Ações Civis e Criminais na Vara de Violência Doméstica
O artigo examina a complexidade jurídica em torno do pedido de divórcio da apresentadora Ana Hickmann com base na Lei Maria da Penha. Destaca-se a competência da Vara Especializada em Violência Doméstica, que, segundo o art. 14 da lei, abrange tanto questões criminais quanto civis. A recusa do pedido pela 1ª Vara Criminal e de Violência Doméstica em São Paulo é questionada, contrapondo-a ao entendimento do Superior Tribunal de Justiça.
Introdução
A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, representa um marco importante no combate à violência contra as mulheres no Brasil. Em 2019, alterações na legislação permitiram que mulheres vítimas de violência doméstica acelerassem processos de divórcio, separação ou dissolução de união estável pela Vara de Violência Doméstica.
O caso recente envolvendo a apresentadora Ana Hickmann e seu pedido de divórcio com base nessa lei destaca a complexidade jurídica que muitas vezes permeia essas situações, ou seja, apesar da previsão legislativa, muito ainda precisa ser feito para sua efetiva implementação.
Vale destacar que a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, foi inicialmente criada para proteger mulheres em situação de violência, abrangendo diversos tipos de abuso, como físico, sexual, psicológico, patrimonial e moral. Em 2019, alterações permitiram que o divórcio fosse solicitado pela Vara de Violência Doméstica, proporcionando uma via mais rápida para mulheres em situações de risco.
Nesse contexto, como amplamente divulgado, Ana Hickmann, uma figura pública, registrou um boletim de ocorrência por violência doméstica contra seu marido, Alexandre Correa, e solicitou o divórcio com base na Lei Maria da Penha duas semanas depois. No entanto, a 1ª Vara Criminal e de Violência Doméstica e Familiar de São Paulo negou o pedido, alegando complexidade adicional relacionada a questões como patrimônio e guarda dos filhos.
Desse modo, pelas razões a seguir expostas, nota-se que a decisão do magistrado não está de acordo com o entendimento jurídico vigente, pois a Vara Especializada em Violência Doméstica possui competência para julgar ação de divórcio, o que se mantem, até mesmo após a extinção do processo criminal.
A Vara Especializada em Violência Doméstica pode julgar também ação de divórcio?
Sim, de acordo com o art. 14 da Lei nº 11.340/2006, que estabelece a competência híbrida (criminal e civil) dessas varas para o julgamento e execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Nesse contexto, a juíza da Vara de Violência Doméstica assume a responsabilidade de julgar tanto o crime de ameaça quanto o pedido de divórcio, conforme preconiza a referida legislação. Inclusive, mesmo quando há um acordo que encerra o processo criminal ou a vítima retratou-se da representação oferecida, a competência da Vara Especializada não é afastada.
A extinção de medida protetiva de urgência, resultante da homologação de acordo entre as partes, não altera a competência da Vara Especializada de Violência Doméstica ou Familiar contra a Mulher para julgar ação de divórcio. Esse entendimento foi ratificado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no caso REsp 1.496.030-MT, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 6/10/2015 (Info 572).
Desse modo, a legislação confere à Vara Especializada competências tanto cíveis quanto criminais, permitindo que o mesmo magistrado tenha uma visão abrangente da situação de violência doméstica e familiar. Embora o legislador não tenha especificado quais ações civis deveriam tramitar nessas varas, o STJ esclareceu que a competência cível abrange as ações relacionadas ao Direito de Família quando a causa de pedir tiver relação com a prática de violência contra a mulher.
Portanto, no caso específico, a ação de divórcio, diretamente vinculada à situação de violência vivenciada pela mulher, deve continuar tramitando na Vara de Violência Doméstica, mesmo após a extinção do processo criminal. Esse entendimento visa garantir que o magistrado possa lidar de maneira abrangente com as implicações jurídicas nas ações civis e criminais decorrentes do mesmo contexto de violência.
O legislador conferiu competências cíveis e criminais à Vara Especializada em Violência Doméstica com o objetivo de permitir que o mesmo magistrado pudesse ter conhecimento amplo da situação de violência doméstica e familiar praticada contra a mulher, fazendo com que pudesse sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais que foram originadas direta ou indiretamente desse mesmo fato.
O problema foi que a lei, ao estabelecer, no art. 14, a competência cível da Vara Especializada de Violência Doméstica contra a Mulher, não especificou quais seriam as ações que deveriam ali tramitar.
Diante disso, o STJ afirmou que a Vara Especializada da Violência Doméstica será competente para as ações de natureza civil (notadamente, as relacionadas ao Direito de Família) quando a causa de pedir dessas demandas tiver relação (decorrer) com a prática de violência doméstica ou familiar contra a mulher.
Ocorre que, a Lei Maria da Penha, apesar de suas atualizações, enfrenta desafios na interpretação e aplicação, exigindo uma sensibilidade jurídica para equilibrar a proteção das vítimas com a análise cuidadosa das complexidades envolvidas. O caminho para a justiça e a proteção das mulheres em situações de violência continua a ser um desafio que requer reflexão constante e ajustes no sistema legal.
A vara especializada em violência doméstica possui competência para decidir guarda de criança e autorização para viagem em caso de violência contra a genitora?
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio do julgamento do Recurso Especial (REsp) 1550166-DF, trouxe importantes esclarecimentos sobre a competência da Vara Especializada da Violência Doméstica ou Familiar Contra a Mulher no que se refere a pedidos incidentais de natureza civil, especificamente relacionados à autorização para viagem ao exterior e guarda unilateral de criança.
Aufere-se, portanto, que a Vara Especializada em Violência Doméstica possui competência para julgar pedidos incidentais de natureza civil, como autorização para viagem ao exterior e guarda unilateral do infante. Essa competência é reconhecida quando a causa de pedir dessas pretensões está relacionada à prática de violência doméstica e familiar contra a genitora.
Como visto, a legislação conferiu aos Juizados de Violência Doméstica a competência para ações de natureza civil que tenham como causa de pedir a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. O propósito é permitir que o mesmo magistrado tenha uma visão abrangente da situação de violência, avaliando as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais decorrentes desse contexto.
Por isto, a Vara Especializada é competente para analisar o pedido relacionado ao interesse da criança, uma vez que a solicitação foi feita durante a vigência de medida protetiva destinada a neutralizar a situação de violência doméstica.
E as ações de alimentos também podem ser julgadas pela vara de violência doméstica, uma vez que elas não foram mencionadas no inciso III do art. 14 da Lei nº 11.340/2006?
A exclusão das ações de alimentos do inciso III do art. 14 da Lei nº 11.340/2006 se justifica pela previsão específica de medidas relacionadas a alimentos em outros dispositivos da mesma lei. A concessão de alimentos já estava contemplada no art. 22, V, e no art. 23, III, da referida legislação.
O art. 22 da Lei Maria da Penha trata das medidas protetivas de urgência que o juiz pode aplicar imediatamente ao agressor quando constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. O inciso V desse artigo menciona explicitamente a possibilidade de o juiz aplicar a medida de prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
Já o art. 23 da mesma lei confere ao juiz a autorização para determinar diversas medidas quando necessário, sem prejuízo de outras. O inciso III desse artigo especifica que o juiz pode determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos.
Dessa forma, as ações de alimentos foram abordadas de maneira específica nos dispositivos mencionados, o que justifica a não inclusão no inciso III do art. 14. A legislação buscou tratar de forma detalhada as medidas relacionadas à concessão de alimentos em contextos de violência doméstica, conferindo uma abordagem específica e clara para essas situações.
Prioridade de Tramitação em Processos Judiciais envolvendo Vítimas de Violência Doméstica
O art. 1.048 do Código de Processo Civil de 2015 estabelece situações em que os processos judiciais têm prioridade de tramitação. A Lei nº 13.894/2019 acrescentou um novo inciso, determinando que processos com a participação da vítima de violência doméstica devem gozar de prioridade, conforme o inciso III do referido artigo.
É crucial destacar que essa prioridade é contextual e não abrange todos os processos em que a pessoa seja vítima de violência doméstica. A prioridade aplica-se apenas quando o processo está relacionado diretamente com a violência doméstica e familiar, como em ações de divórcio, alimentos ou indenização por danos morais contra o autor da violência.
A vítima da violência doméstica é a única com legitimidade para solicitar a prioridade de tramitação, tornando esse benefício um direito subjetivo processual que depende da manifestação de vontade da interessada. O requerimento deve ser feito à autoridade judiciária competente, acompanhado de provas que confirmem a condição da vítima.
O § 1º do art. 1.048 estabelece que a parte interessada deve apresentar prova de sua condição ao solicitar a prioridade, sendo posteriormente determinadas as providências pelo juízo competente.
Conclusão
O caso recente envolvendo a apresentadora Ana Hickmann e seu pedido de divórcio com base na Lei Maria da Penha destaca a complexidade jurídica que muitas vezes permeia essas situações. Embora a legislação represente um marco importante no combate à violência contra as mulheres, a efetiva implementação enfrenta desafios, como evidenciado na negação do pedido de Ana Hickmann pela 1ª Vara Criminal e de Violência Doméstica e Familiar de São Paulo.
A Lei Maria da Penha, inicialmente voltada para a proteção das mulheres em situação de violência, passou por alterações em 2019 para acelerar processos de divórcio, separação ou dissolução de união estável pela Vara de Violência Doméstica. Entretanto, a aplicação prática dessa medida enfrenta obstáculos, como no caso da apresentadora, onde questões relacionadas a patrimônio e guarda dos filhos foram consideradas complexas, mas, a despeito disso deveriam ser conhecidas pelo mesmo magistrado.
Em suma, a interpretação e aplicação da Lei Maria da Penha continuam a ser desafios que demandam sensibilidade jurídica para equilibrar a proteção das vítimas com as complexidades das situações. O caminho para a justiça e proteção das mulheres em casos de violência requer reflexão constante e ajustes no sistema legal para assegurar uma abordagem eficaz e compassiva.
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Autor: David Vinicius do Nascimento Maranhão, telefone e WhatsApp (61) 99426-7511.