Em meados de 2010, fui até a sede do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná para obter uma segunda via do título, pois o meu havia rasgado. Na época ainda se utilizava a versão impressa.
Chegando lá, a moça do atendimento me recomendou aproveitar a ocasião para colher a biometria digital, pois seria implantada nas eleições de 2012 e assim poderia evitar filas. E foi o que fiz. Estive entre os primeiros cidadãos do Paraná a ter o cadastro biométrico lançado no assento eleitoral brasileiro.
Alguns meses se passaram e um anúncio de TV com o então Presidente do TSE, Ricardo Lewandowski, anunciava a implantação da biometria, e que os eleitores deveriam se dirigir aos TRE's o quanto antes para realizar o procedimento. Em discursos efusivos, o Ministro desafiava "o primeiro Município brasileiro a concluir a biometria de seus eleitores!".
Eis que chegaram as eleições municipais de 2012, e coincidentemente fui convocado para um emprego público na CELEPAR, entidade estadual similar ao SERPRO na esfera federal, responsável pelo processamento de dados e desenvolvimento de soluções em informática. O concurso havia se concluído há alguns meses e intencionava trabalhar com licitações por um tempo, agregando conhecimento à advocacia privada que já praticava em escritório próprio, desde a conclusão da faculdade.
Qual não foi a minha surpresa quando, convocado para a ambientação dos funcionários na empresa pública, constatei atônito o "título cancelado" na certidão emitida a ser anexada com o termo de posse.
Ainda me permitiriam esclarecer o imbróglio até a data limite para o exercício em 30 dias, quando a situação teria que ser submetida a parecer da assessoria jurídica da entidade. Só que, ao me dirigir ao TRE-PR, só pude ouvir a "impossibilidade de sindicância nos 120 dias do pleito" devido a uma previsão legal.
O resultado foi a perda da vaga no concurso, a impossibilidade de votar, e após o segundo turno, ouvir da corregedoria do TRE-PR que "eu" deveria ter "refeito" a biometria após um procedimento de revisão eleitoral instaurado.
A Lei n.º 7.444/85 prevê que a revisão eleitoral pode ser iniciada por suspeita de fraude. No caso, havia sido deliberada por indício de duplicação de CPFs de eleitores em Curitiba, obrigando ao recadastramento. Assim, as biometrias colhidas teriam sido todas canceladas.
Pesquisando mais a fundo, todavia, descobri que nem todas foram de fato anuladas como asseverado na resposta da corregedoria paranaense. A minha suspeita foi confirmada na confissão de uma servidora da zona eleitoral em juízo, arrolada como testemunha no processo que movi contra o governo federal: as biometrias canceladas foram as anteriores à resolução do TSE que regulamentou a coleta, entre 2010 e a publicação da decisão determinando a revisão eleitoral, já às vésperas do pleito.
Na ânsia de propagar a ida dos eleitores à justiça, simplesmente esqueceram de previamente publicar o regulamento em Brasília, e para piorar acabaram utilizando a revisão em todos os Municípios para cancelar (em verdade suspender) os títulos cuja biometria fôra colhida anteriormente à norma. Algo que impediu --- só na minha zona eleitoral --, 30.000 eleitores de votar, e cerca de 200.000 do total do eleitorado curitibano, alcançando 25% ou 1/4 dele. Quantia nada desprezível, e que tranquilamente deveria ter lançado dúvida sobre a legitimidade do pleito em todos os mais de 5.000 Municípios brasileiros naquele ano de 2012, independentemente de afinidade ideológica ou partidária.
Nos anos subsequentes verifiquei que a justiça eleitoral veio se valendo deste método "a rodo", tratando o eleitor como "boiada" sem qualquer escrúpulo de "cancelar" direitos políticos sem avisar pessoalmente o cidadão da necessidade de refazer seu cadastro.
Muitas pessoas com viagem marcada para fora do país também não puderam voar em 2012, devido ao óbice de emitir passaporte com o título cancelado. Decerto como "o mais azarado eleitor brasileiro", perdi não só o direito de escolher o candidato a Prefeito e Vereador de minha cidade natal, mas uma oportunidade no serviço público.
Na reclamatória trabalhista proposta na justiça do trabalho (39095-2012-007-09-00-9/0001737-26.2012.5.09.0007), requeri uma ordem judicial para a contratação, salários desde a data de exercício, e que a União Federal publicasse um pedido de desculpas formal a todo o eleitor brasileiro prejudicado pela medida, no diário oficial e jornais de grande circulação (ainda se lia jornal impresso). Ponderei que, quem sabe servisse de documento restaurador de direitos difusos não prescritos.
Pouco tempo depois soube que alguns TRE's, percebendo o arbítrio do TSE, até procuraram amenizá-lo, baixando resoluções próprias declarando o direito de "tomar posse em concurso" e "emitir passaporte", inobstante o cancelamento do título para aquela eleição, o que convenhamos, embora tenha servido de confissão de culpa de quem ainda possui senso de justiça, não foi suficiente para resguardar direitos subjetivos, pois isto demandaría consulta prévia nos sites para impressão e apresentação de certidão perante os mesários, comissões de concurso, e aeroportos.
No TRT do Paraná, ou descobriram muito tarde a questão, ou não se importaram em rasgar a Constituição que, no mundo civilizado, certamente me restituiria o cargo, os salários, danos morais e a formal retratação pública.
Surpreendentemente, a juíza federal do trabalho que julgou o processo em primeiro grau acatou a tese esdrúxula da AGU de que eu deveria ter descoberto (mediunicamente?) a publicação do edital no átrio do fórum da justiça eleitoral.
Não me recordo de nenhuma propaganda senão a dirigida ao eleitor que ainda não tinha feito a biometria. Certo é, que a justiça eleitoral já era uma das poucas com logística hábil para intimar pessoalmente todos os eleitores com biometria e título cancelado (200.000 em Curitiba, repito). Este justamente o outro pedido na aludida ação --- de que a revisão eleitoral preveja a intimação pessoal do eleitor, a fim de que tome conhecimento da necessidade de regularização do título, pois o ônus da publicidade deve ser "do Estado" e não do cidadão, por óbvio. A Constituição brasileira não adotou a tese russa de "outorga" de direitos, mas a de que todo poder emana do Povo (art.1º, §1º).
Pelo menos encontrei outros dois eleitores na mesma situação humilhante. O Estado a que outorgamos competência político-constitucional havia nos exonerado sumariamente do exercício do direito ao voto e, no meu caso, da contratação pública.
O TRT9ª manteve a "cômoda" interpretação de que o eleitor deveria ter "bola de cristal" para descobrir que seu título estava cancelado. O TST pôs "pá de cal" na especializada do trabalho, sustentando que os R$1.000,00 de valor estimativo da causa deveriam impedir o conhecimento de meu recurso de revista, enquadrando-o de ofício no rito sumaríssimo, inobstante a estimativa do arbitramento para danos morais.
Atribulado por centenas de prazos judiciais e questões pessoais para resolver, e finalmente desestimulado pela notícia de que o Ministro Luis Roberto Barroso já detinha um processo similar em seu gabinete "sem data para julgamento", desisti de perseguir a causa. O transcorrer dos acontecimentos já tinham sido suficientemente prejudiciais à minha saúde. Ponderei que, se o Ministro se convencesse de encarnar um estadista e não escravo da política e do corporativismo, tomaria as providências institucionais cabíveis.
Infelizmente, não foi o que ocorreu, conforme se nota da seguinte ementa (negritei):
Direito Constitucional Eleitoral. Cancelamento de título decorrente da sua não apresentação ao procedimento de revisão eleitoral. Violação ao princípio democrático e ao direito de voto. Inocorrência. 1. O exercício do direito de voto é componente essencial da democracia representativa. O alistamento eleitoral e sua revisão periódica são indispensáveis para que esse direito seja exercido de maneira ordenada e segura. 2. A revisão eleitoral é estabelecida em lei e se destina a atualizar o alistamento eleitoral previsto na Constituição. Também o cancelamento de título não apresentado à revisão tem base legal. Inexiste qualquer elemento que sugira ter havido direcionamento, quer na revisão eleitoral, quer no cancelamento de títulos. 3. Tendo lastro constitucional e legal, e não tendo havido vício na sua concretização, inexiste violação à democracia, à soberania popular, à cidadania ou ao direito de voto em decorrência do cancelamento do título de eleitor que não comparece ao procedimento de revisão eleitoral. 4. Tampouco é legítimo falar em violação à igualdade. Tal como o alistamento eleitoral, a revisão eleitoral é exigida de todos sem discriminação. 5. Não há violação à proporcionalidade. A medida é adequada e necessária, não havendo meio substitutivo com eficácia equivalente. Tampouco há base para afirmar que o benefício de se evitarem fraudes e outros comprometimentos à regularidade do voto é menos importante do que a participação dos que não atenderam ao chamado da Justiça Eleitoral. 6. Não há perigo na demora, tal como alegado pelo requerente. A Lei 7.444/1985 está em vigor há mais de 30 anos. A biometria está sendo implementada há quase 11 anos. O procedimento de revisão e de cadastramento biométrico obrigatório é acompanhado pelo Ministério Público e pelos partidos políticos. O ajuizamento tardio da ação, às vésperas da eleição e após tantos anos, compromete a alegação de urgência. 7. Há, contudo, gravíssimo periculum in mora inverso que obsta o deferimento da cautelar. O restabelecimento dos títulos cancelados para o primeiro ou o segundo turno do pleito de 2018 comprometeria o calendário eleitoral, segundo informações da presidência do TSE, colocaria em risco a higidez das eleições e poderia interferir sobre o seu resultado final. 8. Indeferimento da cautelar por ausência de plausibilidade do direito alegado, por falta de perigo na demora e pelo gravíssimo periculum inverso que a medida ensejaria. Encaminhamento pela conversão do julgamento da cautelar em julgamento do mérito, dada a suficiente instrução do feito e a importância de encerrar o debate antes do conhecimento do resultado das eleições. 9. Improcedência da ação. Tese de julgamento: “É válido o cancelamento do título do eleitor que, convocado por edital, não comparecer ao processo de revisão eleitoral, em virtude do que dispõe o art. 14, caput e §1º, da Constituição de 1988”.
(ADPF 541, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 26/09/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 15-05-2019 PUBLIC 16-05-2019
Ou seja, no entender do Ministro, impedir que 1/4 ou 25% do eleitorado possa votar se justifica em razão da suspeita de algumas centenas de CPFs duplicados e óbitos não comunicados.
O TSE não divulga o número de alistados inaptos a votar, mas apenas o dos eleitores aptos, em 2024 totalizando 155.912.680 (https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/r/seai/sig-eleicao-eleitorado/home?session=303541188161617).
Para quantificar de forma precisa o equivalente a 25% do eleitorado com título cancelado a cada eleição nacional, seria preciso dispor de dados oficiais. Ao invés de estimar sem base sólida para dedução (crianças e idosos geralmente representam 40% do total de uma população mas só aqueles não votam), é preferível fixar o mínimo de 20% sobre o próprio quantitativo de eleitores aptos, ou seja cerca de 40 milhões, obviamente muito superior ao número de óbitos e cfps duplicados no período de um ano, e ainda que se considere o hábito difundido de regularizar o título no ano de eleição.
Ou seja, a cada pleito eleitoral cerca de quarenta milhões de brasileiros estão sendo impedidos de votar porque a justiça eleitoral cancelou seu título por revisão sem aviso.
Trata-se de procedimento arcaico e incoerente, que lança indevida suspeita sobre o eleitor, já que os mesários da eleição identificam todo cidadão antes do voto, e outros documentos com foto devem servir ao intento.
É óbvio que, diante da baixa cultura de cidadania no país, a maioria (senão a unanimidade) do eleitorado que, habitualmente, não tem podido votar devido à revisão publicada por edital, não reclama nas instâncias competentes. Sabe que precisa regularizar seu título meses antes do pleito.
Só que, o caso que subjaz à retórica do Ministro detinha a particularidade da realização da biometria. O eleitor que a fez entre 2010 e a revisão eleitoral supunha que estava quite com a justiça eleitoral. Isto foi absolutamente ignorado no decisum. Ninguém volta duas vezes à justiça eleitoral antes de uma eleição. Ninguém sabe quando uma revisão eleitoral é instaurada.
É muito provável que, nas eleições subsequentes de 2016, 2020 e 2024, os eleitores que realizaram novas biometrias antes da revisão, imaginando-se regularizados, tenham se surpreendido com o título cancelado sem tempo hábil para regularizá-lo para votar.
A revisão eleitoral segue cancelando títulos com intimação por edital.(L https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1980-1988/L7444.htm)
Uma solução possível de evitar o problema seria a de obrigar a revisão eleitoral concomitante ou anterior ao procedimento da biometria.
Penso que a experiência pessoal relatada deva servir para compor um conjunto de reformas políticas de que o Brasil necessita, na busca de aperfeiçoamento de seu sistema representativo.
Tenho consciência todavia de que isto não deva ocorrer tão cedo. Temos um modelo político que imbute uma cultura equivocada "defensiva" e "preguiçosa" no servidor (sou um, sei do que estou falando) e na população em geral.
Ela parece inclusive ter se ampliado nos últimos anos de modo autoritário, como na negativa de recibo de voto na urna eletrônica, algo que não representaria custo orçamentário federal significativo e tranquilamente sepultaria a desconfiança popular no aparelho, permitindo a recontagem de votos por entidades independentes, para além dos delegados partidários e especialistas em informática.
Outra premente previsão seria a de candidatura avulsa, a fim de amenizar vez por outra os "consórcios de governabilidade" tendentes a dinamitar a Constituição.
O fim do financiamento público partidário restauraria o direito do eleitor de apenas apoiar o conjunto de ideias a que se afiniza. Com internet, algum talento para comunicação e custo relativamente baixo, não faz mais sentido algum despejar quase 5 bilhões de reais ao ano nos partidos políticos. (https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2024/Junho/saiba-quanto-cada-partido-vai-receber-do-total-do-fundo-especial-de-campanha).
Também não subsiste argumento consistente para proibir o financiamento empresarial de campanhas. É natural que as instituições reflitam um perfil ideológico da gestão ou grupo acionista majoritário. Os eventuais abusos sobre a liberdade individual de voto de empregados já contam com instrumentos aptos a coibi-los.
A organização de interesses deve ser livre e o poder econômico reflexo deste apoio. É assim que as sociedades maduras tratam a democracia.
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*Estudantes, juristas, jornalistas ou parlamentares que desejem investigar o assunto do cancelamento de títulos eleitorais mais a fundo podem entrar em contato.