo recorrido, seus pais e um irmão, que possui 11 anos. Assim, a renda mensal per capita é de R$ 60,00. Ainda que se considere que o limite fixado no art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 é objetivo, como decidiu o STF na ADIN 1232-DF, as leis que sobrevieram para disciplinar a distribuição de verbas na área social não devem ser desconsideradas. A Lei 9.533, de 10 de dezembro de 1997 criou o benefício social denominado renda mínima. De acordo com o art. 5º dessa Lei, um dos critérios para que a família receba o benefício é a comprovação da renda per capita inferior a meio salário mínimo. Posteriormente, a Lei nº 10.219, de 11 de abril de 2001, tratou do benefício denominado bolsa escola. Para o ano de 2001, a renda familiar per capita para inscrição no programa foi fixada em meio salário mínimo (Decreto nº 3.823/2001). No ano de 2002 o percentual ficou em 45% do salário mínimo (Decreto nº 4.213/2002). Já o Decreto nº 4.102, de 24 de janeiro de 2002, instituiu o programa auxílio-gás fixando a renda familiar per capita do beneficiário em meio salário mínimo. A Lei nº 10.689, de 13 de junho de 2003, criou o Programa Nacional de Acesso à Alimentação ¿ PNAA, fixando o teto em meio salário mínimo (art. 2º, § 2º). Recentemente a Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de 2003 unificou os programas de transferência de renda do Governo Federal, sob a denominação Bolsa Família. Foram fixados novos valores para aferição da pobreza. Assim, de acordo com o art. 2º, I, § 1º, considera-se em situação de extrema pobreza quem está inserido em família cuja renda per capita familiar é de até R$ 50,00, ou seja, 20,83% do salário mínimo. Nos termos do art. 2º, II, § 2º, considera-se em situação de pobreza quem está inserido em família cuja renda per capita familiar é de até R$ 100,00, ou seja, 41,66% do salário mínimo. Por conseguinte, é o legislador ordinário quem está dizendo que aquele limite de 25% do salário mínimo fixado no art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 encontra-se superado. De fato, se o legislador reconhece ser extremamente pobre quem aufere 20,83% do salário mínimo e pobre aquele que aufere 41,66% do salário mínimo, obviamente também está reconhecendo que tal pessoa nessas condições não conseguirá prover à manutenção de idoso ou de deficiente, como quer o art. 203, V, da CF. Apesar de a Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de 2003, depois transformada na Lei nº 10.836/04, ter fixado a renda per capita no valor de R$ 100,00 (cem reais), tenho que esse patamar não deve ser aplicado. É que a legislação que antecedeu à MP, elevara a renda per capita para efeito de obtenção de benefícios sociais, até o patamar de meio salário mínimo. Então, esse é o limite legal a ser considerado em situações da espécie, uma vez que, ao meu sentir, a legislação previdenciária não pode revogar conquistas já alcançadas pelos seus beneficiários. Trata-se do princípio supraconstitucional da vedação do retrocesso, indubitavelmente aplicável em matéria de largo alcance social, como no caso. Os avanços civilizatórios não podem transigir. No caso em comento, a renda per capita, é de R$ 60,00, motivo pelo qual o requerido faz jus ao benefício. Diante do exposto, conheço do recurso, mas nego-lhe provimento. Condeno o recorrente ao pagamento de honorários advocatícios, no importe de 10% sobre o valor da condenação, excluídas as parcelas posteriores à prolatação da sentença (Súmula 111 do STJ), bem como o pagamento de honorários periciais. [grifei]

O entendimento também teve enfoque pelo Tribunal de Justiça do Amazonas no Mandado de Segurança nº 2004.002084-8 que trata de servidor público estadual aposentado postulando não só o restabelecimento da vantagem pecuniária denominada "prêmio anual de produtividade", suprimida de seus proventos pelo Decreto estadual nº 24.022/04, mas também a percepção da integralidade de seus proventos, isto é, sem qualquer redução ou imposição de teto ou limite remuneratório, senão vejamos:

[...] 02.13. Assim, a nova regra remuneratória introduzida pela Emenda Constitucional em comento, na qual se escorou o ato impugnado pela via mandamental, não poderá, pois, alcançar os servidores que tiveram seus vencimentos e vantagens legalmente fixadas pelos diplomas legais então válidos e vigentes, pois há verdadeira vedação ao retrocesso social. Se eventualmente possíveis essas alterações, não podem ser aplicadas a quem já se aposentou pelas regras anteriormente vigentes à promulgação da emenda, ou àqueles que já tinham adquirido o direito à aposentadoria pelas regras em vigor antes das reformas, ainda que não tivessem efetivamente se aposentado. [...] (Relator Des. João de Jesus Abdala Simões, Câmaras Reunidas, julgado em 26/09/2007) [grifei]

3.3 EM OUTROS RAMOS DO DIREITO

O princípio da vedação do retrocesso social é aplicado no campo do Direito do Trabalho. Insta traduzir o Enunciado n. 33 da 1ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, aprovado em 23.11.2007, que coloca o princípio em comento como limite, inclusive, da atividade sindical, nos seguintes termos:

“NEGOCIAÇÃO COLETIVA. SUPRESSÃO DE DIREITOS. NECESSIDADE DE CONTRAPARTIDA. A negociação coletiva não pode ser utilizada somente como um instrumento para a supressão de direitos, devendo sempre indicar a contrapartida concedida em troca do direito transacionado, cabendo ao magistrado a análise da adequação da negociação coletiva realizada quando o trabalhador pleiteia em ação individual a nulidade de cláusula convencional.”

No direito de família, apesar de ser uma posição minoritária, Luiz Edson Fachin[7] ao tratar das leis especiais e gerais diante do novo Código Civil, adota o posicionamento de “que não há entrechoque entre a lei geral posterior e a lei especial anterior. Em matéria de direitos fundamentais, prevalece a lei especial anterior, com dois fundamentos: um legal e outro doutrinário.” O doutrinário “advém da teoria constitucional, pelo princípio da vedação do retrocesso, que é princípio fundamental de incidência nas relações interprivadas e numa sociedade que se quer democrática, na linha da construção de relações mais justas e fraternas.”

CONCLUSÃO

Diante das considerações, entende-se que o princípio da vedação do retrocesso tem como núcleo essencial os direitos fundamentais, os quais englobam os direitos previstos na Constituição da República de 1988, tais como os individuais e coletivos, sociais, de nacionalidade, políticos, econômicos e ambientais.

Com isto, uma vez adquiridos esses direitos impedem sua reversiblidade frente ao legislador infraconstitucional.

A doutrina alemã, ao contrário, entende que diante das recessões e crises econômicas o princípio de vedação ao retrocesso social não se aplicaria, o que não se pode concordar, justamente em face dessas situações é que o princípio deve ser aplicado em sua plenitude, a fim de não gerar uma instabilidade social e descumprimento por parte do Estado.

Caso tal situação fosse utilizada em nosso país, geraria instabilidade, os direitos que antes restaram incorporados ao patrimônio jurídico do cidadão sofreriam ofensa pelo legislador ordinário.

Como é sabido, vários direitos sociais são concretizados por normas infraconstitucionais, o que possibilita sua redução ou supressão diante de quorum parlamentar reduzido.

Não restam dúvidas que tais situações ofendem os princípios da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural[8].

Desta feita, importante que sejam utilizados meios que obstem estas ocorrências, utilizando-se, já que se trata de uma constituição principiológica, o princípio implícito do não retrocesso social.

REFERÊNCIAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002.

DERBLI, Felipe. O princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

JUNKES, Sérgio Luiz. Defensoria Pública e o Princípio da Justiça Social. Curitiba: Juruá, 2005.

QUEIROZ, Cristina. O princípio da não reversibilidade dos direitos fundamentais sociais: princípios dogmáticos e prática jurisprudencial. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.

SAMPAIO, José Adércio Leite. A constituição reinventada: pela jurisdição constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito adquirido e expectativa de direito. Belo Horizonte. Del Rey, 2005.

SARLETE, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista Latino-Americana de estudos constitucionais, Belo Horizonte, n. 6, p. 315-366, jul./dez. 2005.

Sites Consultados:

www1.anamatra.org.br - www.tj.ms.jus.br– www.tjpr.jus.br – www.tjrj.jus.br – www1.tjrs.jus.br – www.tjsc.jus.br – www.stf.jus.br – www.stj.gov.br – www.tst.gov.br

[1]{C} CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 336.

[2] JUNKES, Sérgio Luiz. Defensoria pública e o princípio da justiça social. Curitiba: Juruá, 2005, p. 74.

[3] JUNKES, Sérgio Luiz. Defensoria pública e o princípio da justiça social. Curitiba: Juruá, 2005, p. 74.

[4] Ibidem, p. 75.

[5] Ibidem, p. 76.

[6]{C} SARLETE, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição do retrocesso social no direito constitucional brasileiro. Revista Latino-Americana de estudos constitucionais, Belo Horizonte, n. 6, p. 315-366, jul./dez. 2005, p. 322.

[7]{C} FACHIN, Luiz Edson. Princípios constitucionais do Direito de Família brasileiro contemporâneo. A família além dos mitos, Belo Horizonte, Del Rey, 2008, p. 128.

[8] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p.337.

  • Direito Público

Carla Rosane Pesegoginski Garcia

Bacharel em Direito - Porto Alegre, RS


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