Sobre o tema, tive a oportunidade de emitir a Nota Técnica n.º 13/2015, pela Assessoria Jurídica da Fundação Estatal de Atenção Especializada em Saúde de Curitiba (FEAES), com o seguinte teor:
Leg.: art. 59, § 4º da Lei Federal 8.213/91
Ementa: Atestado emitido por médico particular apresentado por empregado para o fim de justificar faltas ao trabalho. Exigência de exames complementares e/ou prontuário atrelado ao atendimento. Redução ou aumento de afastamento. Legalidade. Competência da Medicina do Trabalho, conforme art. 59, § 4º da Lei Federal 8.213/91, entre outras disposições vigentes.
I. Relatório
Trata-se de consulta formulada à Assessoria, a fim de esclarecer:
(i) a possibilidade de erigir-se a revisão de atestados médicos emitidos por profissionais estranhos aos quadros da entidade;
(ii) a legitimidade da exigência de apresentação de prontuário e/ou exame (s) correlato (s) à CID atestada;
É o relato.
II. Fundamentos.
Convém fazer breve digressão acerca da natureza jurídica da entidade nominada FEAES, para melhor compreensão de V.S.as sobre a origem dos recursos financeiros utilizados no pagamento de salários dos empregados e seus fornecedores.
Trata-se de fundação pública de direito privado, vulgo “estatal” ou “governamental”, autorizada pela Lei Municipal n.º 13.663/2010, inserida na administração pública indireta (art. 1º, § 2º), regida por seu Estatuto, declarada de assistência e beneficência social, com atuação exclusivamente voltada ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Na tradição conceitual romana, uma fundação caracteriza-se basicamente pela afetação de patrimônio à determinada finalidade instituída pelo seu idealizador, no caso, o Município de Curitiba, que permanece supervisor do atendimento de tais finalidades.
Embora tenha sido investida de personalidade jurídica de direito privado a fim de aproveitar certas benesses comerciais e valer-se de regime trabalhista e tributário aplicável às empresas, a entidade remanesce atrelada às normas de ordem pública emanadas da Constituição Federal e algumas leis esparsas, justificando a necessidade de concurso público, a prestação de contas ao TCE/PR, a motivação e o processo administrativo disciplinar para a rescisão e a sujeição de seus empregados públicos à lei de improbidade e aos crimes contra a administração pública. Alguma divergência sobre tratar-se de “serviço público delegado” ou “atividade econômica” explorada pelo Estado, com sensível preponderância da primeira tese.
Certo é que, embora possa aferir receitas derivadas de doações e convênios remunerados (intermunicipais, regionais, nacional e com entidades privadas interessadas em serviços ligados à expertise desenvolvida, p.ex., treinamento e capacitação na área de saúde, residência médica e interdisciplinar, etc.), o orçamento permanece, por hora, exclusivamente composto de recursos públicos repassados pelo Município via Contrato de Gestão.
Daí decorre o óbvio dever de fiscalizar a correta aplicação do orçamento disponível, inclusive no que tange à jornada de médicos, as suspensões e interrupções contratuais, a fim de corrigir distorções e viabilizar um modelo ideal de saúde pública amparado pela correta gestão financeira.
Já vem de longa data a cultura (ou incultura) de que o atestado médico seria como que um documento intangível no seu conteúdo diagnóstico. Felizmente, novas vozes apontam, a exemplo do que ocorreu já há algum tempo com a jurisprudência dos Tribunais e do próprio Direito enquanto ciência, a insuficiência da ideia. E por um motivo muito simples. Trata-se de um parecer que, quanto menos acompanhado de exames disponíveis pela evolução tecnológica, tende a falhar.
É a própria ciência que, em socorro do profissional da medicina, autoriza o aperfeiçoamento diagnóstico e até mesmo a sua revogação. Estão aí a ecografia, o raio-x e inúmeras outras perspectivas de enxergar fenômenos fisiológicos que os sentidos humanos não alcançam.
Logo, não se deve atribuir à primeira impressão do profissional médico mais do que ela é. Conclusões mais precisas a respeito podem ser exaradas, já que o foco da medicina é o paciente e não a “vaidade” de certos indivíduos que ainda não compreenderam a finalidade da profissão.
Não se descarta o componente humano. O médico permanece no centro da hipótese diagnóstica, mas não pode, a bem da própria dignidade da categoria, comportar-se como um “senhor da verdade”.
O § 4º do art. 59 da Lei Federal n.º 8.213/91 erige a competência do serviço médico da empresa (próprio ou mediante convênio), para a realização do exame médico e o abono de faltas correspondente ao período de afastamento nos primeiros 15 (quinze) dias.
Daí obviamente decorre, bem como das NR’s/MTE n.ºs 7, 9, arts. 12, §§ 1º e 2º do Dec. 27.048/49 e disposições do Dec. 27.048/49, a viabilidade da revisão de atestados e a exigência de apresentação de exames ou de prontuário atrelados ao diagnóstico.
A legislação presume a “relatividade” da prova constante de laudos emitidos por terceiros -- um início de prova a ser confirmada. Não se trata apenas de debelar inadmissível quadro de fraudes praticadas, mas compreender adequadamente o fenômeno da doença laboral, para que os empregados que realmente fazem jus às suspensões e interrupções do contrato de trabalho possam gozá-las com tranquilo amparo do Estado.
O CFM já emitiu precedente no Parecer n.º 15/95:
[...]
Servidora pública federal do Ministério da Fazenda apresentou atestado médico relacionado a especialidade ortopédica. A Junta Médica Oficial, para obter maiores subsídios, solicitou parecer ortopédico a médico perito do INSS, especialista em Orto/Traumatologia. A Supervisora de Atividades Previdenciárias, hierarquicamente superior àquele especialista, solicitou parecer neurológico, tendo em vista que o parecer do ortopedista não era conclusivo. A funcionária-alvo protestou, não se submeteu a essa nova avaliação e fez denúncia contra a junta médica, acusando-a de abuso de poder já a partir da primeira solicitação de parecer especializado, alegando que se na composição da junta não há especialista na área a que se refere o atestado, este deve ser aceito sem questionamentos.
Após essa exposição, a Presidente da Junta Médica do Ministério da Fazenda formula as seguintes perguntas:
1- A ausência de especialista na junta médica obriga a aceitar atestados de médicos da área SEM questionamentos?
2- As juntas médicas, constituídas pelo poder público, podem ou não solicitar exames ou pareceres para melhor conclusão de atos periciais?
3- Qual o número de componentes necessários para a formação de uma Junta Médica Oficial?
II – Exposição e Conclusão
Por junta médica, "latu sensu", entende-se 2 ou mais médicos encarregados de avaliar condições de saúde, diagnóstico, prognóstico, terapêutica etc, que pode ser solicitada pelo paciente ou familiares, ou mesmo proposta pelo médico assistente. Quando com finalidade específica, administrativa, tem a missão de avaliar condições laborativas ou não e, assim, fundamentar decisões de admissão, retorno ao trabalho, afastamento para tratamento ou aposentadoria. Nestes casos sua composição será definida em lei, decreto, regulamento, resolução ou orientação normativa. E este é o caso do Serviço Público Federal. A Orientação Normativa nº 41 do Departamento de Recursos Humanos SAF (Secretaria da Administração Federal) estabelece:
"Compete aos dirigentes de pessoal dos Órgãos da Administração direta, das autarquias e das fundações federais a designação de juntas médicas oficiais, compostas de 3 (três) membros."
Evidente que seria impossível contemplar todas as especialidades médicas na composição da junta. Seriam hoje 65. O profissional componente da junta é, primeiramente, médico, e, secundariamente, especialista nessa ou naquela área, e avalia o homem em seu todo. Para isso tem competência técnica e legal. Assim estabelece a Lei 3.268 de 30 de setembro de 1957 em seu:
"Art. 17- Os médicos só poderão exercer legalmente a medicina, em qualquer de seus ramos ou especialidades, após o prévio registro de seus títulos, diploma, certificados ou cartas no Ministério da Educação e Cultura e de sua inscrição no Conselho Regional de Medicina, sob cuja jurisdição se achar o local de sua atividade."
Claro que antes de aprofundar seus conhecimentos em determinada área ele precisa conhecer o todo, razão de poder dedicar-se a atividades em qualquer ramo. Quando solicita, para embasar sua decisão, um exame radiológico, está requerendo o concurso de um especialista, e isto estende-se a qualquer especialidade. A junta médica pode requisitar exames especializados quantos sejam necessários para decidir.
A Lei 8.112 de 11/12/90 estabelece:
"Art. 203 – Para licença até (trinta) dias, a inspeção será feita por médico do setor de assistência do órgão de pessoal e, se por prazo superior, por junta médica oficial.
Parágrafo 1º – Sempre que necessário, a inspeção médica será realizada na residência do servidor ou no estabelecimento hospitalar onde se encontrar internado.
Parágrafo 2º – Inexistindo médico do órgão ou entidade no local onde se encontra o servidor, será aceito atestado por médico particular.
Parágrafo 3º – No caso do parágrafo anterior, o atestado só produzirá efeitos depois de homologado pelo setor médico do respectivo órgão ou entidade."
O "setor médico" previsto no parágrafo 3º tanto pode ser o "médico do setor de assistência" como a "junta médica", e para homologar ou não o "atestado passado por médico particular" pode requisitar exames e pareceres.
Na hipótese do servidor não acatar o pedido de exame complementar e/ou de parecer especializado, equivale a desistência do pleito, como em processo jurídico de ação privada e, assim, ser-lhe negada a licença. Somente exames que envolvam risco não podem ser impostos ao paciente, em geral os invasivos, como cineangiocoronariografia, por exemplo.
O que não está claro na consulta é: se a junta emitiu ou não laudo conclusivo; com e a quem foi solicitado o parecer do especialista em orto/traumatologia, isto é, diretamente ao profissional ou através de sua chefia.
Essa lacuna impede apreciar a iniciativa da Supervisora de Atividades Previdenciárias. Considerando, entretanto, que as perguntas formuladas são específicas e diretas, podemos respondê-las:
1 – Não. 2 – Podem.
3 – Três membros no Serviço Público Federal, conforme exposto.
III. Opinativo.
Sem maiores dificuldades exegéticas, a revisão de atestados e a exigência de exames complementares e prontuário atrelados ao diagnóstico médico, por parte da Medicina do Trabalho da FEAES, encontram amparo no § 4º do art. 59 da Lei Federal n.º 8.213/91, entre outras disposições vigentes.
É o parecer, s.m.j.
Curitiba, 07 de dezembro de 2015.
Alexandre Rocha Pintal
Mat. 1.837 OAB/PR 42.250
O arquétivo preambular da norma previdenciária, reproduzido em sucessiva legislação, sempre me pareceu um indicativo de que o legislador pretendeu familiarizar as consultas médicas de empregados na própria repartição em que trabalham, embora a prática da medicina ocupacional tenha se distanciado deste ideal, ora por comodidade em simplesmente chancelar atestados de colegas da profissão, ora pela falsa noção de que o atestado seria mais que um parecer, o que qualquer paciente com problema mais complexo, tendo procurado sucessivos profissionais e obtido diagnósticos e prescrições diversos, é capaz de desmentir.
A medicina, embora a cada dia mais precisa pelo recurso às tecnologias, ainda comporta níveis de subjetividade e polêmica científica. Não significa estar “certo” ou “errado”, mas obter melhores e mais ágeis resultados, a piores e mais longos.
Evidentemente, o CFM, bem como a ANVISA, que aprova os medicamentos e tratamentos testados, buscam reduzir o espectro de subjetivismo, a fim de evitar erros diagnósticos e práticas charlatãs, mas boa parte destes paradigmas também sofre interferência de novas descobertas e abordagens clínicas.
Dito isto, o Parecer n. 10/2012 do CFM, no Processo Consulta n. 8123/2010, após intensas discussões sobre a competência do médico do trabalho, definiu que, a partir da obrigação legal deste em examinar o eventual nexo da doença diagnosticada com a atividade laborativa, e a de medir a capacidade ocupacional, especialmente nos afastamentos inferiores a 15 dias, pode divergir do diagnóstico do atestado passado pelo médico particular (a lei chama este de"assistente"inclusive). Neste caso o médico do trabalho assume a responsabilidade pelo paciente-empregado.
Sem embargo, a maioria das divergências que se instauram nos consultórios de medicina do trabalho que realizam séria avaliação não se dá propriamente no conteúdo diagnóstico dos atestados, mas na prescrição dos períodos de afastamento. E, ao contrário do que alguns apregoam, as discordâncias não apontam apenas para demandas de redução ou exclusão dos dias de afastamento, mas em muitos casos, para a necessidade de aumento, o que indica a pertinência da discussão sobre a estabilidade funcional dos médicos do trabalho, a fim de escudá-los de interesses patronais meramente financeiros.
O médico do trabalho estuda mais profundamente as doenças com repercussão laboral e se encontra melhor aparelhado e afinizado, p.ex, à realização de manobras mecânicas específicas para medir o grau de comprometimento articulatório e a dor de um membro enfermo. Conhece mais intimamente as causas e manifestações incapacitantes, totais ou parciais, as modalidades de adaptação funcional, e os respectivos recursos de tratamento.
Não se está negando o direito de qualquer paciente em procurar o médico de sua preferência e confiança, nem o direito ao sigilo, na hipótese exercido pela ausência da CID a pedido. Mas, fato é que, atestados passados por médicos particulares de modo gracioso têm gerado prejuízo de alguns milhões em afastamentos ilegítimos despidos de base etiológica.
O principal argumento para que a competência dos médicos e juntas de médicos do trabalho no Brasil seja progressivamente mais respeitada (o recente Parecer 03/2017 do CFM, autorizando a divergência diagnóstica sobre o nexo epidemiológico da perícia do INSS o confirma), não radica apenas nas estatísticas aterradoras sobre doenças ocupacionais e acidentes do trabalho no Brasil, mas na constatação de que a prevenção só pode ser alcançada pelo exercício pleno da medicina ocupacional nas repartições públicas e privadas, sem o que permanecerá instituída pró-forma, limitada aos exames admissional e demissional, quando o mais relevante é o acompanhamento da involução dos desequilíbrios corporais.
Urge o fim do hiato, a qualificação da informação ocupacional e o abandono da presunção absoluta de infalibilidade e insindicabilidade dos atestados médicos ou, relembrando Lassale [1], a lei continuará um mero “pedaço de papel”.
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Dizia o autor que "De nada serve o que se escreve numa folha de papel se não se ajusta à realidade, aos fatores reais e efetivos do poder.”, em O que é uma Constituição? Belo Horizonte: Líder, 2002. P.69.